Autor Tópico: Distopias  (Lida 4514 vezes)

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Offline Madrüga

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Distopias
« Online: Junho 12, 2012, 01:56:09 pm »
Olha, temos ícone de TV, filmes, games, música... e nenhum de "livros".  :frenzied:

Bom, abri o tópico porque sei que muita gente aqui conhece/curte/lê os clássicos de distopia, como "1984" (George Orwell), "Admirável mundo novo" (Aldous Huxley), "Nós" (Ievguêni Zamiátin), "Player piano" (Kurt Vonnegut), "Anthem" (Ayn Rand), "Do androids dream of electric sheep?" (Philip K. Dick) ou até mesmo o avô das distopias, "The iron heel" (Jack London).

Queria discutir ideias, problemas e dúvidas dos livros desse tipo. Claro que eventualmente vai entrar um nego, dizer "eu li", mostrar sua erudição e ir embora, mas o legal era ir trocando ideias com a galera, pegando recomendações, etc.

Em primeiro lugar, queria pegar carona num ponto ali da shoutbox: eu acho meio injusto que principalmente as distopias (e, numa menor extensão, a ficção científica) seja medida sempre por sua "capacidade profética" ou pela "criatividade do cenário".

Dessa forma, parece que você nunca vai analisar a narrativa ou a riqueza dos personagens -- tudo fica preso atrás da mediocridade da "profecia". Já conversei com amigos sobre (e colegas de trabalho) e tive que ouvir, ao comentar sobre personagens e incoerências do cenário: "mas não é esse o ponto! É um aviso sobre o futuro!".

Que me dizem, negrada?
"If there are ten thousand medieval peasants who create vampires by believing them real, there may be one -- probably a child -- who will imagine the stake necessary to kill it. But a stake is only stupid wood; the mind is the mallet which drives it home."
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Offline VA

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Re:Distopias
« Resposta #1 Online: Junho 12, 2012, 04:20:24 pm »
Eu acho que concordo com você. Nunca li "Nós", mas eu amo 1984 não pela "profecia" naquele contexto histórico, e só e simplesmente pela ambientação rica e como dois personagens tentam simplesmente viver um romance dentro dela.

A história dos personagens é bem secundária. Até a "profecia do futuro" é secundária. O charme de 1984 é que aquele mundo inteiro está sistematizado e num totalitarismo "perfeito". É como uma sociedade governada por um culto - exceto que o culto está num nível mundial, e o controle de informação é perfeito.

Ele lida com temas como dissonância cognitiva, controle de informação, memória seletiva, exclusão social (no sentido de alguém que é excluído por não se encaixar no que a sociedade espera, como os testemunhas de jeová fazem com os ex-membros) e alienação de massas. É uma leitura muito rica em termos de ambiente.



Acho que isso é um pouco diferente do que sinto com relação a Avatar. O cenário de Avatar tem bastante coisa, mas o plot do filme não tem absolutamente nada a ver com o cenário. É um plot genérico que poderia ser colocado em qualquer outro canto sem a menor diferença.

1984 tem um plot específico para aquele cenário.

Offline Vincer

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Re:Distopias
« Resposta #2 Online: Junho 12, 2012, 09:57:14 pm »
Previsões não seria o termo, embora alguns autores tenham tido essa ousadia em geral o discurso é entre 'possível'(mas improvável) e o 'e se'. O foco da ficção especulativa em geral é usar cenários possíveis(no sentido que evitam furos de consistência, 'magia', enfim), não os prováveis, para explorar facetas humanas em condições diversas da nossa realidade. Através disso é possível trazer a tona temas e debates numa perspectiva e intensidade diferenciadas que servem como ponto de partida para reflexões sobre nossa natureza, num geral, e claro sobre os temas abordados que têm alguma relação com nossa realidade... aí sim entram tecnologias especulativas, possíveis rumos sociais e etc. Eles não pretendem alarmar que esses futuros podem acontecer a qualquer momento. 1984 por exemplo extrapola o autoritarismo, invasão da privacidade e manipulação da opnião pública ao máximo de forma propositalmente exagerada. É muito improvável que cheguemos aquele ponto naquelas condições, que o estado crie uma nova linguagem, etc, etc... mas não é esse o ponto. Através do exagero ele consegue explicitar muito melhor a crítica a essas tendências.

