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Contos / Re:Concurso de contos de fantasia e ficção erótica/sensual da Spell.
« Online: Setembro 17, 2015, 02:21:30 pm »
Do Alto da Torre ao Sul do Rio que Corre Pelo Vale



Em teu ventre puseram as tâmaras mais frescas, e do haxixe inebriante destilaram a saliva que teus lábios em noites quentes derrama sobre os meus. Teus seios são os travesseiros dos dias em que fugimos, e neles repousa um rosto combalido, suor herdado de um entardecer sangrento, à espera de um sono que não chega.

– Essa torre em que deitamos é bem velha, meu amor. O nosso quarto, o mais alto. Somente da última janela é que podemos avistar o rio que corre atrás dos morros pardos. Mesmo de noite é possível vê-lo.

– Dizem que foi desta janela que atirou-se o sábio que vivera aqui outrora.

– Atirou-se ao chão?

– Tendo encontrado o céu.

O cheiro de frutas cítricas, nessa época do ano, vem dos pomares e sobe pelas escadarias na noite serena. Hasan, com os olhos semicerrados, observa a dama com o longo cachimbo, já apagado, apoiado entre os seios livres, a manta ocre flutuando como as nuvens que às vezes baixam até o cimo da torre para que os amantes as toquem.

Os meus dedos encontram a tua pele fria ao fim do tato.

– O sono não chega. Conte-me outra história sobre piratas e gênios.

Ela colocou o cachimbo de lado, e sem dar ouvidos ao que disse, pôs-se a acariciar o sexo de seu companheiro. Os sentidos misturavam-se ao gosto das frutas que provaram havia pouco, e ainda ecoando sensações um tanto distorcidas pelo efeito entorpecente do haxixe, uma cor lívida, verde, trazia calafrios e devaneios aos dois.


Os corpos, num movimento espontâneo, afundaram-se nas almofadas violáceas. Na mente de Hasan, melodias de arabescos sutis desenhavam reinos longínquos de lâmpadas para sempre esfregadas. Seu sexo se enrijecia com o peso do corpo de sua parceira.

– Temos como amiga a sedutora hora dos tempos. – disse ela.

– Nosso reino durará por mais três séculos.

Cada resposta demorava semanas de beijos dados delicadamente nas bochechas e nos lábios.

– Quem vos disse?

– A boca de um velho dervixe persa.

– E acreditaste?

– Não mais do que acredito em tuas histórias, ou nas fantasias provençais dos pagãos.

Ela trazia o próprio coração dividido em ramos. Sabia recitar canções sobre heróis que singraram mares e derrotaram gigantes, mas àquela noite qualquer epopeia naufragaria em travessias revoltosas de desejo. O olhar dos dois galgavam curtas distâncias, abriam-se uns enquanto os do outro fechavam-se, e as fustigantes superfícies de contato prometiam continentes povoados pela nostalgia de quando ainda não haviam sido explorados nem em sonhos.

Do lado de fora as palmeiras tremularam. Animais alados resmungaram, interrompendo seus cantos noturnos. A lua saía de trás de uma enorme nuvem marrom. O ventre de sua dama estava exposto à luz de uma vela ou de um lampejo. Ao redor do umbigo concentrava-se a crescente fértil.

– A lua sabes de onde vem? Ou aonde vai?

– Vem de outros corpos ainda maiores do que a Terra ao redor da qual orbita.

– Sabes de coisas misteriosas, minha dama. Por que me escolheste como ouvinte?, como amante?

– Porque tua última torre.

Anos entregaram-se à história de um exército que teve de transpor uma árdua jornada em terras estrangeiras para enfim morrerem à sombra de um penhasco, cercados por uma legião inimiga. A ponta dos teus seios, mamilos tesos e fartos, rosas redondas que me mordiscam de perto e à distância, do alto de penhascos. Penhascos. Teus pés alcançaram os cimos e pisaram lá, as pernas os enredaram em jogos de tabuleiros desperdiçados, as peças de madeira caídas e espalhadas pelo chão de pedra fria que o tapete não cobre. O exército seguia as ordens de um rei que marchava em direção à fortaleza de seu inimigo, um outro rei ou sultão. Os verdadeiros motivos, guardados e transmitidos pelas suas concubinas, evocavam o desejo insólito que o rei marchante tinha em possuir os pés de uma das mulheres do harém do rei encastelado, uma donzela que ele próprio havia visto sendo carregada pelos escravos, em uma liteira, quando da passagem da corte de seu rival, porque tamanho cuidado era dado às extremidades daquela dama que sequer lhe era permitido pisar no chão.

Em algum momento daquela grandiosa dinastia, construída por conquistas e bravura, todo o legado findou-se em destruir a principal joia do tesouro de um falso inimigo. Esforços foram coligidos, súditos movidos nessa direção, séquitos prosseguiram incautos rumo à morte. A emboscada.

– Mas saiba que o rei vencedor foi generoso.

– Por quê? – Hasan os olhos esferas vidro riscado.

– Convocou um artesão para construir uma enorme réplica dos pés de sua donzela, como mausoléu para o seu inimigo, que está enterrado sob eles.

– A dama foi ao menos consultada?

– Diz-se que a ideia partiu dela.

Deu-me um beijo, a revoada de um vulto. Todo império tem por vício a caça de luxuosos e impossíveis requintes. Ela entornou a jarra de água em minha boca. Sobre meu peito escorria ainda. O gosto vinha misturado ao sabor sutil da flor de laranjeira. Pedi que ela se deitasse ao meu lado, e que me contasse ainda mais baixinho sobre os rumos das rotas das estrelas, e da hipótese de reinos situados além delas – as especulações que um viajor oculto conjurou com seu cetro antes de num piscar de olhos deslocar-se para um lugar muito distante.

