1
Contos / O Caso Colombo
« Online: Abril 08, 2014, 11:50:43 am »
Metz, França, 1977
Digo que as circunstâncias que envolvem o Caso Colombo me parecem misteriosas até hoje. O final, por ser fantástico, não convenceu nem a mim, nem aos outros da Companhia. O fantástico, quando impera sobre o real, parece por demais profético – algo próximo do inconclusivo. O Caso Colombo, dado como resolvido, continua inexplicado. Colocaram-no na gaveta dos casos estranhos.
Retomo o Caso Colombo porque acredito que estamos hoje diante de uma situação semelhante. Epifenômenos de uma mesma manifestação? Se são a mesma coisa ainda não posso afirmar, mas os sintomas e os eventos que tenho diante de mim neste instante me remetem diretamente ao caso do qual falo, que se sucedeu há mais ou menos dez anos, no Brasil. É impossível não enxergar as semelhanças.
- The subject of this speech is a topic which has been discovered recently and wich may not exist at all… – é a voz de Philip K. Dick, a quem nos puseram para seguir já há cinco anos. Sua voz ainda ecoa, desde essa tarde em que pronunciou seu discurso e que me obrigou a repensar algo que nos instruíram a manter em silêncio.
- É melhor mantermos distância de algo do qual ainda não sabemos nos defender. – disse o Pierre, fechando a porta do corredor atrás de mim. – A Companhia te põe pra investigar esses sujeitos que desconfiam demais da realidade e aí dá nisso! Você acaba não sabendo no que acreditar também!
Era 1967, a Companhia havia acabado de abrir uma filial em São Paulo, e estávamos eu e o Pierre encarregados de treinar a nova equipe. Sabíamos que nossa facilidade com o idioma – facilidade essa que, no meu caso, havia sido garantida pela naturalidade brasileira de meu pai – havia sido o motivo para que nos delegassem tal tarefa. Dois anos no Brasil, o qual percorremos de norte a sul procurando novos agentes que pudessem se interessar pelo trabalho (tínhamos de explicar a eles que a Companhia nada tinha a ver com o Comando de Caça aos Comunistas, e que não trabalhava para as vontades de nenhum governo específico), e acabamos por vasculhar os mais obscuros departamentos de investigação, detetives particulares falidos, lunáticos aficionados por teorias da conspiração, taxistas, telefonistas desajustados, motoristas de fuga. Ao final de Setembro havíamos fechado com quatro indivíduos: Marvin da Cunha, carioca, de 32 anos, ex-policial, trabalhou durante alguns anos como detetive particular e seu único trabalho foi seguir o marido milionário de uma cliente neurótica. Chegamos até ele porque nos pareceu ser dono de um faro que faria inveja a um cão perdigueiro – alguém que nunca perdia de vista os seus alvos. Havia também Emerson das Neves, o novato professor de História de um colégio católico. Chamou nossa atenção por sua memória quase perfeita. Os outros eram os irmãos Flávio e Lívio, o primeiro um jornalista recém-formado, que, pelo seu ritmo de leitura, parecia ter o potencial de esgotar toda a literatura humana no ciclo de uma vida, o segundo um museólogo colecionador de tudo que se possa imaginar e perito em reconhecer padrões. Conseguimos convencer todos eles de que o trabalho para a Companhia era recompensador e eternamente interessante e curioso. Isso, claro, se você estiver interessado em seguir, investigar, e catalogar freaks e paranoicos ao redor do mundo.
Mas só fomos testados de fato no ano seguinte, quando o comitê central, lá de Paris, nos recomendou que investigássemos um indivíduo que ainda não nos havia chamado a atenção. Tratava-se de Aquiles Colombo, compositor que contava com certo renome nos círculos especializados, e que tinha alguns apreciadores entre os músicos mais consagrados da incipiente vanguarda musical brasileira. Era aluno de Koellreutter, grande divulgador do dodecafonismo no Brasil. Aquiles, assumido seguidor do compositor alemão que havia imigrado para o Brasil em 1937, tinha, desde 1963, um ateliê musical em São Paulo, ao qual compareciam somente os alunos mais inclinados a perverter e subverter o tradicional sistema tonal. Ali fazia-se música até com cascas de banana. Os métodos do Colombo eram herdeiros diretos dos de Koellreutter, com quem mantinha contínuo contato e que, vez ou outra, comparecia ao seu ateliê para dar aos alunos de Colombo alguns minutos de aventurosa sabedoria musical. Soubemos que tanto Colombo e Koellreutter já estavam sendo investigados pelos agentes do governo ditatorial, que estavam interessados mais no caráter antinacionalista de suas composições, evidenciado por uma querela com o músico Camargo Guarnieri, do que em qualquer possibilidade de negação da realidade. Desconfiávamos, na verdade, que nenhum desses agentes sabia que da obra de Aquiles pudesse sair algum contato com seres de outro mundo. Também disso só iriamos saber mais tarde.