Com certeza concordo embora o propósito principal da ficção especulativa seja realmente o acima, e não uma envolvente história. O que não é uma carta branca para uma narrativa porca e nunca foi; Por isso a ficção especulativa é comumente mal vista pela crítica e autores não especulativos o que diminui simplesmente porque acho que eles cansaram de bater em cavalo morto e preferem ignorar esse nicho. Se não me engano tinha até um 'clubinho'(havia um message board, disso estou certo) de autores mais modernos de ficção especulativa onde eu vi eles extravasarem como percebiam certo desprezo por outros autores em convenções e até por membros de editoras.
Só fã dessas ficções vem com esse papo de 'não é esse propósito' para os bajular como melhores romances já vistos.

E próxima vez que alguém disser 'é um aviso sobre o futuro!' dá um tapa nele por mim, para ver se ele acorda.

Offline kinn

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Re:Distopias
« Resposta #3 Online: Junho 12, 2012, 10:54:15 pm »
E a melhor prova da importância e influência de 1984 é que quase ninguém sabe da relação do reality show com o livro. E posso suspeitar que dos participantes essa ideia é verdadeira para 99,99% deles.

Eu acho um livro muito importante para nosso mundo, pois o nazismo se comportava assim com manipulação da opinião pública e só deu errado no final porque Hitler passou a acreditar nas mentiras que contava (se recusar a comprar petróleo dos árabes porque eles tinham parentesco com judeus foi o cúmulo).

Orwell além de ficcionista foi um crítico mordaz de seu tempo. Revolução dos bichos é outra pérola dele a criticar o comunismo praticado tão diferente do que foi idealizado. Conseguiu criar um choque nos seus leitores com sua obra fria, opressiva e dura. Eu tive pesadelos após terminar o livro e fiz uma enquete com conhecidos que leram e foi o mesmo com eles. Só com a internet que encontrei pessoas que haviam lido e não tinham tido pesadelos após o final.

Admirável Mundo novo segue o caminho oposto, como um clean sci-fi nas aparências com um mundo ideal e funcional onde ninguém é escravo à primeira vista. A justificativa do condicionamento é muio interessante para discutir o quanto de nossos atos e convenções concordamos por fazer sentido ou só por um comportamento de manada. E como é a vida das pessoas que não se enquadram.

Sempre gostei de ficção científica (embora tenho lido muito pouco ultimamente) e além das previsões, o que me encantava e me fazia lê-los era ver as possibilidades, mesmo que eu discordasse delas (eu pensava assim quando era jovem).
Pesquisas provam:
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Offline Ciggi

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Re:Distopias
« Resposta #4 Online: Junho 13, 2012, 12:11:21 am »
Tai. Nunca li nenhum desses.

Qual vocês recomendam pra um leigo começar?

Re:Distopias
« Resposta #5 Online: Junho 13, 2012, 12:20:05 am »
Ótimo tópico. Tenho um amigo que está se formando em História e a tese dele é sobre o Aldoux Huxley. Não sei ao certo qual é a tese. Depois vou perguntar pra ele e trazer aqui pra enriquecer a discussão.

Vi o Vincer ali falando de "Ficção Especulativa" e fiquei feliz com o uso desse termo. É muito melhor do que "Ficção Científica", que não quer dizer nada e ainda trás alguns problemas de classificação; distopias pra mim nunca poderiam ser consideradas ficções científicas.

Também acho que um romance distópico não deve ser avaliado pelo seu potencial profético, mas pelo seu conteúdo dramático. É impossível uma distopia que não projete no futuro problemas que já encontramos no presente. Por exemplo, eu poderia considerar muito melhor um livro distópico que apresente um futuro completamente impossível de acontecer, mas que produza, dentro desse esquema, metáforas, tramas, dramas e personagens com riqueza, do que um que apresentasse isso em menor escala com mais chances de ser verossímil.