Carícias feitas por tigres que jejuam em jardins. Ela sugeriu que nessas outras plagas, visitadas pelo nosso espírito apenas nos instantes mais sublimes, pudéssemos encontrar como que cópias de nós mesmos.

– Acredita que somos feitos em pares? – perguntei a ela.

– Um par somos tu e eu. Somos feitos aos milhares. Milhares de tus, milhares de eus. Quanto mais alto vamos, mais perfeitas são as cópias que encontramos.

– Somos verticalmente aperfeiçoados?

– Talvez. – ela respirou, e de um beijo que relutava em terminar veio o que disse – Há torres bem mais altas que a tua.

– Já estiveste em alguma delas?

– E perguntas? Esqueceste que és meu companheiro na busca destas alturas e profundezas? Há versões mais lapidadas de mim e de você. Algumas formas mais toscas, outras mais belas.

As charadas e enigmas espantam o sono. Somos tudo o que do outro temos – Hasan pensou.

– O que me impele ou o que me atrai… – ele apalpou as palavras, mas o rio que vinha o impedia de escolhê-las com mais cuidado do que lhe autorizava a intuição – É a necessidade de transpor um abismo que me cerca.

– Pense nos anjos brilhando sobre dunas invisíveis.

Teus braços me alcançariam onde quer que eu me perdesse. Iriam até os istmos em que a névoa se dissipa. Encontrariam a mim descansando ao lado das estátuas imperfeitas do teu ventre, dos teus braços, feitas por artesãos de madeira. Um cometa que a cada século reaparece no céu e percorre o firmamento será responsável pelo gotejar das profecias, mas teus braços. Da cadência delicada do ritmo com que respiras, sinto a respiração de outros amantes que trazes escondidos no no teu palácio.

– Estas criaturas mais perfeitas do que nós, também deverão amar com mais perfeição. – disse Hasan.

– Já sentiste algum amor que não era pleno? Perfeitos ou não, todos eles se amarão em plenitude, e seus corpos serão igualmente completos um para o outro. As formas mais perfeitas, sempre inacessíveis às cópias mais toscas. A nós, é apenas permitido imaginar, sempre com imperfeição, o voo dessas outras almas que tentamos imitar.

Ela sentou-se no colo de seu amante, e uma mordida carinhosa dada em seu ombro fez com que estremecesse. Os dedos corriam pelas coxas à procura do sexo da dama, estimulado à força de um crespo toque sabor de uma saliva que era engolida a seco, os dedos se inseriam em poucas notas de cravo ou lábios vertiginosos invadidos pela ânsia de juntarem-se os amantes em um casulo selado dentro de uma árvore da qual jamais seriam retirados, seus corpos para sempre apertados um contra o outro. A árvore morreria e o casulo seria soterrado pelos cabelos em que Hasan desejava afundar o rosto e o nariz e ali desfalecer, e morrer asfixiado pelo perfume dos cachos.

As artes do amor nos ensinaram uma civilização de paixão e intelecto. Enquanto conversávamos, enquanto decifrávamos os labirintos um do outro, os enigmas que nos desafiavam, quebra-cabeças de peças de mármore caíam com o estrondo de uma colisão de mundos. Ela teria recitado ao seu amante um poema persa que versejava sobre os prazeres do amor como substituto para as absurdas atribulações da vida. Transitando entre o sono exuberante e a vigília embriagada teriam divisado, os dois, uma taverna em que os difíceis anos da guerra puderam ser esquecidos pelos alegres seres que agora se encontravam ali para beber e cantar. Guerreiros que viram morrer os seus amigos, ou damas que do alto de suas torres choraram à espera de seus parceiros, ali encontravam novamente razões para sorrirem limas douradas.

– Nessas horas creio que somos mais velhos do que nossos corpos fazem parecer que somos. – ele teria balbuciado.

– As memórias de um homem são as memórias de todos os homens. Queres atravessar o abismo, mas não existe abismo.

– Depois de caída a nossa torre, tu serás só uma miragem.

– Assim como a ti, ou aquilo que tu eras.

– Então nós já não existimos desde já?

– O amor não deveria deixar-te espaço para a dúvida.

– Pois foi ele quem me apresentou a ela. Amar me trouxe à vida.

Deite-se comigo em sonos povoados por folhas que caem lentamente no jardim que cultivamos. Mergulhe comigo até as profundezas deste mar em que ungimos o povo que nascerá de nós. Tuas pernas minhas mãos sentem em giros cada vez mais espantosos, em jorros de marfim. Teu sexo, meu amor, me sobe e me agarra em pleno voo, um pássaro que pousou em nós, ou uma ânfora que se arrebenta contra o mármore.

Provaste comigo sabores diferentes, e tu me apresentaste a eles, e de mim também provaste o meu sabor.

– Deves saber de alguma história sobre sabores estranhos. – ele sugeriu a ela.

– Por certo já ouviste falar dos gostos exuberantes dos califas abássidas. Saibas que há muitos anos morreu um velho califa que ficara conhecido pela sua predileção por pimentas muito picantes. Incitava os comerciantes e os marujos a buscarem pimentas ardidas em portos cada vez mais distantes e exóticos.

– Pimentas? Há pimentas bem poderosas mais ao leste.

– O costume de comer pimentas e temperos tão fortes fez com que sua sensibilidade diminuísse. Ao fim da vida, quase já não sentia mais o sabor das coisas. Por isso precisava de temperos cada vez mais agressivos.

– Qual pimenta é tão forte que nos impeça de comê-la?

– Antes de tornar-se um veneno, a pimenta mais forte que qualquer homem já comeu foi ser encontrada no extremo oeste, além do Chifre, nas ilhas além dos oceanos. É vermelha, e grande como um diamante.

– Além dos oceanos?