A central exigiu que concentrássemos nossos esforços no Caso Colombo e nos esquecêssemos ou que arquivássemos todas as outras investigações que estávamos conduzindo e que ainda não nos haviam fornecido resultados satisfatórios: uma senhora de 72 que morava sozinha com dois poodles e sonhava com horóscopos; um padeiro, torcedor da Lusa, que, quando criança, queria ser astrônomo e, nos momentos de tédio, pensava ver constelações desenhadas nos segundos em que a farinha do pão se distribuía pela fôrma; um âncora de telejornal que pensava ser também o telespectador; um ex-barbeiro do Brás, que agenciava prostitutas e que, sem saber, dava a elas o mesmo nome das mulheres de Vinícius de Moraes: Beatriz; Regina; Lila; Maria; Nelita; Cristina. Abandonamos estes casos e nos concentramos em Colombo. Tivemos acesso às suas composições, as quais foram devidamente estudadas. Tínhamos uma rotina de reuniões nos cafés do centro que seguia um esquema de rodízio para minimizar suspeitas. Devo dizer que o regime, se nunca soube de nossas atividades, pelo menos nunca nos incomodou. Cada dia era num café diferente. Comparecíamos com os dados levantados e elaborávamos os relatórios, os quais não guardavam de início nenhuma surpresa, nada de especial. A central era mais misteriosa que os casos que nos ordenava investigar, e, diante da mudez do material que levantávamos, era impossível que não questionássemos as razões daquela investigação absurda. Não sabíamos o que estávamos fazendo nem para onde estávamos indo.
Pierre punha o chapéu sobre os olhos e soprava para o alto a fumaça do charuto.
- É central é sempre assim. De início parece tudo comum, até que acontece algo… Eles sabem o que vai acontecer antes de nós. Estamos aqui só pra relatar. – dizia, com certa resignação.
- E como sabem? – perguntava Emerson, nosso curioso professor de História.
- Disso eu não sei. Conheço alguns que trabalham lá, e imagine só: são os tipos mais estranhos que você vai encontrar nessa vida. São capazes de enxergar coisas onde parece não haver nada, tipo aquelas imagens que você só consegue ver se desfocar o olho. Eu me pergunto onde é que eles arranjam essa gente.
- Essa gente? Quer dizer que nenhum de nós…? – perguntou Marvin.
- O que? Alguém aqui nutre essas esperanças? Acho melhor abandoná-las. Ninguém aguentaria o treinamento. Mas se quiserem, podem tentar. Vocês precisariam de umas cinco condecorações que nunca sequer vi a cor.
Num apartamento da Zona Sul, próximo ao ateliê do Aquiles, montamos o QG. As mesas permaneciam cobertas com notícias de jornal. Nos fundos os irmãos Flávio e Lívio ouviam e rebobinavam incessantemente as gravações que conseguíamos registrar nas sessões sonoras do ateliê: experiências musicais absurdas, conversas a respeito de métodos inusitados que prometiam polêmicas caso fossem expostos ao público. Instalamos escutas e nos revezávamos para ouvirmos. Anotávamos tudo que pudesse parecer suspeito.
Domingo 16 às 11:37:44’ – Aquiles em uma sessão particular com o Aluno 7 diz: “Música é comunicação e não é”.
Quarta-feira 19 às 17:22:31’ – Em uma discussão que contava com os Alunos 6 e 7 Aquiles diz: “o músico não tem de querer dizer nada, comunicar nada, expressar nada”.
As anotações seguiam nesses moldes e não pareciam nos indicar nada que pudesse justificar as recomendações do comitê central. Tanto Aquiles como Hans-Joachim Koellreutter, que compareceu ali em Setembro para ministrar um seminário para os alunos do ateliê, estavam ainda afetados pela campanha que se fazia contra os dois. Naqueles tempos ufanistas o nacionalismo e a exigência por um método musical eminentemente nacional pareciam dominar a regra das discussões, às quais Aquiles e Koellreutter compareciam apenas como representantes de uma musicalidade distante e inaceitável para o que deveria ser a música brasileira. Essas querelas não nos pareciam ser um material válido para aquilo a que estávamos acostumados a investigar até então. Apenas ofuscavam o verdadeiro motivo pelo qual nos movíamos. A discussão começou 17 anos antes, com uma carta escrita pelo compositor Camargo Guarnieri, endereçada aos músicos do Brasil, na qual criticava indiretamente a pedagogia do músico alemão. A campanha ali iniciada, por sua vez, continuava até hoje. Naquela década de 60 veríamos ainda outros atritos musicais: os festivais da canção – aos quais tivemos de comparecer por conta da investigação – eram capazes de colocar contra si parcelas emocionadas de público (a semelhança com a exibição d’A Sagração da Primavera, no começo do século, chamou nossa atenção por um tempo, e pensamos que houvesse ali um germe comum – mas os cenários se provaram muito distintos e o que era só um palpite foi descartado, sem nenhuma outra evidência que o sustentasse). Organizou-se a marcha contra a guitarra elétrica, entendida como símbolo do colonialismo musical (pensamos em Platão, que n’A República diz que a rebeldia é análoga às mudanças musicais). Mais tarde os próprios militantes mudaram de lado. Alguns agiam na contramão da campanha difamatória movida contra Koellreutter. Sua absolvição, contudo, só seria conseguida apenas no final da década, com a chegada dos músicos que se diziam tropicalistas. A trupe chamou mais a atenção dos censores do governo do que a nossa, e a eles dedicamos apenas algumas breves anotações. Alguma efervescência cultural, por mínima que fosse, mesmo no prenúncio daqueles tempos que viriam mais tarde ser chamados de anos de chumbo, não se converteu em material de interesse. Relatórios e anotações vazias acumulavam-se no apartamento, e as reuniões nos cafés acabaram, por fim, sendo canceladas, mesmo a contragosto. Acabaram-se os ambientes das esfumaçadas intrigas futebopolíticas. O Santos seria campeão, e o Pelé o artilheiro.
- Tem tempo pra um cigarro? A Companhia está bem descontente com o material que estamos enviando.
- Mas, Pierre… Eles não foram nada claros naquilo que queriam.