Isso nos leva pra dois debates bem interessantes: o primeiro é sobre 1984 vs. Admirável Mundo Novo. Não faz o menor sentido a gente começar a debater qual é melhor, ou qual é mais rico, mas poderíamos analisar os pressupostos de cada um. Um amigo certa vez escreveu um artigo em que ele sustentava a ideia de que no futuro do 1984 a sociedade humana era oprimida pelas coisas que, no presente, são vistas como terríveis, desumanas, obstáculos à liberdade: a opressão, a censura, os estados totalitários, a violência etc. Em Admirável Mundo Novo o pressuposto é exatamente contrário; a sociedade futurista é oprimida pelas coisas que facilitam a vida: a razão, a ciência, a tecnologia etc. Acho que nesses termos a gente pode considerar a sacada crítica do Huxley mais original, mais precisa e mais necessária do que a de um Orwell que escrevia dentro de um contexto mais específico, com alvos certos.

O outro ponto do debate já foi sugerido, em outros moldes, pelo Vincer: por que a ficção especulativa sofre tanto para ser aceita para dentro da crítica? Eu arrisco uma resposta: acho que o conteúdo das obras hoje em dia pouco importa; interessa à crítica literária o que o autor e a obra trazem de novo em termos de linguagem. E poucos - quais além de Neuromancer? - são as obras de ficção especulativa que inovaram em termos de linguagem, muito embora a linguagem seja uma das coisas mais fascinantes de se trabalhar em um universo distópico.

Offline Malena Mordekai

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Re:Distopias
« Resposta #6 Online: Junho 13, 2012, 10:32:44 am »
Assim como "o inferno são os outros", posso enxergar uma distopia como utopia por concordância com aquele futuro imaginado.

Assim é comigo com Admirável Mundo Novo -- se não fosse pelo consumismo exagerado necessário àquela sociedade, para mim seria o paraíso.

É interessante notar como o "aviso do que pode acontecer" muitas vezes se concretiza: em Admirável, embora o cerne não contenha avisos de perda de privacidade, sabemos que a situação do livro só foi aceita pela humanidade após períodos de guerras atrozes. As pessoas queriam paz e a qualquer custo, inclusive o de suas liberdades pessoais.

E recentemente não vimos isso? Muito mais relevante que qualquer contagem de mortes do 11/09, foi a mudança efetuada na sociedade americana e que repercutiu em todo o mundo: as pessoas estavam, e estão, dispostas a perder privacidade, liberdades e direitos, em troca de uma maior "segurança".

Bom, eu tentei encontrar um link do i09 que falava de distopias e não o encontrei, em vez disso encontrei vários outros (inclusive com recomendações, coisa que o Cigano quer) e os compartilho:

http://io9.com/5016913/dystopian-science-fiction-can-save-the-world-according-to-you

http://io9.com/5862455/10-great-american-dystopias

http://io9.com/5853166/10-most-far+fetched-future-dystopias

http://io9.com/5914737/why-do-we-need-more-optimistic-science-fiction?utm_campaign=socialflow_io9_facebook&utm_source=io9_facebook&utm_medium=socialflow

É até interessante que este tópico não tenha o símbolo inexistente de Livros, pq o assunto vai muito além da literatura. Existem filmes distópicos que jamais tiveram versões literárias; mesma coisa com HQs, o futuro de "V de Vingança" é claramente distópico e nele aconteceu o que comentei acima, perda de liberdade em troca de segurança.
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Offline Madrüga

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Re:Distopias
« Resposta #7 Online: Junho 13, 2012, 11:10:05 am »
Ele lida com temas como dissonância cognitiva, controle de informação, memória seletiva, exclusão social (no sentido de alguém que é excluído por não se encaixar no que a sociedade espera, como os testemunhas de jeová fazem com os ex-membros) e alienação de massas. É uma leitura muito rica em termos de ambiente.

Até porque tem adendos (tipo o dicionário de newspeak), parece coisa de cenário de RPG mesmo.

O foco da ficção especulativa em geral é usar cenários possíveis(no sentido que evitam furos de consistência, 'magia', enfim), não os prováveis, para explorar facetas humanas em condições diversas da nossa realidade. (...) Eles não pretendem alarmar que esses futuros podem acontecer a qualquer momento. 1984 por exemplo extrapola o autoritarismo, invasão da privacidade e manipulação da opnião pública ao máximo de forma propositalmente exagerada. É muito improvável que cheguemos aquele ponto naquelas condições, que o estado crie uma nova linguagem, etc, etc... mas não é esse o ponto. Através do exagero ele consegue explicitar muito melhor a crítica a essas tendências.

