- O quê ? Esse jogo foi lançado em 1978, na época do velho d&d ?
- Sim.
- Então deve ser uma bosta completa, certo?
- Defina “bosta completa”.
- Ah sei lá.. complexo pra cacete, dezenas de dados diferentes, raças como classes, Thac0, e tabelas pra todos os lados ?
- Não.
- Bom, então deve ser algo genérico como Gurps, tão sem gosto que dá vontade de abrir o livro e jogar sal e ketchup em cima ?
- Também não.
- Ok, ultima tentativa: é daqueles sistemas que não usa dados, mas sim obras de artistas famosos que você tem que olhar e interpretar de acordo com a situação ? Coisa de viado enrustido de rpgista ou vice-versa?
- Ah, vai tomar no seu **.
- Que isso rapá, olha o respeito!
- Respeito nada, você sempre arruma desculpa pra falar mal dos indie.
- Ok, foquemos no objetivo: fala logo que porra de jogo é esse!
- É Runequest 6.
- .... e ?
- E daí que é a edição mais nova de um sistema com mais de 30 anos de idade, que não contem nenhuma das aberrações que você citou acima, e a cada nova iteração..
- Ah pára! Agora tu vai falar que ele é o melhor do mundo em alguma coisa, ou pelo menos melhor do que D&D! Deixa de ser escrotinho, tudo seu é o melhor. Desce desse pedestal, cara.
- Agora tu pareceu o Madruga falando.
- Tá, o que esse jogo tem de interessante, pra fazer a galera perder tempo lendo isso ?
- Olhe ao redor. Os caras tão vivendo de máfias e prévia de D&D Next por aqui, bicho. Qualquer novidade é bem vinda.
- Ihh, é verdade. E o Kimble vai agradecer né, afinal a criatividade dele pra novos títulos tá acabando!
- E não é ?
- Ah, então manda o papo, negão!!
Imagine se Gurps tivesse gosto, sabor. E se esse sabor fosse o sabor de civilizações antigas, de pés-de-sandália, espadas largas, deuses e sangue. Sabor de celtas, germânicos, persas, babilônicos, sumérios, assírios, atlanteanos e lemúrios. Sabor de Eddas, Mabinogi, Illíada, Épicos de Gilgamesh, e Épicos de Howard e Lovecraft. Agora imagine isso num sistema mais simples, e mais "orgânico", onde a construção do personagem não se parece com uma equação matemática fria e sem graça, mas sim onde se pondera entre opções de cultura, comunidade, familia, carreira, paixões, etc. onde o que o indivíduo
é, e sua posição na sociedade, vem na frente do quanto de dano ele faz com aquela lança. E pra concluir: imagine que deuses e
magia realmente existem nesse jogo. Mas existem da mesma forma que "existem" hoje - quando você reza um "pai-nosso" pra ter sorte naquele exame final, ou dá 3 pulinhos quando entra em campo pra não fazer feio na pelada com os amigos - e que existiam também para o cidadão médio e supersticioso da era do ferro e do bronze (a diferença é que no jogo as superstições têm efeitos realmente concretos, ou seja, o jogo entende que isso *é* magia, e funciona de fato).
(se tá com preguiça de ler, essa é a hora de pular pro
TL;DR ali embaixo )
A criação de personagem é como um mini-game: primeiro você escolhe sua idade inicial, o que vai determinar o máximo de pts que você tem pra distribuir (e penalidades físicas, se couber). Então escolhe sua cultura dentre 4 possíveis (Primitiva, Nomádica, Bárbara ou Civilizada). Cada uma dessas te permite selecionar um pacote de skills distinto (ex: alfabetismo e contabilidade não existe para a Primitiva, Caça e Pesca não é enfatizada na Civilizada), classe social, e tipos de
magia, das quais existem 5 tipos:
1. "Folk" magic, são os pequenos encantos e "cantigas da vovó" - dar 3 socos na madeira pra espantar espíritos, ou falar o nome de um espírito 3 vezes na frente de um espelho à meia-noite pra invocar um. Esse tipo de spell é o único que todo mundo pode ter, independente de ser ou não devoto de um culto ou religião formal, e independente de cultura (apesar de a cultura Civilizada discriminar esse tipo de prática). Inclusive a tabela abaixo dá exemplos dos spells mais comuns utilizados por diferentes ocupações:
2. Animismo: magia baseada em interação com espíritos (comunicar, conjurar, apaziguar, etc). É preciso ser iniciado em alguma prática shamânica para ter acesso a esse tipo de magia. Todas os tipos de culturas podem ter acesso a esse tipo de magia, mas ela é mais comum na Primitiva e Nomádica.