Aquiles era um objeto de estudo excêntrico (e não só porque era torcedor do Botafogo). Tanto pelos seus métodos pouco convencionais, quanto sua paixão pela experiência da novidade, eram motivos sérios e pareciam bastar para que continuássemos envolvidos com o caso. Sua vivacidade nos cativava, mas a chance de que aquelas observações pudessem estar sendo infrutíferas afetou tanto a mim quanto ao Pierre, e nosso desânimo se alastrou para o resto dos membros da equipe, que eram pouco experientes e mais suscetíveis às quedas de moral. Para os agentes do Estado, o ateliê era um antro de drogas e exibicionismo musical.
- Acho que devemos conduzir experiências com estes compostos. – disse Pierre. As menções ao ácido lisérgico e ao consumo de cânhamo eram comuns no dia-a-dia do ateliê. Ninguém se opôs à sugestão de Pierre, que começou a experimentar os estimulantes, psicotrópicos, e alucinógenos. Pensei que pudesse levantar o moral das tropas. Anotava as reações:
Experiência com LSD #5 17:19:51’’ – Sensação crescente de que a qualquer momento irei fechar meus olhos e acordar em um lugar completamente diferente.
- Sabe que sob esses efeitos aprendi a apreciar melhor a música que eles fazem? Não sinto mais falta dos refrões, da batida em quatro por quatro… – dizia Pierre. – Música é, de fato, ruído. – e isso o experimentalismo do ateliê de Aquiles deixava claro: vibrafones estridentes; pianos que eram tocados da maneira menos ortodoxa possível, os quais eram reformados por Aquiles e seus alunos que, por entre as cordas, inseriam pregos, borrachas, arames; tubos de PVC que, conforme o volume de água, alcançavam certas notas não alcançadas pelos instrumentos convencionais. Todos esses e muitos outros sons éramos obrigados a ouvir diariamente naquelas semanas de intensa observação. Com o tempo acabamos nos acostumando. O receio de que as experiências do Pierre fossem dificultar o nosso trabalho mostrou-se sem fundamento. Ele não teve problemas em limitar os efeitos produzidos pelo ácido lisérgico ao tempo e espaço dedicados à rigorosa observação científica. Sabia com o que estava lidando. É uma espécie de conhecimento antropológico geral entre os que trabalham para a Companhia: para que se entenda o que se está a observar, em algum momento será necessário que o observador recorra aos estímulos buscados pelos observados, sejam eles drogas, sexo, música, ou qualquer outra coisa que possa servir como estímulo. O LSD, além de ter feito Pierre ver derreterem as paredes do quarto, não fez progredir o caso – o ácido só revelou verdades a quem já tinha pistas sobre elas. E nós não tínhamos nada.
Foi numa tarde banal, enquanto o Lívio analisava um método composicional pensado por Colombo. O método lidava com dodecaedros sobrepostos em planos tridimensionais. Os dodecaedros deveriam servir para os músicos como uma pauta musical a ser seguida. A distribuição das notas e dos silêncios, ajustados aos ângulos da figura, indicavam a intensidade e a duração dos sons que deveriam ser executados. Para o Lívio o resultado era sempre uma barulheira na qual, só com uma observação bem atenta, se podiam notar alguns padrões que combinavam as vontades dos músicos, aos quais era dada a liberdade do improviso, e a regência da norma geométrica. O som, distribuído espacialmente pelos timbres mais graves, parecia dar uma sensação de preenchimento seguido por vazio – som e silêncio. Flávio, na escuta, pediu para pararmos com a audição, para que fôssemos ouvir a conversa que Aquiles iniciava no telefone. Ele recebia uma ligação do Dr. Kahn, um cientista e inventor que parecia ser amigo de longa data de Aquiles, com quem compartilhava uma curiosidade científica um tanto ingênua. Ele aparecia mencionado no relatório apenas uma vez, numa citação que Aquiles fez a ele enquanto explicava para o Aluno 6 a questão dos microtons indianos. Não sabíamos quem era. Os seus dados eram desencontrados, e ninguém mais o mencionara. Seu primeiro nome era Anúbis. Provavelmente um amigo da família de Aquiles.
- Venham aqui ouvir isso. – disse Emerson, e pegamos, cada um, um fone. Transcrevo o que ouvimos:
DR. KAHN: A Lente L.
AQUILES: O que tem?
DR. KAHN: Consegui aumentar a potência em vinte vezes. Preciso que você venha aqui ver. Vai adorar.
AQUILES: O que você está vendo?
DR. KAHN: Não dá pra descrever.
AQUILES: Como conseguiu?
DR. KAHN: Acidente. Tenho as anotações aqui, mas tenho medo de não conseguir reproduzir a experiência, porque não sei exatamente como foi. Precisamos tentar de novo, mas por enquanto já temos uma Lente L bem potente.
Aquela conversa servia como prova de que não estávamos cobrindo todos os espaços.
- Estou decepcionado com a equipe. Como é que algo assim passou despercebido? Ninguém relatou nenhuma conversa semelhante esse tempo todo? – Pierre perguntava.
- De quem foi a falha?
- Com certeza a central já estava de olho. E pra nós passou despercebido. Eles se apegam aos detalhes. Devem ter outra equipe aqui além da nossa.
- Você acha?
- Merde!