– É de onde voltou o heroico navegante que trouxe ao califa sua pimenta. Ele conta que no ponto mais distante em que chegara o céu descia a ponto de encontrar-se com o chão e ali viviam pessoas que tinha três pés de altura, ou metade do nosso tamanho.

– Suas cabeças chegam a tocar o céu?

– Ninguém acreditou no viajante, meu amor. Por que tu e eu acreditaríamos?

– Porque nessa noite todas as histórias fazem igual sentido.

– Imagine quão terrível era o hálito do califa. Os súditos nunca o olhavam de frente. Os seus cozinheiros não viviam muito além de três ou quatro banquetes.

Os glutões veem na comilança a razão de estarem vivos.

Os criminosos caprichosos cobrimos com mel, e os amarramos, cada extremidade atada ao tronco de uma palmeira, a fim de que ele fique estendido sob o sol, coberto com a grossa camada de mel, que vai se secando com o calor. Os insetos, gafanhotos, mosquitos, sentem-se atraídos pelo sabor adocicado do mel cristalizado na pele queimada pelo sol. Até que o sujeito morra ali, sem forças, sedento, esgotado, infestado de animais lhe comerem o adocicado crocante. A morte doce.

Uma morte amarga e azeda é aquela proporcionada pelos antigos persas, no chamado suplício dos botes. Mitríades teria sido condenado a uma morte dessas, como punição pelo assassinato de Ciro, o Jovem. Foi aprisionado dentro de uma caixa feita com dois botes, colocados um sobre o outro, e deixado boiando em um rio, com a cabeça, as mãos e os pés à mostra. Diariamente obrigavam-no a ingerir doses de leite e mel, que, ao serem cuspidos de volta, pela boca ou pelo ânus, atraiam os insetos e os vermes responsáveis por devorarem lentamente a vítima, naquelas partes em que era incapaz de se defender, como o rosto, ou os pés, e descendo então às partes internas, do lado de dentro da caixa formada pelos botes, onde as moscas faziam ninhadas para os vermes e começavam a comer o corpo da vítima por dentro. O mel impedia que o prisioneiro morresse de fome, obrigando-o a desfrutar do suplício até a morte por infecção.

Mitríades teria levado mais de quinze dias para morrer.

Assustado pela imagem do homem morto, boiando no rio de crueldade derramado pelos tiranos de antanho, a respiração de Hasan parecia perturbada.

Ela correu a mão pelos cabelos dele, procurando oferecer alguma tranquilidade em gestos discretos, confortáveis. Quantos homens bravos ou corajosos sentenciamos à morte cada vez que nos deitamos, meu amor?

Os suspiros, ela sabe, denunciam fraquezas.

O touro de bronze dentro do qual assavam as gentes. Ou Moloque, a quem ofertavam crianças. A inteligência do homem prestou-se ao serviço de elaborar um sistema de tubos que fazia com que os gritos de sofrimento da vítima, sendo assada dentro do touro, saíssem de dentro do animal como um longo mugido lamentoso.

Uma obra-prima da engenharia.

– Se pudesses escolher minha morte… – Hasan não completou o raciocínio, e julgou-se insolente.

– Seria rápida.

– A degola?

– Cicuta.

Não sejamos prisioneiros. Não nos troquem em mercados empoeirados, os corpos daqueles árabes magros amontoados, empanturrados de haxixe, os corpos moles, os pescoços pendendo como cordas levantavam apenas em tragadas. Não sejamos prisioneiros. Não nos façam escolher entre o fosso ou a fogueira.

Al-Zuhrah (Vênus), a estrela primeva, vacilava em erupções vermelhas num céu escuro mais claro. Peregrinos noturnos, feitos de sombra e poeira, subiam por caminhos íngremes. Vinham serpenteando pelas colinas que ladeavam o vale.

Seu sexo estava mais rijo do que nunca, e ela o sentia com suas mãos, os dedos de unhas polidas e sutis desenhando círculos ali. Âmbar e mel. Como demonstração de sua força e virilidade, reis lunáticos ordenavam matanças e elaboravam formas sofisticadas de tortura e morte contra os seus inimigos – espetáculos a serem desfrutados pelos pervertidos do reino, os atrevidos que se excitam quando ouvem gritos de dor, ou donzelas frágeis que não resistem aos desmandos de seus imperadores. Enormes presas de marfim balouçando, suspensas no ar, longe do cemitério de elefantes. Escravos que são espancados até bem perto da morte, antes ou depois de terem desfrutado do prazer conjunto ao corpo de seus senhores e senhoras.

– Estou enfastiado das histórias de reis tiranos, sempre a competir em vilania, em gostos excêntricos e peculiares. São lendas estranhas a corações como o teu e o meu.

– Estranhas tua condição? Tu não és um rei.

– Como não sou um rei, se tenho diante de mim a minha rainha e o meu reino?

Quando as velas se apagaram, não demorou para que dormissem com o calor dos corpos servindo de proteção à penumbra que os envolvia. Suspiravam florestas exóticas e animais ancestrais. O silêncio era o império que do alto da torre se via.

Uma sombra que se esgueirava pelo vale atravessou os pórticos e chegou aos jardins. Subiu a escadaria com a velocidade de um sopro sinistro, um espírito soturno vagando no reino da criação de seu Senhor. Encontrou os amantes abraçados entre as almofadas, e contemplou a forma ou o desenho que seus corpos produziam quando estavam juntos. Fixou a imagem na lousa de sua memória eterna, tendo se tornado, neste instante, um espelho do mundo real que via e refletia.

Hasan, com gestos de sonâmbulo, saiu a persegui-la com sua adaga imaginária. Primeiro pelo quarto, depois escadaria abaixo. O sol já começava a ser recebido pelos primeiros cantos de aves, mas ainda demoraria até o dia clarear. Os golpes dados no vazio faziam a sombra recuar, e um forte vento uivou em todas as direções antes que ela sumisse, engolida pelo céu da alvorada.