3. Misticismo: magia baseada em meditação e mentalização (você ganha pontos através de meditação que podem ser usados no decorrer do dia para adquirir vantagens e bonus em diversas técnicas e atividades). É preciso ser iniciado em alguma prática ou ordem mística para ter acesso a esse tipo de magia. Todas os tipos de cultura têm acesso a esse tipo de magia, à exceção da Primitiva.
4. Teísmo: magia baseada em milagres e dádivas divinas. Requer que o praticante seja iniciado em algum culto de alguma divindade. Presente em todas as culturas, exceto na Primitiva.
5. Feitiçaria: magia baseada em fórmulas e conhecimento exotérico, e manifestada através de spells. Por padrão, apenas a cultura Civilizada pode ter acesso a esse tipo de magia.
Depois faz-se escolhas relacionadas à suas paixões (você escolhe 3, e elas vão dar bônus toda vez que você fizer algo que as coloque em jogo), à comunidade (sua família e o quão influente esta é, se você é casado ou não, se tem filhos ou não, seus contatos, etc. ) e finalmente à sua carreira - cada personagem precisa ter uma profissião ligada à sua cultura. O personagem não precisa necessariamente permanecer naquela profissão uma vez o jogo tenha iniciado, mas ela é importante pois vai influenciar fortemente as capacidades iniciais do personagem. A tabela abaixo mostra as carreiras disponíveis por cultura:
O aprimoramento do personagem se dá de duas formas: através da utilização das skills durante o próprio jogo (cada vez que você tem sucesso ou falha crítica, aumenta o nível da skill), ou usando pontos de experiência que você ganha de diversas formas, ao final das sessões. O combate é baseado em diferença de margem de sucessos (o jogo usa uma mecânica de percentil), usando um sistema de dano por localidade. Nesse ponto ele cheira muito forte a jogos dos anos 80, com um detalhismo, e meu ver, exagerado. Taí algo que eu simplificaria ao máximo. Mas ele até tem um twist interessante: ao invés de você anunciar manobras especiais e isso resultar em penalidades na rolagem e efeitos extras no seu ataque, aqui é o inverso - você primeiro rola seu ataque e, dependendo da margem de sucesso, pode ou não escolher manobras especiais, cada uma dando um efeito diferente para o ataque. Ainda não vi isso em ação, por isso ainda não tenho uma opinião formada. Mas de cara vejo uma vantagem: agilizar o combate. Afinal, se você não precisa calcular penalidades na hora da rolagem, e sim aplicar os efeitos somente depois (de acordo com a margem obtida), a coisa tende a fluir mais rápido.
TL;DR:Runequest é um jogo de fantasia universal e simulacionista que prova que algo universal e simulacionista não precisa ser desprovido de sabor. Pra quem gosta de realismo, verossimilhança antropológica e um ar mítico e lendário forte, esse é o jogo. Sou suspeito pra falar, já que comigo foi amor a primeira vista, mas considero esse o melhor jogo de fantasia pra quem gosta de realismo. A 6ª edição foi recém-lançada e pode ser obtida num pacote livro+pdf
daqui. Eu prometi a mim mesmo que nunca mais pegaria jogos com crunch médio-pesado, mas esse foi irresistível.
P.S: uma coisa legal em Runequest é a forma como ele trata sua magia, permeando o dia-a-dia da sociedade de um modo coerente e orgânico, ao invés de ser só um tipo de armamento especial usado por um tipo de combatente especial, e que parece não ter implicação nenhuma fora do combate, como é o caso de jogos no estilo D&D.
P.S²: outra coisa legal é ver o que um sistema que foi desenvolvido lá no final dos ´70 (praticamente junto com OD&D) se tornou depois de várias edições que apenas refinaram suas regras e premissa original, ao invés de alterá-las significativamente a ponto de se fragmentar como foi o caso de D&D.