De quê se tratava a Lente L? Não fazíamos a menor ideia do que estavam falando. A conversa parecia retomar um ponto do qual não tínhamos conhecimento, como se tivesse se mantido além do nosso alcance. Não havia a menor possibilidade de Aquiles saber que estava sendo observado. Quer dizer, mesmo que soubesse, não seria de nossa investigação que ia ter medo, mas da investigação dos meganhas, que era bem possível que já estivessem pensando em leva-lo pra algum porão, pra poderem submetê-lo a algum interrogatório macabro. Não haviam delatores no ateliê, mas os agentes do DOPS sabiam que o Aquiles não era o maior entusiasta do regime. Aquela conversa ao telefone nos deixou com medo de o perdermos para os caras do DOPS, que poderiam acabar levando-o embora antes que viéssemos a saber do que se tratava a Lente L.
Para o Dr. Kahn o mundo não parecia existir fora de seu laboratório, e ele saía muito pouco. Tudo o que sabemos dessa história foi o que conseguimos extrair de seu diário antes que ele caísse nas mãos do regime. Mais tarde quem caiu foi o próprio Aquiles, que foi interrogado (apenas especulamos sobre o que pode ter sido perguntado a ele, porque não conseguimos acessar os documentos), torturado, e depois solto, para depois ser morto em circunstâncias desconhecidas. O fato de Aquiles ter sido pego pelo regime antes de sua morte fez com que o público, anos depois, acreditasse em um assassinato perpetrado pelos homens do governo, como pareceu ser comum durante aqueles anos. Ninguém desconfia da outra versão da história, a qual só a Companhia aceitou como explicação oficial.
Consta que Aquiles, ao chegar no laboratório do Dr. Kahn, não hesitou em olhar no microscópio apelidado de Lente L. O que ele enxergou ali parece ser o mesmo objeto mencionado por Philip K. Dick no seu discurso na tarde de 1977, na convenção sobre ficção científica em Metz, na França. Os dois falam sobre formas geométricas dotadas de inteligência, capazes de se comunicarem conosco. Dick não precisou de um microscópio para enxerga-las, o que nos deve sugerir que elas, agora, dez anos depois, parecem estar mais aptas a se movimentar na nossa realidade. Aquiles observou aquelas criaturas bidimensionais se movimentando e produzindo efeitos espetaculares na lente do microscópio. Ordenavam-se segundo um padrão específico, que se alterava conforme os estímulos sonoros ao redor, ora como círculos, ora como quadrados, triângulos, às vezes mudando de forma e envolvendo outra infinidade de formas poligonais, no que parecia ser uma dança de cristais reluzentes. No caso do escritor, um raio rosa emitido pelo reflexo da luz no colar de uma moça que até então havia aparecido para ele somente em sonhos, foi capaz de produzir essas figuras. Dick escreveu sobre elas, e em seus escritos disse ser capaz de interpretar as mensagens, aquilo que queriam dizer, como evidências de uma realidade paralela e simultânea. Aquiles interpretou-as de modo diferente, pensando que se tratassem de seres da mesma realidade que a dele, distinta por ser bidimensional e microscópica. Tentou compor músicas para se comunicar com elas. A única resposta que obteve foi a sua morte, que não sabemos se foi desejada, premeditada. Seu corpo, sem nenhum vestígio de violência, foi encontrado duas semanas depois de ter sido solto do interrogatório. Depois da soltura resolveu dedicar-se exclusivamente à composição de um idioma que pudesse servir para o contato. Consta até que deixou de comparecer ao ateliê, e não respondeu às ligações e visitas de seus alunos. Depois de sua morte o Dr. Kahn quebrou todos os vestígios de suas descobertas e foi-se embora do Brasil. Não sabemos onde se encontra.
- É melhor mantermos distância de algo do qual ainda não sabemos nos defender. – a frase de Pierre, o lema da Companhia, se repete em minha memória.
O escritor americano parece ter encontrado um jeito de se comunicar e de minimizar a hostilidade desses estranhos seres geométricos. De que são reais não há dúvidas: mataram Aquiles. Mas como acessá-los? O que o compositor e o escritor têm em comum? A vida de Philip K. Dick, mais do que a de Aquiles, parece ser pontuada por estranhas coincidências. O seu uso excessivo de drogas não é capaz de descartar essas evidências. Dizemos, por aqui, que elas até acentuam a sua veracidade.
A maneira com a qual o escritor americano decidiu expor a sua descoberta apenas nos garante um privilégio. Ninguém o levará a sério. Só a Companhia, a qual já deve estar sabendo dos perigos que corre, porque, contrariando aquela afirmação de Karl Marx que diz que a história se repete enquanto farsa, no mundo, no nosso mundo, a reincidência de certos eventos estranhos pode muito bem ser interpretada como uma ordem, ou uma desordem, ocultas. Estamos longe da verdade. Sabemos apenas aquilo que a loucura e a criatividade estão dispostas a dizer, mesmo que suas intenções sejam ambíguas e perniciosas. O Caso Colombo continua inexplicado. Algum outro caso (OVNIS, aparições, mestres do disfarce) será capaz de explica-lo? A morte de Aquiles era muito bem um aviso para que não tentássemos nos comunicar com essas outras formas (o que elas teriam para nos dizer? Haveriam se aproximado primeiro de Aquiles por conta de seu método geométrico de composição? Mataram-no porque se irritaram com a incomunicabilidade de sua música? Há alguma comunicação que não seja só ruído? O microscópico é mais viável que a batuta?). Mas Dick ficou vivo até agora.
- Anote aí: Edwin Abbott escreveu em 1884 uma novela bidimensional, metáfora de sua sociedade. Flattland. Essas figuras geométricas apareceram primeiro como metáfora da sociedade vitoriana. Agora ganham vida, se recusam a comunicar através da música e preferem dizer aquilo que têm a dizer recorrendo à voz de um bem-sucedido escritor de ficção científica.
Devemos tentar uma aproximação? Esperamos que a Central se pronuncie sobre essa óbvia armadilha.