A mulher, acordando num susto entre as almofadas, desceu correndo até o pomar apenas para encontrar o amigo conversando sozinho, sob o limoeiro, cercado pelos pavões.

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Off-Topic / Re:O que você está ouvindo?
« Online: Setembro 30, 2014, 08:57:59 pm »
Andei fazendo umas misturebas aqui. Essa ficou bem frita.


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Off-Topic / Re:O que você está ouvindo?
« Online: Setembro 04, 2014, 10:01:01 am »

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Off-Topic / Re:O que você está lendo?
« Online: Julho 29, 2014, 12:59:43 am »
Acho esse tipo de discussão ou... ou uma besteira. Eu não vejo isso entre os amantes de música, por exemplo. Quem ouve num iPod não precisa convencer aquele que coleciona vinis, ou CDs, sobre as supostas vantagens do artefato tecnológico. E vice-versa. E também não creio que uma nova tecnologia, por si só, possa fazer alguém ler mais: do contrário, eu poderia igualmente chamar o Mandraque e o Madruga de fetichistas  :b

O pior é que eu acho que, se a gente parar de fla-fluizar, dá pra sair uma discussão muito interessante daí. É o lance do suporte versus formato. Por exemplo: o vinil de 72 rotações, dividido em Lado A e Lado B, com mais ou menos 20 minutos em cada lado, produziu um formato de álbum que continuou a ser copiado até depois da invenção do CD e do DVD, que eram suportes e mídias que permitiam outras possibilidades.

Fazendo essa analogia pra questão dos livros físicos e e-books: quais foram os escritores que aproveitaram o formato virtual pra escrever um livro que só faria sentido se fosse lido assim? Em outras palavras: quem aproveitou isso pra produzir ganhos estéticos? Acho que dá pra fazer muita coisa interessante mesmo, aproveitando esse lance de ficção interativa.

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Off-Topic / Re:O que você está lendo?
« Online: Julho 24, 2014, 03:00:54 pm »
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E é execrável porque o que interessa é o conteúdo, né?

Não apenas. Um livro (sentido amplo) não é apenas o que está escrito nele, mas também a maneira na qual o conteúdo é apresentado, incluindo a organização do texto, a diagramação e mesmo a escolha da capa, o que é fácil de notar pela diferente experiência ao ler uma (foto)cópia mal-impressa, um arquivo mal diagramado, algo em formato .txt e um livro impresso comum.

Não sei quem foi quem disse que livro é só o que está escrito nele. Eu me referi ao conteúdo. E em se tratando de diagramação de apresentação de texto, não tenho a menor dúvida de que é muito melhor ler um livro diagramado num papel do que numa telinha que cabe na sua mão. Não vejo como diabos a escolha da capa pode afetar no conteúdo. O único efeito que tem é causar alguma impressão em quem assa olhando pela vitrine. Quanto à diagramação e a organização do texto, não se perderão num xerox ou num livro velho conservado.

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Off-Topic / Re:O que você está ouvindo?
« Online: Julho 24, 2014, 01:10:37 pm »
Aquelas músicas que te fazem pensar que a humanidade foi bem sucedida.


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Off-Topic / Re:O que você está lendo?
« Online: Julho 24, 2014, 01:09:58 pm »
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A bateria pode acabar, o negócio pode dar um tilt, ou os alienígenas podem mandar um pulso electro-magnético e acabar com a parada. E a não ser que você mantenha sua biblioteca nas nuvens, você corre o risco de perder a bagaça toda.

As páginas podem ser molhadas, você pode derrubar café, sua casa pode ser incendiada e sua biblioteca, queimada. Livros físicos podem ser tão vulneráveis quanto suas contrapartes digitais. E tecnicamente, ninguém precisa de um gadget para ler seu livros, especialmente se eles estão formato .epub ou o imortal .pdf, que podem ser lidos e copiados até em uma geladeira.  :P

E não é uma questão de substituir livros físicos - cada qual tem suas funções e vantagens, na qual cabe ao leitor decidir qual é mais interessante para si.

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Isso é execrável

Porque seria?

Se você quer discutir por migalhas, então digo que não. Não pode, porque eu não tomo água nem café perto dos meus livros.

E é execrável porque o que interessa é o conteúdo, né? Isso é coisa de quem nunca PRECISOU ler um determinado livro.

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Off-Topic / Re:O que você está lendo?
« Online: Julho 24, 2014, 11:09:27 am »
Acho o Kobo e o Kindle ótimos gadgets. Quebram um puta galho. É ótimo pra compactar sua biblioteca, pra baixar livros que você não encontraria fisicamente, e mais uma porrada de outras facilidades (como a busca por palavras-chave). Mas, desculpa, isso, pra mim, nunca vai substituir o livro físico. Não quero ter que depender de um gadget pra ter que ler um livro, entende? É isso, bem simples. A bateria pode acabar, o negócio pode dar um tilt, ou os alienígenas podem mandar um pulso electro-magnético e acabar com a parada. E a não ser que você mantenha sua biblioteca nas nuvens, você corre o risco de perder a bagaça toda.

Também acho que fetichizar livro não rola. Conheço gente que não lê livro emprestado porque gosta de ter o seu. É o mesmo cara que não lê livro xerocado, ou livro de biblioteca, e compra livro pela beleza da capa e da edição. Isso é execrável, mas também não dá pra ficar deslumbrado com a tecnologia.

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Apresentação / Re:[PODCAST] Entrevistas com os Spellianos
« Online: Maio 28, 2014, 12:34:47 pm »
Vai ser sobre RPG ou atualidades?

