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Contos / Re:Concurso de contos de fantasia e ficção erótica/sensual da Spell.
« Online: Setembro 17, 2015, 02:21:30 pm »
Do Alto da Torre ao Sul do Rio que Corre Pelo Vale
Em teu ventre puseram as tâmaras mais frescas, e do haxixe inebriante destilaram a saliva que teus lábios em noites quentes derrama sobre os meus. Teus seios são os travesseiros dos dias em que fugimos, e neles repousa um rosto combalido, suor herdado de um entardecer sangrento, à espera de um sono que não chega.
– Essa torre em que deitamos é bem velha, meu amor. O nosso quarto, o mais alto. Somente da última janela é que podemos avistar o rio que corre atrás dos morros pardos. Mesmo de noite é possível vê-lo.
– Dizem que foi desta janela que atirou-se o sábio que vivera aqui outrora.
– Atirou-se ao chão?
– Tendo encontrado o céu.
O cheiro de frutas cítricas, nessa época do ano, vem dos pomares e sobe pelas escadarias na noite serena. Hasan, com os olhos semicerrados, observa a dama com o longo cachimbo, já apagado, apoiado entre os seios livres, a manta ocre flutuando como as nuvens que às vezes baixam até o cimo da torre para que os amantes as toquem.
Os meus dedos encontram a tua pele fria ao fim do tato.
– O sono não chega. Conte-me outra história sobre piratas e gênios.
Ela colocou o cachimbo de lado, e sem dar ouvidos ao que disse, pôs-se a acariciar o sexo de seu companheiro. Os sentidos misturavam-se ao gosto das frutas que provaram havia pouco, e ainda ecoando sensações um tanto distorcidas pelo efeito entorpecente do haxixe, uma cor lívida, verde, trazia calafrios e devaneios aos dois.
Os corpos, num movimento espontâneo, afundaram-se nas almofadas violáceas. Na mente de Hasan, melodias de arabescos sutis desenhavam reinos longínquos de lâmpadas para sempre esfregadas. Seu sexo se enrijecia com o peso do corpo de sua parceira.
– Temos como amiga a sedutora hora dos tempos. – disse ela.
– Nosso reino durará por mais três séculos.
Cada resposta demorava semanas de beijos dados delicadamente nas bochechas e nos lábios.
– Quem vos disse?
– A boca de um velho dervixe persa.
– E acreditaste?
– Não mais do que acredito em tuas histórias, ou nas fantasias provençais dos pagãos.
Ela trazia o próprio coração dividido em ramos. Sabia recitar canções sobre heróis que singraram mares e derrotaram gigantes, mas àquela noite qualquer epopeia naufragaria em travessias revoltosas de desejo. O olhar dos dois galgavam curtas distâncias, abriam-se uns enquanto os do outro fechavam-se, e as fustigantes superfícies de contato prometiam continentes povoados pela nostalgia de quando ainda não haviam sido explorados nem em sonhos.
Do lado de fora as palmeiras tremularam. Animais alados resmungaram, interrompendo seus cantos noturnos. A lua saía de trás de uma enorme nuvem marrom. O ventre de sua dama estava exposto à luz de uma vela ou de um lampejo. Ao redor do umbigo concentrava-se a crescente fértil.
– A lua sabes de onde vem? Ou aonde vai?
– Vem de outros corpos ainda maiores do que a Terra ao redor da qual orbita.
– Sabes de coisas misteriosas, minha dama. Por que me escolheste como ouvinte?, como amante?
– Porque tua última torre.
Anos entregaram-se à história de um exército que teve de transpor uma árdua jornada em terras estrangeiras para enfim morrerem à sombra de um penhasco, cercados por uma legião inimiga. A ponta dos teus seios, mamilos tesos e fartos, rosas redondas que me mordiscam de perto e à distância, do alto de penhascos. Penhascos. Teus pés alcançaram os cimos e pisaram lá, as pernas os enredaram em jogos de tabuleiros desperdiçados, as peças de madeira caídas e espalhadas pelo chão de pedra fria que o tapete não cobre. O exército seguia as ordens de um rei que marchava em direção à fortaleza de seu inimigo, um outro rei ou sultão. Os verdadeiros motivos, guardados e transmitidos pelas suas concubinas, evocavam o desejo insólito que o rei marchante tinha em possuir os pés de uma das mulheres do harém do rei encastelado, uma donzela que ele próprio havia visto sendo carregada pelos escravos, em uma liteira, quando da passagem da corte de seu rival, porque tamanho cuidado era dado às extremidades daquela dama que sequer lhe era permitido pisar no chão.