Jaime Seignobos
Digo que as circunstâncias que envolvem o Caso Colombo me parecem misteriosas até hoje. O final, por ser fantástico, não convenceu nem a mim, nem aos outros da Companhia. O fantástico, quando impera sobre o real, parece por demais profético – algo próximo do inconclusivo. O Caso Colombo, dado como resolvido, continua inexplicado. Colocaram-no na gaveta dos casos estranhos.
Retomo o Caso Colombo porque acredito que estamos hoje diante de uma situação semelhante. Epifenômenos de uma mesma manifestação? Se são a mesma coisa ainda não posso afirmar, mas os sintomas e os eventos que tenho diante de mim neste instante me remetem diretamente ao caso do qual falo, que se sucedeu há mais ou menos dez anos, no Brasil. É impossível não enxergar as semelhanças.
- The subject of this speech is a topic which has been discovered recently and wich may not exist at all… – é a voz de Philip K. Dick, a quem nos puseram para seguir já há cinco anos. Sua voz ainda ecoa, desde essa tarde em que pronunciou seu discurso e que me obrigou a repensar algo que nos instruíram a manter em silêncio.
- É melhor mantermos distância de algo do qual ainda não sabemos nos defender. – disse o Pierre, fechando a porta do corredor atrás de mim. – A Companhia te põe pra investigar esses sujeitos que desconfiam demais da realidade e aí dá nisso! Você acaba não sabendo no que acreditar também!
Era 1967, a Companhia havia acabado de abrir uma filial em São Paulo, e estávamos eu e o Pierre encarregados de treinar a nova equipe. Sabíamos que nossa facilidade com o idioma – facilidade essa que, no meu caso, havia sido garantida pela naturalidade brasileira de meu pai – havia sido o motivo para que nos delegassem tal tarefa. Dois anos no Brasil, o qual percorremos de norte a sul procurando novos agentes que pudessem se interessar pelo trabalho (tínhamos de explicar a eles que a Companhia nada tinha a ver com o Comando de Caça aos Comunistas, e que não trabalhava para as vontades de nenhum governo específico), e acabamos por vasculhar os mais obscuros departamentos de investigação, detetives particulares falidos, lunáticos aficionados por teorias da conspiração, taxistas, telefonistas desajustados, motoristas de fuga. Ao final de Setembro havíamos fechado com quatro indivíduos: Marvin da Cunha, carioca, de 32 anos, ex-policial, trabalhou durante alguns anos como detetive particular e seu único trabalho foi seguir o marido milionário de uma cliente neurótica. Chegamos até ele porque nos pareceu ser dono de um faro que faria inveja a um cão perdigueiro – alguém que nunca perdia de vista os seus alvos. Havia também Emerson das Neves, o novato professor de História de um colégio católico. Chamou nossa atenção por sua memória quase perfeita. Os outros eram os irmãos Flávio e Lívio, o primeiro um jornalista recém-formado, que, pelo seu ritmo de leitura, parecia ter o potencial de esgotar toda a literatura humana no ciclo de uma vida, o segundo um museólogo colecionador de tudo que se possa imaginar e perito em reconhecer padrões. Conseguimos convencer todos eles de que o trabalho para a Companhia era recompensador e eternamente interessante e curioso. Isso, claro, se você estiver interessado em seguir, investigar, e catalogar freaks e paranoicos ao redor do mundo.
Mas só fomos testados de fato no ano seguinte, quando o comitê central, lá de Paris, nos recomendou que investigássemos um indivíduo que ainda não nos havia chamado a atenção. Tratava-se de Aquiles Colombo, compositor que contava com certo renome nos círculos especializados, e que tinha alguns apreciadores entre os músicos mais consagrados da incipiente vanguarda musical brasileira. Era aluno de Koellreutter, grande divulgador do dodecafonismo no Brasil. Aquiles, assumido seguidor do compositor alemão que havia imigrado para o Brasil em 1937, tinha, desde 1963, um ateliê musical em São Paulo, ao qual compareciam somente os alunos mais inclinados a perverter e subverter o tradicional sistema tonal. Ali fazia-se música até com cascas de banana. Os métodos do Colombo eram herdeiros diretos dos de Koellreutter, com quem mantinha contínuo contato e que, vez ou outra, comparecia ao seu ateliê para dar aos alunos de Colombo alguns minutos de aventurosa sabedoria musical. Soubemos que tanto Colombo e Koellreutter já estavam sendo investigados pelos agentes do governo ditatorial, que estavam interessados mais no caráter antinacionalista de suas composições, evidenciado por uma querela com o músico Camargo Guarnieri, do que em qualquer possibilidade de negação da realidade. Desconfiávamos, na verdade, que nenhum desses agentes sabia que da obra de Aquiles pudesse sair algum contato com seres de outro mundo. Também disso só iriamos saber mais tarde.