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Off-Topic / Re:O que você está ouvindo?
« Online: Abril 28, 2014, 12:46:21 pm »
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Contos / O Caso Colombo
« Online: Abril 08, 2014, 11:50:43 am »
Metz, França, 1977

 

Digo que as circunstâncias que envolvem o Caso Colombo me parecem misteriosas até hoje. O final, por ser fantástico, não convenceu nem a mim, nem aos outros da Companhia. O fantástico, quando impera sobre o real, parece por demais profético – algo próximo do inconclusivo. O Caso Colombo, dado como resolvido, continua inexplicado. Colocaram-no na gaveta dos casos estranhos.

Retomo o Caso Colombo porque acredito que estamos hoje diante de uma situação semelhante. Epifenômenos de uma mesma manifestação? Se são a mesma coisa ainda não posso afirmar, mas os sintomas e os eventos que tenho diante de mim neste instante me remetem diretamente ao caso do qual falo, que se sucedeu há mais ou menos dez anos, no Brasil. É impossível não enxergar as semelhanças.

- The subject of this speech is a topic which has been discovered recently and wich may not exist at all… – é a voz de Philip K. Dick, a quem nos puseram para seguir já há cinco anos. Sua voz ainda ecoa, desde essa tarde em que pronunciou seu discurso e que me obrigou a repensar algo que nos instruíram a manter em silêncio.

- É melhor mantermos distância de algo do qual ainda não sabemos nos defender. – disse o Pierre, fechando a porta do corredor atrás de mim. – A Companhia te põe pra investigar esses sujeitos que desconfiam demais da realidade e aí dá nisso! Você acaba não sabendo no que acreditar também!

Era 1967, a Companhia havia acabado de abrir uma filial em São Paulo, e estávamos eu e o Pierre encarregados de treinar a nova equipe. Sabíamos que nossa facilidade com o idioma – facilidade essa que, no meu caso, havia sido garantida pela naturalidade brasileira de meu pai – havia sido o motivo para que nos delegassem tal tarefa. Dois anos no Brasil, o qual percorremos de norte a sul procurando novos agentes que pudessem se interessar pelo trabalho (tínhamos de explicar a eles que a Companhia nada tinha a ver com o Comando de Caça aos Comunistas, e que não trabalhava para as vontades de nenhum governo específico), e acabamos por vasculhar os mais obscuros departamentos de investigação, detetives particulares falidos, lunáticos aficionados por teorias da conspiração, taxistas, telefonistas desajustados, motoristas de fuga. Ao final de Setembro havíamos fechado com quatro indivíduos: Marvin da Cunha, carioca, de 32 anos, ex-policial, trabalhou durante alguns anos como detetive particular e seu único trabalho foi seguir o marido milionário de uma cliente neurótica. Chegamos até ele porque nos pareceu ser dono de um faro que faria inveja a um cão perdigueiro – alguém que nunca perdia de vista os seus alvos. Havia também Emerson das Neves, o novato professor de História de um colégio católico. Chamou nossa atenção por sua memória quase perfeita. Os outros eram os irmãos Flávio e Lívio, o primeiro um jornalista recém-formado, que, pelo seu ritmo de leitura, parecia ter o potencial de esgotar toda a literatura humana no ciclo de uma vida, o segundo um museólogo colecionador de tudo que se possa imaginar e perito em reconhecer padrões. Conseguimos convencer todos eles de que o trabalho para a Companhia era recompensador e eternamente interessante e curioso. Isso, claro, se você estiver interessado em seguir, investigar, e catalogar freaks e paranoicos ao redor do mundo.

Mas só fomos testados de fato no ano seguinte, quando o comitê central, lá de Paris, nos recomendou que investigássemos um indivíduo que ainda não nos havia chamado a atenção. Tratava-se de Aquiles Colombo, compositor que contava com certo renome nos círculos especializados, e que tinha alguns apreciadores entre os músicos mais consagrados da incipiente vanguarda musical brasileira. Era aluno de Koellreutter, grande divulgador do dodecafonismo no Brasil. Aquiles, assumido seguidor do compositor alemão que havia imigrado para o Brasil em 1937, tinha, desde 1963, um ateliê musical em São Paulo, ao qual compareciam somente os alunos mais inclinados a perverter e subverter o tradicional sistema tonal. Ali fazia-se música até com cascas de banana. Os métodos do Colombo eram herdeiros diretos dos de Koellreutter, com quem mantinha contínuo contato e que, vez ou outra, comparecia ao seu ateliê para dar aos alunos de Colombo alguns minutos de aventurosa sabedoria musical. Soubemos que tanto Colombo e Koellreutter já estavam sendo investigados pelos agentes do governo ditatorial, que estavam interessados mais no caráter antinacionalista de suas composições, evidenciado por uma querela com o músico Camargo Guarnieri, do que em qualquer possibilidade de negação da realidade. Desconfiávamos, na verdade, que nenhum desses agentes sabia que da obra de Aquiles pudesse sair algum contato com seres de outro mundo. Também disso só iriamos saber mais tarde.

A central exigiu que concentrássemos nossos esforços no Caso Colombo e nos esquecêssemos ou que arquivássemos todas as outras investigações que estávamos conduzindo e que ainda não nos haviam fornecido resultados satisfatórios: uma senhora de 72 que morava sozinha com dois poodles e sonhava com horóscopos; um padeiro, torcedor da Lusa, que, quando criança, queria ser astrônomo e, nos momentos de tédio, pensava ver constelações desenhadas nos segundos em que a farinha do pão se distribuía pela fôrma; um âncora de telejornal que pensava ser também o telespectador; um ex-barbeiro do Brás, que agenciava prostitutas e que, sem saber, dava a elas o mesmo nome das mulheres de Vinícius de Moraes: Beatriz; Regina; Lila; Maria; Nelita; Cristina. Abandonamos estes casos e nos concentramos em Colombo. Tivemos acesso às suas composições, as quais foram devidamente estudadas. Tínhamos uma rotina de reuniões nos cafés do centro que seguia um esquema de rodízio para minimizar suspeitas. Devo dizer que o regime, se nunca soube de nossas atividades, pelo menos nunca nos incomodou. Cada dia era num café diferente. Comparecíamos com os dados levantados e elaborávamos os relatórios, os quais não guardavam de início nenhuma surpresa, nada de especial. A central era mais misteriosa que os casos que nos ordenava investigar, e, diante da mudez do material que levantávamos, era impossível que não questionássemos as razões daquela investigação absurda. Não sabíamos o que estávamos fazendo nem para onde estávamos indo.