Em algum momento daquela grandiosa dinastia, construída por conquistas e bravura, todo o legado findou-se em destruir a principal joia do tesouro de um falso inimigo. Esforços foram coligidos, súditos movidos nessa direção, séquitos prosseguiram incautos rumo à morte. A emboscada.
– Mas saiba que o rei vencedor foi generoso.
– Por quê? – Hasan os olhos esferas vidro riscado.
– Convocou um artesão para construir uma enorme réplica dos pés de sua donzela, como mausoléu para o seu inimigo, que está enterrado sob eles.
– A dama foi ao menos consultada?
– Diz-se que a ideia partiu dela.
Deu-me um beijo, a revoada de um vulto. Todo império tem por vício a caça de luxuosos e impossíveis requintes. Ela entornou a jarra de água em minha boca. Sobre meu peito escorria ainda. O gosto vinha misturado ao sabor sutil da flor de laranjeira. Pedi que ela se deitasse ao meu lado, e que me contasse ainda mais baixinho sobre os rumos das rotas das estrelas, e da hipótese de reinos situados além delas – as especulações que um viajor oculto conjurou com seu cetro antes de num piscar de olhos deslocar-se para um lugar muito distante.
Carícias feitas por tigres que jejuam em jardins. Ela sugeriu que nessas outras plagas, visitadas pelo nosso espírito apenas nos instantes mais sublimes, pudéssemos encontrar como que cópias de nós mesmos.
– Acredita que somos feitos em pares? – perguntei a ela.
– Um par somos tu e eu. Somos feitos aos milhares. Milhares de tus, milhares de eus. Quanto mais alto vamos, mais perfeitas são as cópias que encontramos.
– Somos verticalmente aperfeiçoados?
– Talvez. – ela respirou, e de um beijo que relutava em terminar veio o que disse – Há torres bem mais altas que a tua.
– Já estiveste em alguma delas?
– E perguntas? Esqueceste que és meu companheiro na busca destas alturas e profundezas? Há versões mais lapidadas de mim e de você. Algumas formas mais toscas, outras mais belas.
As charadas e enigmas espantam o sono. Somos tudo o que do outro temos – Hasan pensou.
– O que me impele ou o que me atrai… – ele apalpou as palavras, mas o rio que vinha o impedia de escolhê-las com mais cuidado do que lhe autorizava a intuição – É a necessidade de transpor um abismo que me cerca.
– Pense nos anjos brilhando sobre dunas invisíveis.
Teus braços me alcançariam onde quer que eu me perdesse. Iriam até os istmos em que a névoa se dissipa. Encontrariam a mim descansando ao lado das estátuas imperfeitas do teu ventre, dos teus braços, feitas por artesãos de madeira. Um cometa que a cada século reaparece no céu e percorre o firmamento será responsável pelo gotejar das profecias, mas teus braços. Da cadência delicada do ritmo com que respiras, sinto a respiração de outros amantes que trazes escondidos no no teu palácio.
– Estas criaturas mais perfeitas do que nós, também deverão amar com mais perfeição. – disse Hasan.
– Já sentiste algum amor que não era pleno? Perfeitos ou não, todos eles se amarão em plenitude, e seus corpos serão igualmente completos um para o outro. As formas mais perfeitas, sempre inacessíveis às cópias mais toscas. A nós, é apenas permitido imaginar, sempre com imperfeição, o voo dessas outras almas que tentamos imitar.
Ela sentou-se no colo de seu amante, e uma mordida carinhosa dada em seu ombro fez com que estremecesse. Os dedos corriam pelas coxas à procura do sexo da dama, estimulado à força de um crespo toque sabor de uma saliva que era engolida a seco, os dedos se inseriam em poucas notas de cravo ou lábios vertiginosos invadidos pela ânsia de juntarem-se os amantes em um casulo selado dentro de uma árvore da qual jamais seriam retirados, seus corpos para sempre apertados um contra o outro. A árvore morreria e o casulo seria soterrado pelos cabelos em que Hasan desejava afundar o rosto e o nariz e ali desfalecer, e morrer asfixiado pelo perfume dos cachos.