A central exigiu que concentrássemos nossos esforços no Caso Colombo e nos esquecêssemos ou que arquivássemos todas as outras investigações que estávamos conduzindo e que ainda não nos haviam fornecido resultados satisfatórios: uma senhora de 72 que morava sozinha com dois poodles e sonhava com horóscopos; um padeiro, torcedor da Lusa, que, quando criança, queria ser astrônomo e, nos momentos de tédio, pensava ver constelações desenhadas nos segundos em que a farinha do pão se distribuía pela fôrma; um âncora de telejornal que pensava ser também o telespectador; um ex-barbeiro do Brás, que agenciava prostitutas e que, sem saber, dava a elas o mesmo nome das mulheres de Vinícius de Moraes: Beatriz; Regina; Lila; Maria; Nelita; Cristina. Abandonamos estes casos e nos concentramos em Colombo. Tivemos acesso às suas composições, as quais foram devidamente estudadas. Tínhamos uma rotina de reuniões nos cafés do centro que seguia um esquema de rodízio para minimizar suspeitas. Devo dizer que o regime, se nunca soube de nossas atividades, pelo menos nunca nos incomodou. Cada dia era num café diferente. Comparecíamos com os dados levantados e elaborávamos os relatórios, os quais não guardavam de início nenhuma surpresa, nada de especial. A central era mais misteriosa que os casos que nos ordenava investigar, e, diante da mudez do material que levantávamos, era impossível que não questionássemos as razões daquela investigação absurda. Não sabíamos o que estávamos fazendo nem para onde estávamos indo.
Pierre punha o chapéu sobre os olhos e soprava para o alto a fumaça do charuto.
- É central é sempre assim. De início parece tudo comum, até que acontece algo… Eles sabem o que vai acontecer antes de nós. Estamos aqui só pra relatar. – dizia, com certa resignação.
- E como sabem? – perguntava Emerson, nosso curioso professor de História.
- Disso eu não sei. Conheço alguns que trabalham lá, e imagine só: são os tipos mais estranhos que você vai encontrar nessa vida. São capazes de enxergar coisas onde parece não haver nada, tipo aquelas imagens que você só consegue ver se desfocar o olho. Eu me pergunto onde é que eles arranjam essa gente.
- Essa gente? Quer dizer que nenhum de nós…? – perguntou Marvin.
- O que? Alguém aqui nutre essas esperanças? Acho melhor abandoná-las. Ninguém aguentaria o treinamento. Mas se quiserem, podem tentar. Vocês precisariam de umas cinco condecorações que nunca sequer vi a cor.
Num apartamento da Zona Sul, próximo ao ateliê do Aquiles, montamos o QG. As mesas permaneciam cobertas com notícias de jornal. Nos fundos os irmãos Flávio e Lívio ouviam e rebobinavam incessantemente as gravações que conseguíamos registrar nas sessões sonoras do ateliê: experiências musicais absurdas, conversas a respeito de métodos inusitados que prometiam polêmicas caso fossem expostos ao público. Instalamos escutas e nos revezávamos para ouvirmos. Anotávamos tudo que pudesse parecer suspeito.
Domingo 16 às 11:37:44’ – Aquiles em uma sessão particular com o Aluno 7 diz: “Música é comunicação e não é”.
Quarta-feira 19 às 17:22:31’ – Em uma discussão que contava com os Alunos 6 e 7 Aquiles diz: “o músico não tem de querer dizer nada, comunicar nada, expressar nada”.
As anotações seguiam nesses moldes e não pareciam nos indicar nada que pudesse justificar as recomendações do comitê central. Tanto Aquiles como Hans-Joachim Koellreutter, que compareceu ali em Setembro para ministrar um seminário para os alunos do ateliê, estavam ainda afetados pela campanha que se fazia contra os dois. Naqueles tempos ufanistas o nacionalismo e a exigência por um método musical eminentemente nacional pareciam dominar a regra das discussões, às quais Aquiles e Koellreutter compareciam apenas como representantes de uma musicalidade distante e inaceitável para o que deveria ser a música brasileira. Essas querelas não nos pareciam ser um material válido para aquilo a que estávamos acostumados a investigar até então. Apenas ofuscavam o verdadeiro motivo pelo qual nos movíamos. A discussão começou 17 anos antes, com uma carta escrita pelo compositor Camargo Guarnieri, endereçada aos músicos do Brasil, na qual criticava indiretamente a pedagogia do músico alemão. A campanha ali iniciada, por sua vez, continuava até hoje. Naquela década de 60 veríamos ainda outros atritos musicais: os festivais da canção – aos quais tivemos de comparecer por conta da investigação – eram capazes de colocar contra si parcelas emocionadas de público (a semelhança com a exibição d’A Sagração da Primavera, no começo do século, chamou nossa atenção por um tempo, e pensamos que houvesse ali um germe comum – mas os cenários se provaram muito distintos e o que era só um palpite foi descartado, sem nenhuma outra evidência que o sustentasse). Organizou-se a marcha contra a guitarra elétrica, entendida como símbolo do colonialismo musical (pensamos em Platão, que n’A República diz que a rebeldia é análoga às mudanças musicais). Mais tarde os próprios militantes mudaram de lado. Alguns agiam na contramão da campanha difamatória movida contra Koellreutter. Sua absolvição, contudo, só seria conseguida apenas no final da década, com a chegada dos músicos que se diziam tropicalistas. A trupe chamou mais a atenção dos censores do governo do que a nossa, e a eles dedicamos apenas algumas breves anotações. Alguma efervescência cultural, por mínima que fosse, mesmo no prenúncio daqueles tempos que viriam mais tarde ser chamados de anos de chumbo, não se converteu em material de interesse. Relatórios e anotações vazias acumulavam-se no apartamento, e as reuniões nos cafés acabaram, por fim, sendo canceladas, mesmo a contragosto. Acabaram-se os ambientes das esfumaçadas intrigas futebopolíticas. O Santos seria campeão, e o Pelé o artilheiro.
- Tem tempo pra um cigarro? A Companhia está bem descontente com o material que estamos enviando.
- Mas, Pierre… Eles não foram nada claros naquilo que queriam.