Pierre punha o chapéu sobre os olhos e soprava para o alto a fumaça do charuto.

- É central é sempre assim. De início parece tudo comum, até que acontece algo… Eles sabem o que vai acontecer antes de nós. Estamos aqui só pra relatar. – dizia, com certa resignação.

- E como sabem? – perguntava Emerson, nosso curioso professor de História.

- Disso eu não sei. Conheço alguns que trabalham lá, e imagine só: são os tipos mais estranhos que você vai encontrar nessa vida. São capazes de enxergar coisas onde parece não haver nada, tipo aquelas imagens que você só consegue ver se desfocar o olho. Eu me pergunto onde é que eles arranjam essa gente.

- Essa gente? Quer dizer que nenhum de nós…? – perguntou Marvin.

- O que? Alguém aqui nutre essas esperanças? Acho melhor abandoná-las. Ninguém aguentaria o treinamento. Mas se quiserem, podem tentar. Vocês precisariam de umas cinco condecorações que nunca sequer vi a cor.

Num apartamento da Zona Sul, próximo ao ateliê do Aquiles, montamos o QG. As mesas permaneciam cobertas com notícias de jornal. Nos fundos os irmãos Flávio e Lívio ouviam e rebobinavam incessantemente as gravações que conseguíamos registrar nas sessões sonoras do ateliê: experiências musicais absurdas, conversas a respeito de métodos inusitados que prometiam polêmicas caso fossem expostos ao público. Instalamos escutas e nos revezávamos para ouvirmos. Anotávamos tudo que pudesse parecer suspeito.

Domingo 16 às 11:37:44’ – Aquiles em uma sessão particular com o Aluno 7 diz: “Música é comunicação e não é”.

 

Quarta-feira 19 às 17:22:31’ – Em uma discussão que contava com os Alunos 6 e 7 Aquiles diz: “o músico não tem de querer dizer nada, comunicar nada, expressar nada”.

 

As anotações seguiam nesses moldes e não pareciam nos indicar nada que pudesse justificar as recomendações do comitê central. Tanto Aquiles como Hans-Joachim Koellreutter, que compareceu ali em Setembro para ministrar um seminário para os alunos do ateliê, estavam ainda afetados pela campanha que se fazia contra os dois. Naqueles tempos ufanistas o nacionalismo e a exigência por um método musical eminentemente nacional pareciam dominar a regra das discussões, às quais Aquiles e Koellreutter compareciam apenas como representantes de uma musicalidade distante e inaceitável para o que deveria ser a música brasileira. Essas querelas não nos pareciam ser um material válido para aquilo a que estávamos acostumados a investigar até então. Apenas ofuscavam o verdadeiro motivo pelo qual nos movíamos. A discussão começou 17 anos antes, com uma carta escrita pelo compositor Camargo Guarnieri, endereçada aos músicos do Brasil, na qual criticava indiretamente a pedagogia do músico alemão. A campanha ali iniciada, por sua vez, continuava até hoje. Naquela década de 60 veríamos ainda outros atritos musicais: os festivais da canção – aos quais tivemos de comparecer por conta da investigação – eram capazes de colocar contra si parcelas emocionadas de público (a semelhança com a exibição d’A Sagração da Primavera, no começo do século, chamou nossa atenção por um tempo, e pensamos que houvesse ali um germe comum – mas os cenários se provaram muito distintos e o que era só um palpite foi descartado, sem nenhuma outra evidência que o sustentasse). Organizou-se a marcha contra a guitarra elétrica, entendida como símbolo do colonialismo musical (pensamos em Platão, que n’A República diz que a rebeldia é análoga às mudanças musicais). Mais tarde os próprios militantes mudaram de lado. Alguns agiam na contramão da campanha difamatória movida contra Koellreutter. Sua absolvição, contudo, só seria conseguida apenas no final da década, com a chegada dos músicos que se diziam tropicalistas. A trupe chamou mais a atenção dos censores do governo do que a nossa, e a eles dedicamos apenas algumas breves anotações. Alguma efervescência cultural, por mínima que fosse, mesmo no prenúncio daqueles tempos que viriam mais tarde ser chamados de anos de chumbo, não se converteu em material de interesse. Relatórios e anotações vazias acumulavam-se no apartamento, e as reuniões nos cafés acabaram, por fim, sendo canceladas, mesmo a contragosto. Acabaram-se os ambientes das esfumaçadas intrigas futebopolíticas. O Santos seria campeão, e o Pelé o artilheiro.

- Tem tempo pra um cigarro? A Companhia está bem descontente com o material que estamos enviando.

- Mas, Pierre… Eles não foram nada claros naquilo que queriam.

Aquiles era um objeto de estudo excêntrico (e não só porque era torcedor do Botafogo). Tanto pelos seus métodos pouco convencionais, quanto sua paixão pela experiência da novidade, eram motivos sérios e pareciam bastar para que continuássemos envolvidos com o caso. Sua vivacidade nos cativava, mas a chance de que aquelas observações pudessem estar sendo infrutíferas afetou tanto a mim quanto ao Pierre, e nosso desânimo se alastrou para o resto dos membros da equipe, que eram pouco experientes e mais suscetíveis às quedas de moral. Para os agentes do Estado, o ateliê era um antro de drogas e exibicionismo musical.