As artes do amor nos ensinaram uma civilização de paixão e intelecto. Enquanto conversávamos, enquanto decifrávamos os labirintos um do outro, os enigmas que nos desafiavam, quebra-cabeças de peças de mármore caíam com o estrondo de uma colisão de mundos. Ela teria recitado ao seu amante um poema persa que versejava sobre os prazeres do amor como substituto para as absurdas atribulações da vida. Transitando entre o sono exuberante e a vigília embriagada teriam divisado, os dois, uma taverna em que os difíceis anos da guerra puderam ser esquecidos pelos alegres seres que agora se encontravam ali para beber e cantar. Guerreiros que viram morrer os seus amigos, ou damas que do alto de suas torres choraram à espera de seus parceiros, ali encontravam novamente razões para sorrirem limas douradas.
– Nessas horas creio que somos mais velhos do que nossos corpos fazem parecer que somos. – ele teria balbuciado.
– As memórias de um homem são as memórias de todos os homens. Queres atravessar o abismo, mas não existe abismo.
– Depois de caída a nossa torre, tu serás só uma miragem.
– Assim como a ti, ou aquilo que tu eras.
– Então nós já não existimos desde já?
– O amor não deveria deixar-te espaço para a dúvida.
– Pois foi ele quem me apresentou a ela. Amar me trouxe à vida.
Deite-se comigo em sonos povoados por folhas que caem lentamente no jardim que cultivamos. Mergulhe comigo até as profundezas deste mar em que ungimos o povo que nascerá de nós. Tuas pernas minhas mãos sentem em giros cada vez mais espantosos, em jorros de marfim. Teu sexo, meu amor, me sobe e me agarra em pleno voo, um pássaro que pousou em nós, ou uma ânfora que se arrebenta contra o mármore.
Provaste comigo sabores diferentes, e tu me apresentaste a eles, e de mim também provaste o meu sabor.
– Deves saber de alguma história sobre sabores estranhos. – ele sugeriu a ela.
– Por certo já ouviste falar dos gostos exuberantes dos califas abássidas. Saibas que há muitos anos morreu um velho califa que ficara conhecido pela sua predileção por pimentas muito picantes. Incitava os comerciantes e os marujos a buscarem pimentas ardidas em portos cada vez mais distantes e exóticos.
– Pimentas? Há pimentas bem poderosas mais ao leste.
– O costume de comer pimentas e temperos tão fortes fez com que sua sensibilidade diminuísse. Ao fim da vida, quase já não sentia mais o sabor das coisas. Por isso precisava de temperos cada vez mais agressivos.
– Qual pimenta é tão forte que nos impeça de comê-la?
– Antes de tornar-se um veneno, a pimenta mais forte que qualquer homem já comeu foi ser encontrada no extremo oeste, além do Chifre, nas ilhas além dos oceanos. É vermelha, e grande como um diamante.
– Além dos oceanos?
– É de onde voltou o heroico navegante que trouxe ao califa sua pimenta. Ele conta que no ponto mais distante em que chegara o céu descia a ponto de encontrar-se com o chão e ali viviam pessoas que tinha três pés de altura, ou metade do nosso tamanho.
– Suas cabeças chegam a tocar o céu?
– Ninguém acreditou no viajante, meu amor. Por que tu e eu acreditaríamos?
– Porque nessa noite todas as histórias fazem igual sentido.
– Imagine quão terrível era o hálito do califa. Os súditos nunca o olhavam de frente. Os seus cozinheiros não viviam muito além de três ou quatro banquetes.
Os glutões veem na comilança a razão de estarem vivos.
Os criminosos caprichosos cobrimos com mel, e os amarramos, cada extremidade atada ao tronco de uma palmeira, a fim de que ele fique estendido sob o sol, coberto com a grossa camada de mel, que vai se secando com o calor. Os insetos, gafanhotos, mosquitos, sentem-se atraídos pelo sabor adocicado do mel cristalizado na pele queimada pelo sol. Até que o sujeito morra ali, sem forças, sedento, esgotado, infestado de animais lhe comerem o adocicado crocante. A morte doce.