Aquiles era um objeto de estudo excêntrico (e não só porque era torcedor do Botafogo). Tanto pelos seus métodos pouco convencionais, quanto sua paixão pela experiência da novidade, eram motivos sérios e pareciam bastar para que continuássemos envolvidos com o caso. Sua vivacidade nos cativava, mas a chance de que aquelas observações pudessem estar sendo infrutíferas afetou tanto a mim quanto ao Pierre, e nosso desânimo se alastrou para o resto dos membros da equipe, que eram pouco experientes e mais suscetíveis às quedas de moral. Para os agentes do Estado, o ateliê era um antro de drogas e exibicionismo musical.
- Acho que devemos conduzir experiências com estes compostos. – disse Pierre. As menções ao ácido lisérgico e ao consumo de cânhamo eram comuns no dia-a-dia do ateliê. Ninguém se opôs à sugestão de Pierre, que começou a experimentar os estimulantes, psicotrópicos, e alucinógenos. Pensei que pudesse levantar o moral das tropas. Anotava as reações:
Experiência com LSD #5 17:19:51’’ – Sensação crescente de que a qualquer momento irei fechar meus olhos e acordar em um lugar completamente diferente.
- Sabe que sob esses efeitos aprendi a apreciar melhor a música que eles fazem? Não sinto mais falta dos refrões, da batida em quatro por quatro… – dizia Pierre. – Música é, de fato, ruído. – e isso o experimentalismo do ateliê de Aquiles deixava claro: vibrafones estridentes; pianos que eram tocados da maneira menos ortodoxa possível, os quais eram reformados por Aquiles e seus alunos que, por entre as cordas, inseriam pregos, borrachas, arames; tubos de PVC que, conforme o volume de água, alcançavam certas notas não alcançadas pelos instrumentos convencionais. Todos esses e muitos outros sons éramos obrigados a ouvir diariamente naquelas semanas de intensa observação. Com o tempo acabamos nos acostumando. O receio de que as experiências do Pierre fossem dificultar o nosso trabalho mostrou-se sem fundamento. Ele não teve problemas em limitar os efeitos produzidos pelo ácido lisérgico ao tempo e espaço dedicados à rigorosa observação científica. Sabia com o que estava lidando. É uma espécie de conhecimento antropológico geral entre os que trabalham para a Companhia: para que se entenda o que se está a observar, em algum momento será necessário que o observador recorra aos estímulos buscados pelos observados, sejam eles drogas, sexo, música, ou qualquer outra coisa que possa servir como estímulo. O LSD, além de ter feito Pierre ver derreterem as paredes do quarto, não fez progredir o caso – o ácido só revelou verdades a quem já tinha pistas sobre elas. E nós não tínhamos nada.
Foi numa tarde banal, enquanto o Lívio analisava um método composicional pensado por Colombo. O método lidava com dodecaedros sobrepostos em planos tridimensionais. Os dodecaedros deveriam servir para os músicos como uma pauta musical a ser seguida. A distribuição das notas e dos silêncios, ajustados aos ângulos da figura, indicavam a intensidade e a duração dos sons que deveriam ser executados. Para o Lívio o resultado era sempre uma barulheira na qual, só com uma observação bem atenta, se podiam notar alguns padrões que combinavam as vontades dos músicos, aos quais era dada a liberdade do improviso, e a regência da norma geométrica. O som, distribuído espacialmente pelos timbres mais graves, parecia dar uma sensação de preenchimento seguido por vazio – som e silêncio. Flávio, na escuta, pediu para pararmos com a audição, para que fôssemos ouvir a conversa que Aquiles iniciava no telefone. Ele recebia uma ligação do Dr. Kahn, um cientista e inventor que parecia ser amigo de longa data de Aquiles, com quem compartilhava uma curiosidade científica um tanto ingênua. Ele aparecia mencionado no relatório apenas uma vez, numa citação que Aquiles fez a ele enquanto explicava para o Aluno 6 a questão dos microtons indianos. Não sabíamos quem era. Os seus dados eram desencontrados, e ninguém mais o mencionara. Seu primeiro nome era Anúbis. Provavelmente um amigo da família de Aquiles.
- Venham aqui ouvir isso. – disse Emerson, e pegamos, cada um, um fone. Transcrevo o que ouvimos:
DR. KAHN: A Lente L.
AQUILES: O que tem?
DR. KAHN: Consegui aumentar a potência em vinte vezes. Preciso que você venha aqui ver. Vai adorar.
AQUILES: O que você está vendo?
DR. KAHN: Não dá pra descrever.
AQUILES: Como conseguiu?
DR. KAHN: Acidente. Tenho as anotações aqui, mas tenho medo de não conseguir reproduzir a experiência, porque não sei exatamente como foi. Precisamos tentar de novo, mas por enquanto já temos uma Lente L bem potente.
Aquela conversa servia como prova de que não estávamos cobrindo todos os espaços.
- Estou decepcionado com a equipe. Como é que algo assim passou despercebido? Ninguém relatou nenhuma conversa semelhante esse tempo todo? – Pierre perguntava.
- De quem foi a falha?
- Com certeza a central já estava de olho. E pra nós passou despercebido. Eles se apegam aos detalhes. Devem ter outra equipe aqui além da nossa.
- Você acha?
- Merde!
De quê se tratava a Lente L? Não fazíamos a menor ideia do que estavam falando. A conversa parecia retomar um ponto do qual não tínhamos conhecimento, como se tivesse se mantido além do nosso alcance. Não havia a menor possibilidade de Aquiles saber que estava sendo observado. Quer dizer, mesmo que soubesse, não seria de nossa investigação que ia ter medo, mas da investigação dos meganhas, que era bem possível que já estivessem pensando em leva-lo pra algum porão, pra poderem submetê-lo a algum interrogatório macabro. Não haviam delatores no ateliê, mas os agentes do DOPS sabiam que o Aquiles não era o maior entusiasta do regime. Aquela conversa ao telefone nos deixou com medo de o perdermos para os caras do DOPS, que poderiam acabar levando-o embora antes que viéssemos a saber do que se tratava a Lente L.