- Acho que devemos conduzir experiências com estes compostos. – disse Pierre. As menções ao ácido lisérgico e ao consumo de cânhamo eram comuns no dia-a-dia do ateliê. Ninguém se opôs à sugestão de Pierre, que começou a experimentar os estimulantes, psicotrópicos, e alucinógenos. Pensei que pudesse levantar o moral das tropas. Anotava as reações:

 

Experiência com LSD #5 17:19:51’’ – Sensação crescente de que a qualquer momento irei fechar meus olhos e acordar em um lugar completamente diferente.

 

- Sabe que sob esses efeitos aprendi a apreciar melhor a música que eles fazem? Não sinto mais falta dos refrões, da batida em quatro por quatro… – dizia Pierre. – Música é, de fato, ruído. – e isso o experimentalismo do ateliê de Aquiles deixava claro: vibrafones estridentes; pianos que eram tocados da maneira menos ortodoxa possível, os quais eram reformados por Aquiles e seus alunos que, por entre as cordas, inseriam pregos, borrachas, arames; tubos de PVC que, conforme o volume de água, alcançavam certas notas não alcançadas pelos instrumentos convencionais. Todos esses e muitos outros sons éramos obrigados a ouvir diariamente naquelas semanas de intensa observação. Com o tempo acabamos nos acostumando. O receio de que as experiências do Pierre fossem dificultar o nosso trabalho mostrou-se sem fundamento. Ele não teve problemas em limitar os efeitos produzidos pelo ácido lisérgico ao tempo e espaço dedicados à rigorosa observação científica. Sabia com o que estava lidando. É uma espécie de conhecimento antropológico geral entre os que trabalham para a Companhia: para que se entenda o que se está a observar, em algum momento será necessário que o observador recorra aos estímulos buscados pelos observados, sejam eles drogas, sexo, música, ou qualquer outra coisa que possa servir como estímulo. O LSD, além de ter feito Pierre ver derreterem as paredes do quarto, não fez progredir o caso – o ácido só revelou verdades a quem já tinha pistas sobre elas. E nós não tínhamos nada.

Foi numa tarde banal, enquanto o Lívio analisava um método composicional pensado por Colombo. O método lidava com dodecaedros sobrepostos em planos tridimensionais. Os dodecaedros deveriam servir para os músicos como uma pauta musical a ser seguida. A distribuição das notas e dos silêncios, ajustados aos ângulos da figura, indicavam a intensidade e a duração dos sons que deveriam ser executados. Para o Lívio o resultado era sempre uma barulheira na qual, só com uma observação bem atenta, se podiam notar alguns padrões que combinavam as vontades dos músicos, aos quais era dada a liberdade do improviso, e a regência da norma geométrica. O som, distribuído espacialmente pelos timbres mais graves, parecia dar uma sensação de preenchimento seguido por vazio – som e silêncio. Flávio, na escuta, pediu para pararmos com a audição, para que fôssemos ouvir a conversa que Aquiles iniciava no telefone. Ele recebia uma ligação do Dr. Kahn, um cientista e inventor que parecia ser amigo de longa data de Aquiles, com quem compartilhava uma curiosidade científica um tanto ingênua. Ele aparecia mencionado no relatório apenas uma vez, numa citação que Aquiles fez a ele enquanto explicava para o Aluno 6 a questão dos microtons indianos. Não sabíamos quem era. Os seus dados eram desencontrados, e ninguém mais o mencionara. Seu primeiro nome era Anúbis. Provavelmente um amigo da família de Aquiles.

- Venham aqui ouvir isso. – disse Emerson, e pegamos, cada um, um fone. Transcrevo o que ouvimos:

DR. KAHN: A Lente L.

AQUILES: O que tem?

DR. KAHN: Consegui aumentar a potência em vinte vezes. Preciso que você venha aqui ver. Vai adorar.

AQUILES: O que você está vendo?

DR. KAHN: Não dá pra descrever.

AQUILES: Como conseguiu?

DR. KAHN: Acidente. Tenho as anotações aqui, mas tenho medo de não conseguir reproduzir a experiência, porque não sei exatamente como foi. Precisamos tentar de novo, mas por enquanto já temos uma Lente L bem potente.

Aquela conversa servia como prova de que não estávamos cobrindo todos os espaços.

- Estou decepcionado com a equipe. Como é que algo assim passou despercebido? Ninguém relatou nenhuma conversa semelhante esse tempo todo? – Pierre perguntava.

- De quem foi a falha?

- Com certeza a central já estava de olho. E pra nós passou despercebido. Eles se apegam aos detalhes. Devem ter outra equipe aqui além da nossa.

- Você acha?

- Merde!

De quê se tratava a Lente L? Não fazíamos a menor ideia do que estavam falando. A conversa parecia retomar um ponto do qual não tínhamos conhecimento, como se tivesse se mantido além do nosso alcance. Não havia a menor possibilidade de Aquiles saber que estava sendo observado. Quer dizer, mesmo que soubesse, não seria de nossa investigação que ia ter medo, mas da investigação dos meganhas, que era bem possível que já estivessem pensando em leva-lo pra algum porão, pra poderem submetê-lo a algum interrogatório macabro. Não haviam delatores no ateliê, mas os agentes do DOPS sabiam que o Aquiles não era o maior entusiasta do regime. Aquela conversa ao telefone nos deixou com medo de o perdermos para os caras do DOPS, que poderiam acabar levando-o embora antes que viéssemos a saber do que se tratava a Lente L.