Uma morte amarga e azeda é aquela proporcionada pelos antigos persas, no chamado suplício dos botes. Mitríades teria sido condenado a uma morte dessas, como punição pelo assassinato de Ciro, o Jovem. Foi aprisionado dentro de uma caixa feita com dois botes, colocados um sobre o outro, e deixado boiando em um rio, com a cabeça, as mãos e os pés à mostra. Diariamente obrigavam-no a ingerir doses de leite e mel, que, ao serem cuspidos de volta, pela boca ou pelo ânus, atraiam os insetos e os vermes responsáveis por devorarem lentamente a vítima, naquelas partes em que era incapaz de se defender, como o rosto, ou os pés, e descendo então às partes internas, do lado de dentro da caixa formada pelos botes, onde as moscas faziam ninhadas para os vermes e começavam a comer o corpo da vítima por dentro. O mel impedia que o prisioneiro morresse de fome, obrigando-o a desfrutar do suplício até a morte por infecção.
Mitríades teria levado mais de quinze dias para morrer.
Assustado pela imagem do homem morto, boiando no rio de crueldade derramado pelos tiranos de antanho, a respiração de Hasan parecia perturbada.
Ela correu a mão pelos cabelos dele, procurando oferecer alguma tranquilidade em gestos discretos, confortáveis. Quantos homens bravos ou corajosos sentenciamos à morte cada vez que nos deitamos, meu amor?
Os suspiros, ela sabe, denunciam fraquezas.
O touro de bronze dentro do qual assavam as gentes. Ou Moloque, a quem ofertavam crianças. A inteligência do homem prestou-se ao serviço de elaborar um sistema de tubos que fazia com que os gritos de sofrimento da vítima, sendo assada dentro do touro, saíssem de dentro do animal como um longo mugido lamentoso.
Uma obra-prima da engenharia.
– Se pudesses escolher minha morte… – Hasan não completou o raciocínio, e julgou-se insolente.
– Seria rápida.
– A degola?
– Cicuta.
Não sejamos prisioneiros. Não nos troquem em mercados empoeirados, os corpos daqueles árabes magros amontoados, empanturrados de haxixe, os corpos moles, os pescoços pendendo como cordas levantavam apenas em tragadas. Não sejamos prisioneiros. Não nos façam escolher entre o fosso ou a fogueira.
Al-Zuhrah (Vênus), a estrela primeva, vacilava em erupções vermelhas num céu escuro mais claro. Peregrinos noturnos, feitos de sombra e poeira, subiam por caminhos íngremes. Vinham serpenteando pelas colinas que ladeavam o vale.
Seu sexo estava mais rijo do que nunca, e ela o sentia com suas mãos, os dedos de unhas polidas e sutis desenhando círculos ali. Âmbar e mel. Como demonstração de sua força e virilidade, reis lunáticos ordenavam matanças e elaboravam formas sofisticadas de tortura e morte contra os seus inimigos – espetáculos a serem desfrutados pelos pervertidos do reino, os atrevidos que se excitam quando ouvem gritos de dor, ou donzelas frágeis que não resistem aos desmandos de seus imperadores. Enormes presas de marfim balouçando, suspensas no ar, longe do cemitério de elefantes. Escravos que são espancados até bem perto da morte, antes ou depois de terem desfrutado do prazer conjunto ao corpo de seus senhores e senhoras.
– Estou enfastiado das histórias de reis tiranos, sempre a competir em vilania, em gostos excêntricos e peculiares. São lendas estranhas a corações como o teu e o meu.
– Estranhas tua condição? Tu não és um rei.
– Como não sou um rei, se tenho diante de mim a minha rainha e o meu reino?
Quando as velas se apagaram, não demorou para que dormissem com o calor dos corpos servindo de proteção à penumbra que os envolvia. Suspiravam florestas exóticas e animais ancestrais. O silêncio era o império que do alto da torre se via.
Uma sombra que se esgueirava pelo vale atravessou os pórticos e chegou aos jardins. Subiu a escadaria com a velocidade de um sopro sinistro, um espírito soturno vagando no reino da criação de seu Senhor. Encontrou os amantes abraçados entre as almofadas, e contemplou a forma ou o desenho que seus corpos produziam quando estavam juntos. Fixou a imagem na lousa de sua memória eterna, tendo se tornado, neste instante, um espelho do mundo real que via e refletia.
Hasan, com gestos de sonâmbulo, saiu a persegui-la com sua adaga imaginária. Primeiro pelo quarto, depois escadaria abaixo. O sol já começava a ser recebido pelos primeiros cantos de aves, mas ainda demoraria até o dia clarear. Os golpes dados no vazio faziam a sombra recuar, e um forte vento uivou em todas as direções antes que ela sumisse, engolida pelo céu da alvorada.