Para o Dr. Kahn o mundo não parecia existir fora de seu laboratório, e ele saía muito pouco. Tudo o que sabemos dessa história foi o que conseguimos extrair de seu diário antes que ele caísse nas mãos do regime. Mais tarde quem caiu foi o próprio Aquiles, que foi interrogado (apenas especulamos sobre o que pode ter sido perguntado a ele, porque não conseguimos acessar os documentos), torturado, e depois solto, para depois ser morto em circunstâncias desconhecidas. O fato de Aquiles ter sido pego pelo regime antes de sua morte fez com que o público, anos depois, acreditasse em um assassinato perpetrado pelos homens do governo, como pareceu ser comum durante aqueles anos. Ninguém desconfia da outra versão da história, a qual só a Companhia aceitou como explicação oficial.
Consta que Aquiles, ao chegar no laboratório do Dr. Kahn, não hesitou em olhar no microscópio apelidado de Lente L. O que ele enxergou ali parece ser o mesmo objeto mencionado por Philip K. Dick no seu discurso na tarde de 1977, na convenção sobre ficção científica em Metz, na França. Os dois falam sobre formas geométricas dotadas de inteligência, capazes de se comunicarem conosco. Dick não precisou de um microscópio para enxerga-las, o que nos deve sugerir que elas, agora, dez anos depois, parecem estar mais aptas a se movimentar na nossa realidade. Aquiles observou aquelas criaturas bidimensionais se movimentando e produzindo efeitos espetaculares na lente do microscópio. Ordenavam-se segundo um padrão específico, que se alterava conforme os estímulos sonoros ao redor, ora como círculos, ora como quadrados, triângulos, às vezes mudando de forma e envolvendo outra infinidade de formas poligonais, no que parecia ser uma dança de cristais reluzentes. No caso do escritor, um raio rosa emitido pelo reflexo da luz no colar de uma moça que até então havia aparecido para ele somente em sonhos, foi capaz de produzir essas figuras. Dick escreveu sobre elas, e em seus escritos disse ser capaz de interpretar as mensagens, aquilo que queriam dizer, como evidências de uma realidade paralela e simultânea. Aquiles interpretou-as de modo diferente, pensando que se tratassem de seres da mesma realidade que a dele, distinta por ser bidimensional e microscópica. Tentou compor músicas para se comunicar com elas. A única resposta que obteve foi a sua morte, que não sabemos se foi desejada, premeditada. Seu corpo, sem nenhum vestígio de violência, foi encontrado duas semanas depois de ter sido solto do interrogatório. Depois da soltura resolveu dedicar-se exclusivamente à composição de um idioma que pudesse servir para o contato. Consta até que deixou de comparecer ao ateliê, e não respondeu às ligações e visitas de seus alunos. Depois de sua morte o Dr. Kahn quebrou todos os vestígios de suas descobertas e foi-se embora do Brasil. Não sabemos onde se encontra.
- É melhor mantermos distância de algo do qual ainda não sabemos nos defender. – a frase de Pierre, o lema da Companhia, se repete em minha memória.
O escritor americano parece ter encontrado um jeito de se comunicar e de minimizar a hostilidade desses estranhos seres geométricos. De que são reais não há dúvidas: mataram Aquiles. Mas como acessá-los? O que o compositor e o escritor têm em comum? A vida de Philip K. Dick, mais do que a de Aquiles, parece ser pontuada por estranhas coincidências. O seu uso excessivo de drogas não é capaz de descartar essas evidências. Dizemos, por aqui, que elas até acentuam a sua veracidade.
A maneira com a qual o escritor americano decidiu expor a sua descoberta apenas nos garante um privilégio. Ninguém o levará a sério. Só a Companhia, a qual já deve estar sabendo dos perigos que corre, porque, contrariando aquela afirmação de Karl Marx que diz que a história se repete enquanto farsa, no mundo, no nosso mundo, a reincidência de certos eventos estranhos pode muito bem ser interpretada como uma ordem, ou uma desordem, ocultas. Estamos longe da verdade. Sabemos apenas aquilo que a loucura e a criatividade estão dispostas a dizer, mesmo que suas intenções sejam ambíguas e perniciosas. O Caso Colombo continua inexplicado. Algum outro caso (OVNIS, aparições, mestres do disfarce) será capaz de explica-lo? A morte de Aquiles era muito bem um aviso para que não tentássemos nos comunicar com essas outras formas (o que elas teriam para nos dizer? Haveriam se aproximado primeiro de Aquiles por conta de seu método geométrico de composição? Mataram-no porque se irritaram com a incomunicabilidade de sua música? Há alguma comunicação que não seja só ruído? O microscópico é mais viável que a batuta?). Mas Dick ficou vivo até agora.
- Anote aí: Edwin Abbott escreveu em 1884 uma novela bidimensional, metáfora de sua sociedade. Flattland. Essas figuras geométricas apareceram primeiro como metáfora da sociedade vitoriana. Agora ganham vida, se recusam a comunicar através da música e preferem dizer aquilo que têm a dizer recorrendo à voz de um bem-sucedido escritor de ficção científica.
Devemos tentar uma aproximação? Esperamos que a Central se pronuncie sobre essa óbvia armadilha.
Jaime Seignobos