Para o Dr. Kahn o mundo não parecia existir fora de seu laboratório, e ele saía muito pouco. Tudo o que sabemos dessa história foi o que conseguimos extrair de seu diário antes que ele caísse nas mãos do regime. Mais tarde quem caiu foi o próprio Aquiles, que foi interrogado (apenas especulamos sobre o que pode ter sido perguntado a ele, porque não conseguimos acessar os documentos), torturado, e depois solto, para depois ser morto em circunstâncias desconhecidas. O fato de Aquiles ter sido pego pelo regime antes de sua morte fez com que o público, anos depois, acreditasse em um assassinato perpetrado pelos homens do governo, como pareceu ser comum durante aqueles anos. Ninguém desconfia da outra versão da história, a qual só a Companhia aceitou como explicação oficial.

Consta que Aquiles, ao chegar no laboratório do Dr. Kahn, não hesitou em olhar no microscópio apelidado de Lente L. O que ele enxergou ali parece ser o mesmo objeto mencionado por Philip K. Dick no seu discurso na tarde de 1977, na convenção sobre ficção científica em Metz, na França. Os dois falam sobre formas geométricas dotadas de inteligência, capazes de se comunicarem conosco. Dick não precisou de um microscópio para enxerga-las, o que nos deve sugerir que elas, agora, dez anos depois, parecem estar mais aptas a se movimentar na nossa realidade. Aquiles observou aquelas criaturas bidimensionais se movimentando e produzindo efeitos espetaculares na lente do microscópio. Ordenavam-se segundo um padrão específico, que se alterava conforme os estímulos sonoros ao redor, ora como círculos, ora como quadrados, triângulos, às vezes mudando de forma e envolvendo outra infinidade de formas poligonais, no que parecia ser uma dança de cristais reluzentes. No caso do escritor, um raio rosa emitido pelo reflexo da luz no colar de uma moça que até então havia aparecido para ele somente em sonhos, foi capaz de produzir essas figuras. Dick escreveu sobre elas, e em seus escritos disse ser capaz de interpretar as mensagens, aquilo que queriam dizer, como evidências de uma realidade paralela e simultânea. Aquiles interpretou-as de modo diferente, pensando que se tratassem de seres da mesma realidade que a dele, distinta por ser bidimensional e microscópica. Tentou compor músicas para se comunicar com elas. A única resposta que obteve foi a sua morte, que não sabemos se foi desejada, premeditada. Seu corpo, sem nenhum vestígio de violência, foi encontrado duas semanas depois de ter sido solto do interrogatório. Depois da soltura resolveu dedicar-se exclusivamente à composição de um idioma que pudesse servir para o contato. Consta até que deixou de comparecer ao ateliê, e não respondeu às ligações e visitas de seus alunos. Depois de sua morte o Dr. Kahn quebrou todos os vestígios de suas descobertas e foi-se embora do Brasil. Não sabemos onde se encontra.

- É melhor mantermos distância de algo do qual ainda não sabemos nos defender. – a frase de Pierre, o lema da Companhia, se repete em minha memória.

O escritor americano parece ter encontrado um jeito de se comunicar e de minimizar a hostilidade desses estranhos seres geométricos. De que são reais não há dúvidas: mataram Aquiles. Mas como acessá-los? O que o compositor e o escritor têm em comum? A vida de Philip K. Dick, mais do que a de Aquiles, parece ser pontuada por estranhas coincidências. O seu uso excessivo de drogas não é capaz de descartar essas evidências. Dizemos, por aqui, que elas até acentuam a sua veracidade.

A maneira com a qual o escritor americano decidiu expor a sua descoberta apenas nos garante um privilégio. Ninguém o levará a sério. Só a Companhia, a qual já deve estar sabendo dos perigos que corre, porque, contrariando aquela afirmação de Karl Marx que diz que a história se repete enquanto farsa, no mundo, no nosso mundo, a reincidência de certos eventos estranhos pode muito bem ser interpretada como uma ordem, ou uma desordem, ocultas. Estamos longe da verdade. Sabemos apenas aquilo que a loucura e a criatividade estão dispostas a dizer, mesmo que suas intenções sejam ambíguas e perniciosas. O Caso Colombo continua inexplicado. Algum outro caso (OVNIS, aparições, mestres do disfarce) será capaz de explica-lo? A morte de Aquiles era muito bem um aviso para que não tentássemos nos comunicar com essas outras formas (o que elas teriam para nos dizer? Haveriam se aproximado primeiro de Aquiles por conta de seu método geométrico de composição? Mataram-no porque se irritaram com a incomunicabilidade de sua música? Há alguma comunicação que não seja só ruído? O microscópico é mais viável que a batuta?). Mas Dick ficou vivo até agora.

- Anote aí: Edwin Abbott escreveu em 1884 uma novela bidimensional, metáfora de sua sociedade. Flattland. Essas figuras geométricas apareceram primeiro como metáfora da sociedade vitoriana. Agora ganham vida, se recusam a comunicar através da música e preferem dizer aquilo que têm a dizer recorrendo à voz de um bem-sucedido escritor de ficção científica.

Devemos tentar uma aproximação? Esperamos que a Central se pronuncie sobre essa óbvia armadilha.

Jaime Seignobos

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Off-Topic / Re:Umbigo
« Online: Abril 07, 2014, 11:32:03 am »
Olá, eu sou o Lanzi e gosto de esportes aquáticos.

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Off-Topic / Re:O que você está ouvindo?
« Online: Março 28, 2014, 01:11:55 pm »

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Terras Sagradas / Re:Iniciativa Terras Sagradas
« Online: Março 25, 2014, 10:33:31 am »
E também não sei se vai rolar reescrever do 0.

Acho que as ideias que andei tendo ficariam melhor pra outro reino do que pra Kawi'ole. Então vou continuar na pegada que estava.

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Terras Sagradas / Re:Iniciativa Terras Sagradas
« Online: Março 25, 2014, 10:25:22 am »
Gente, desculpem a demora em postar a minha parte. Estive com pouco tempo - viagem, doença, estudos. Peço um adiamento de pelo menos 5 dias pra terminar. Então até o fim do mês eu posto e envio para o e-mail a nova Kawi'ole.

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