A mulher, acordando num susto entre as almofadas, desceu correndo até o pomar apenas para encontrar o amigo conversando sozinho, sob o limoeiro, cercado pelos pavões.
Em teu ventre puseram as tâmaras mais frescas, e do haxixe inebriante destilaram a saliva que teus lábios em noites quentes derrama sobre os meus. Teus seios são os travesseiros dos dias em que fugimos, e neles repousa um rosto combalido, suor herdado de um entardecer sangrento, à espera de um sono que não chega.
– Essa torre em que deitamos é bem velha, meu amor. O nosso quarto, o mais alto. Somente da última janela é que podemos avistar o rio que corre atrás dos morros pardos. Mesmo de noite é possível vê-lo.
– Dizem que foi desta janela que atirou-se o sábio que vivera aqui outrora.
– Atirou-se ao chão?
– Tendo encontrado o céu.
O cheiro de frutas cítricas, nessa época do ano, vem dos pomares e sobe pelas escadarias na noite serena. Hasan, com os olhos semicerrados, observa a dama com o longo cachimbo, já apagado, apoiado entre os seios livres, a manta ocre flutuando como as nuvens que às vezes baixam até o cimo da torre para que os amantes as toquem.
Os meus dedos encontram a tua pele fria ao fim do tato.
– O sono não chega. Conte-me outra história sobre piratas e gênios.
Ela colocou o cachimbo de lado, e sem dar ouvidos ao que disse, pôs-se a acariciar o sexo de seu companheiro. Os sentidos misturavam-se ao gosto das frutas que provaram havia pouco, e ainda ecoando sensações um tanto distorcidas pelo efeito entorpecente do haxixe, uma cor lívida, verde, trazia calafrios e devaneios aos dois.
Os corpos, num movimento espontâneo, afundaram-se nas almofadas violáceas. Na mente de Hasan, melodias de arabescos sutis desenhavam reinos longínquos de lâmpadas para sempre esfregadas. Seu sexo se enrijecia com o peso do corpo de sua parceira.
– Temos como amiga a sedutora hora dos tempos. – disse ela.
– Nosso reino durará por mais três séculos.
Cada resposta demorava semanas de beijos dados delicadamente nas bochechas e nos lábios.
– Quem vos disse?
– A boca de um velho dervixe persa.
– E acreditaste?
– Não mais do que acredito em tuas histórias, ou nas fantasias provençais dos pagãos.
Ela trazia o próprio coração dividido em ramos. Sabia recitar canções sobre heróis que singraram mares e derrotaram gigantes, mas àquela noite qualquer epopeia naufragaria em travessias revoltosas de desejo. O olhar dos dois galgavam curtas distâncias, abriam-se uns enquanto os do outro fechavam-se, e as fustigantes superfícies de contato prometiam continentes povoados pela nostalgia de quando ainda não haviam sido explorados nem em sonhos.
Do lado de fora as palmeiras tremularam. Animais alados resmungaram, interrompendo seus cantos noturnos. A lua saía de trás de uma enorme nuvem marrom. O ventre de sua dama estava exposto à luz de uma vela ou de um lampejo. Ao redor do umbigo concentrava-se a crescente fértil.
– A lua sabes de onde vem? Ou aonde vai?
– Vem de outros corpos ainda maiores do que a Terra ao redor da qual orbita.
– Sabes de coisas misteriosas, minha dama. Por que me escolheste como ouvinte?, como amante?
– Porque tua última torre.
Anos entregaram-se à história de um exército que teve de transpor uma árdua jornada em terras estrangeiras para enfim morrerem à sombra de um penhasco, cercados por uma legião inimiga. A ponta dos teus seios, mamilos tesos e fartos, rosas redondas que me mordiscam de perto e à distância, do alto de penhascos. Penhascos. Teus pés alcançaram os cimos e pisaram lá, as pernas os enredaram em jogos de tabuleiros desperdiçados, as peças de madeira caídas e espalhadas pelo chão de pedra fria que o tapete não cobre. O exército seguia as ordens de um rei que marchava em direção à fortaleza de seu inimigo, um outro rei ou sultão. Os verdadeiros motivos, guardados e transmitidos pelas suas concubinas, evocavam o desejo insólito que o rei marchante tinha em possuir os pés de uma das mulheres do harém do rei encastelado, uma donzela que ele próprio havia visto sendo carregada pelos escravos, em uma liteira, quando da passagem da corte de seu rival, porque tamanho cuidado era dado às extremidades daquela dama que sequer lhe era permitido pisar no chão.
Em algum momento daquela grandiosa dinastia, construída por conquistas e bravura, todo o legado findou-se em destruir a principal joia do tesouro de um falso inimigo. Esforços foram coligidos, súditos movidos nessa direção, séquitos prosseguiram incautos rumo à morte. A emboscada.
– Mas saiba que o rei vencedor foi generoso.
– Por quê? – Hasan os olhos esferas vidro riscado.
– Convocou um artesão para construir uma enorme réplica dos pés de sua donzela, como mausoléu para o seu inimigo, que está enterrado sob eles.
– A dama foi ao menos consultada?
– Diz-se que a ideia partiu dela.
Deu-me um beijo, a revoada de um vulto. Todo império tem por vício a caça de luxuosos e impossíveis requintes. Ela entornou a jarra de água em minha boca. Sobre meu peito escorria ainda. O gosto vinha misturado ao sabor sutil da flor de laranjeira. Pedi que ela se deitasse ao meu lado, e que me contasse ainda mais baixinho sobre os rumos das rotas das estrelas, e da hipótese de reinos situados além delas – as especulações que um viajor oculto conjurou com seu cetro antes de num piscar de olhos deslocar-se para um lugar muito distante.
Carícias feitas por tigres que jejuam em jardins. Ela sugeriu que nessas outras plagas, visitadas pelo nosso espírito apenas nos instantes mais sublimes, pudéssemos encontrar como que cópias de nós mesmos.
– Acredita que somos feitos em pares? – perguntei a ela.
– Um par somos tu e eu. Somos feitos aos milhares. Milhares de tus, milhares de eus. Quanto mais alto vamos, mais perfeitas são as cópias que encontramos.
– Somos verticalmente aperfeiçoados?
– Talvez. – ela respirou, e de um beijo que relutava em terminar veio o que disse – Há torres bem mais altas que a tua.
– Já estiveste em alguma delas?
– E perguntas? Esqueceste que és meu companheiro na busca destas alturas e profundezas? Há versões mais lapidadas de mim e de você. Algumas formas mais toscas, outras mais belas.
As charadas e enigmas espantam o sono. Somos tudo o que do outro temos – Hasan pensou.
– O que me impele ou o que me atrai… – ele apalpou as palavras, mas o rio que vinha o impedia de escolhê-las com mais cuidado do que lhe autorizava a intuição – É a necessidade de transpor um abismo que me cerca.
– Pense nos anjos brilhando sobre dunas invisíveis.
Teus braços me alcançariam onde quer que eu me perdesse. Iriam até os istmos em que a névoa se dissipa. Encontrariam a mim descansando ao lado das estátuas imperfeitas do teu ventre, dos teus braços, feitas por artesãos de madeira. Um cometa que a cada século reaparece no céu e percorre o firmamento será responsável pelo gotejar das profecias, mas teus braços. Da cadência delicada do ritmo com que respiras, sinto a respiração de outros amantes que trazes escondidos no no teu palácio.
– Estas criaturas mais perfeitas do que nós, também deverão amar com mais perfeição. – disse Hasan.
– Já sentiste algum amor que não era pleno? Perfeitos ou não, todos eles se amarão em plenitude, e seus corpos serão igualmente completos um para o outro. As formas mais perfeitas, sempre inacessíveis às cópias mais toscas. A nós, é apenas permitido imaginar, sempre com imperfeição, o voo dessas outras almas que tentamos imitar.
Ela sentou-se no colo de seu amante, e uma mordida carinhosa dada em seu ombro fez com que estremecesse. Os dedos corriam pelas coxas à procura do sexo da dama, estimulado à força de um crespo toque sabor de uma saliva que era engolida a seco, os dedos se inseriam em poucas notas de cravo ou lábios vertiginosos invadidos pela ânsia de juntarem-se os amantes em um casulo selado dentro de uma árvore da qual jamais seriam retirados, seus corpos para sempre apertados um contra o outro. A árvore morreria e o casulo seria soterrado pelos cabelos em que Hasan desejava afundar o rosto e o nariz e ali desfalecer, e morrer asfixiado pelo perfume dos cachos.
As artes do amor nos ensinaram uma civilização de paixão e intelecto. Enquanto conversávamos, enquanto decifrávamos os labirintos um do outro, os enigmas que nos desafiavam, quebra-cabeças de peças de mármore caíam com o estrondo de uma colisão de mundos. Ela teria recitado ao seu amante um poema persa que versejava sobre os prazeres do amor como substituto para as absurdas atribulações da vida. Transitando entre o sono exuberante e a vigília embriagada teriam divisado, os dois, uma taverna em que os difíceis anos da guerra puderam ser esquecidos pelos alegres seres que agora se encontravam ali para beber e cantar. Guerreiros que viram morrer os seus amigos, ou damas que do alto de suas torres choraram à espera de seus parceiros, ali encontravam novamente razões para sorrirem limas douradas.
– Nessas horas creio que somos mais velhos do que nossos corpos fazem parecer que somos. – ele teria balbuciado.
– As memórias de um homem são as memórias de todos os homens. Queres atravessar o abismo, mas não existe abismo.
– Depois de caída a nossa torre, tu serás só uma miragem.
– Assim como a ti, ou aquilo que tu eras.
– Então nós já não existimos desde já?
– O amor não deveria deixar-te espaço para a dúvida.
– Pois foi ele quem me apresentou a ela. Amar me trouxe à vida.
Deite-se comigo em sonos povoados por folhas que caem lentamente no jardim que cultivamos. Mergulhe comigo até as profundezas deste mar em que ungimos o povo que nascerá de nós. Tuas pernas minhas mãos sentem em giros cada vez mais espantosos, em jorros de marfim. Teu sexo, meu amor, me sobe e me agarra em pleno voo, um pássaro que pousou em nós, ou uma ânfora que se arrebenta contra o mármore.
Provaste comigo sabores diferentes, e tu me apresentaste a eles, e de mim também provaste o meu sabor.
– Deves saber de alguma história sobre sabores estranhos. – ele sugeriu a ela.
– Por certo já ouviste falar dos gostos exuberantes dos califas abássidas. Saibas que há muitos anos morreu um velho califa que ficara conhecido pela sua predileção por pimentas muito picantes. Incitava os comerciantes e os marujos a buscarem pimentas ardidas em portos cada vez mais distantes e exóticos.
– Pimentas? Há pimentas bem poderosas mais ao leste.
– O costume de comer pimentas e temperos tão fortes fez com que sua sensibilidade diminuísse. Ao fim da vida, quase já não sentia mais o sabor das coisas. Por isso precisava de temperos cada vez mais agressivos.
– Qual pimenta é tão forte que nos impeça de comê-la?
– Antes de tornar-se um veneno, a pimenta mais forte que qualquer homem já comeu foi ser encontrada no extremo oeste, além do Chifre, nas ilhas além dos oceanos. É vermelha, e grande como um diamante.
– Além dos oceanos?
– É de onde voltou o heroico navegante que trouxe ao califa sua pimenta. Ele conta que no ponto mais distante em que chegara o céu descia a ponto de encontrar-se com o chão e ali viviam pessoas que tinha três pés de altura, ou metade do nosso tamanho.
– Suas cabeças chegam a tocar o céu?
– Ninguém acreditou no viajante, meu amor. Por que tu e eu acreditaríamos?
– Porque nessa noite todas as histórias fazem igual sentido.
– Imagine quão terrível era o hálito do califa. Os súditos nunca o olhavam de frente. Os seus cozinheiros não viviam muito além de três ou quatro banquetes.
Os glutões veem na comilança a razão de estarem vivos.
Os criminosos caprichosos cobrimos com mel, e os amarramos, cada extremidade atada ao tronco de uma palmeira, a fim de que ele fique estendido sob o sol, coberto com a grossa camada de mel, que vai se secando com o calor. Os insetos, gafanhotos, mosquitos, sentem-se atraídos pelo sabor adocicado do mel cristalizado na pele queimada pelo sol. Até que o sujeito morra ali, sem forças, sedento, esgotado, infestado de animais lhe comerem o adocicado crocante. A morte doce.
Uma morte amarga e azeda é aquela proporcionada pelos antigos persas, no chamado suplício dos botes. Mitríades teria sido condenado a uma morte dessas, como punição pelo assassinato de Ciro, o Jovem. Foi aprisionado dentro de uma caixa feita com dois botes, colocados um sobre o outro, e deixado boiando em um rio, com a cabeça, as mãos e os pés à mostra. Diariamente obrigavam-no a ingerir doses de leite e mel, que, ao serem cuspidos de volta, pela boca ou pelo ânus, atraiam os insetos e os vermes responsáveis por devorarem lentamente a vítima, naquelas partes em que era incapaz de se defender, como o rosto, ou os pés, e descendo então às partes internas, do lado de dentro da caixa formada pelos botes, onde as moscas faziam ninhadas para os vermes e começavam a comer o corpo da vítima por dentro. O mel impedia que o prisioneiro morresse de fome, obrigando-o a desfrutar do suplício até a morte por infecção.
Mitríades teria levado mais de quinze dias para morrer.
Assustado pela imagem do homem morto, boiando no rio de crueldade derramado pelos tiranos de antanho, a respiração de Hasan parecia perturbada.
Ela correu a mão pelos cabelos dele, procurando oferecer alguma tranquilidade em gestos discretos, confortáveis. Quantos homens bravos ou corajosos sentenciamos à morte cada vez que nos deitamos, meu amor?
Os suspiros, ela sabe, denunciam fraquezas.
O touro de bronze dentro do qual assavam as gentes. Ou Moloque, a quem ofertavam crianças. A inteligência do homem prestou-se ao serviço de elaborar um sistema de tubos que fazia com que os gritos de sofrimento da vítima, sendo assada dentro do touro, saíssem de dentro do animal como um longo mugido lamentoso.
Uma obra-prima da engenharia.
– Se pudesses escolher minha morte… – Hasan não completou o raciocínio, e julgou-se insolente.
– Seria rápida.
– A degola?
– Cicuta.
Não sejamos prisioneiros. Não nos troquem em mercados empoeirados, os corpos daqueles árabes magros amontoados, empanturrados de haxixe, os corpos moles, os pescoços pendendo como cordas levantavam apenas em tragadas. Não sejamos prisioneiros. Não nos façam escolher entre o fosso ou a fogueira.
Al-Zuhrah (Vênus), a estrela primeva, vacilava em erupções vermelhas num céu escuro mais claro. Peregrinos noturnos, feitos de sombra e poeira, subiam por caminhos íngremes. Vinham serpenteando pelas colinas que ladeavam o vale.
Seu sexo estava mais rijo do que nunca, e ela o sentia com suas mãos, os dedos de unhas polidas e sutis desenhando círculos ali. Âmbar e mel. Como demonstração de sua força e virilidade, reis lunáticos ordenavam matanças e elaboravam formas sofisticadas de tortura e morte contra os seus inimigos – espetáculos a serem desfrutados pelos pervertidos do reino, os atrevidos que se excitam quando ouvem gritos de dor, ou donzelas frágeis que não resistem aos desmandos de seus imperadores. Enormes presas de marfim balouçando, suspensas no ar, longe do cemitério de elefantes. Escravos que são espancados até bem perto da morte, antes ou depois de terem desfrutado do prazer conjunto ao corpo de seus senhores e senhoras.
– Estou enfastiado das histórias de reis tiranos, sempre a competir em vilania, em gostos excêntricos e peculiares. São lendas estranhas a corações como o teu e o meu.
– Estranhas tua condição? Tu não és um rei.
– Como não sou um rei, se tenho diante de mim a minha rainha e o meu reino?
Quando as velas se apagaram, não demorou para que dormissem com o calor dos corpos servindo de proteção à penumbra que os envolvia. Suspiravam florestas exóticas e animais ancestrais. O silêncio era o império que do alto da torre se via.
Uma sombra que se esgueirava pelo vale atravessou os pórticos e chegou aos jardins. Subiu a escadaria com a velocidade de um sopro sinistro, um espírito soturno vagando no reino da criação de seu Senhor. Encontrou os amantes abraçados entre as almofadas, e contemplou a forma ou o desenho que seus corpos produziam quando estavam juntos. Fixou a imagem na lousa de sua memória eterna, tendo se tornado, neste instante, um espelho do mundo real que via e refletia.
Hasan, com gestos de sonâmbulo, saiu a persegui-la com sua adaga imaginária. Primeiro pelo quarto, depois escadaria abaixo. O sol já começava a ser recebido pelos primeiros cantos de aves, mas ainda demoraria até o dia clarear. Os golpes dados no vazio faziam a sombra recuar, e um forte vento uivou em todas as direções antes que ela sumisse, engolida pelo céu da alvorada.
A mulher, acordando num susto entre as almofadas, desceu correndo até o pomar apenas para encontrar o amigo conversando sozinho, sob o limoeiro, cercado pelos pavões.