Quando eu estava pesquisando para o meu TCC, eu li uma tese dum cara criticando essa suposta verossimilhança, dizendo que muitas situações são impossíveis, etc, mas realmente, como você disse, ele perde o ponto. Não é essa a questão.

Com certeza concordo embora o propósito principal da ficção especulativa seja realmente o acima, e não uma envolvente história. O que não é uma carta branca para uma narrativa porca e nunca foi; Por isso a ficção especulativa é comumente mal vista pela crítica e autores não especulativos o que diminui simplesmente porque acho que eles cansaram de bater em cavalo morto e preferem ignorar esse nicho. (...) Só fã dessas ficções vem com esse papo de 'não é esse propósito' para os bajular como melhores romances já vistos.

Também acho que um romance distópico não deve ser avaliado pelo seu potencial profético, mas pelo seu conteúdo dramático. É impossível uma distopia que não projete no futuro problemas que já encontramos no presente. Por exemplo, eu poderia considerar muito melhor um livro distópico que apresente um futuro completamente impossível de acontecer, mas que produza, dentro desse esquema, metáforas, tramas, dramas e personagens com riqueza, do que um que apresentasse isso em menor escala com mais chances de ser verossímil.

(...)

O outro ponto do debate já foi sugerido, em outros moldes, pelo Vincer: por que a ficção especulativa sofre tanto para ser aceita para dentro da crítica? Eu arrisco uma resposta: acho que o conteúdo das obras hoje em dia pouco importa; interessa à crítica literária o que o autor e a obra trazem de novo em termos de linguagem. E poucos - quais além de Neuromancer? - são as obras de ficção especulativa que inovaram em termos de linguagem, muito embora a linguagem seja uma das coisas mais fascinantes de se trabalhar em um universo distópico.

Acho que o principal problema da aceitação das ficções especulativas é justamente a falta de inserção social. Por exemplo, é muito fácil ser um "crítico mordaz de seu tempo" quando você nem vive no país que está criticando. Sobre o "admirável mundo novo", eu li um crítico do tempo que (golpe baixo, claro) falava sobre o background acadêmico e burguês do Huxley (bem-nascido, estudou em Eton, família de acadêmicos e artistas) e disse que "o sr. Huxley deve ter o direito de procurar algum problema que ele não tem", algo assim.

É diferente (diferente, não melhor nem pior) de um Pilniak, um Bulgákov ou um Zamiátin, que produziram ficção científica como maneira de criticar uma sociedade que se pretendia cientifizada e futurista (a URSS), mas estando inseridos nessa mesma sociedade, entendendo suas maquinações, sonhos e frustrações. São retratos fiéis da decepção com o projeto soviético ao mesmo tempo que são protestos perigosos contra o regime (e foram devidamente punidos por causa disso).

O problema aí é que muito dessa produção de ficção especulativa surge sem grandes motivos, com críticas vazias e simplórias, escritas por gente completamente alheia a um problema real. Em suma, é literatura burguesa.

É claro que grandes livros surgem exatamente aí, e tenho que concordar com o Lanzi nessa questão da história bem construída: em termos de coerência interna, "player piano" dá de dez a zero em "1984" e "admirável mundo novo". É uma história bem-feita, bem sacada, os personagens são vivos, as situações são plausíveis, a crítica é bem-feita.

Isso não tira valor de nenhum livro, contudo. Mas em termos LITERÁRIOS, eu digo que "player piano" não deixa nada a desejar. Engraçado que o próprio Vonnegut disse que "alegremente plagiou 'admirável mundo novo', que tinha por sua vez alegremente plagiado 'nós'". Ou seja, ele sabia que não estava inovando, mas dando um tratamento diferente a um tema já conhecido.

E próxima vez que alguém disser 'é um aviso sobre o futuro!' dá um tapa nele por mim, para ver se ele acorda.

Vontade não falta, XD

Orwell além de ficcionista foi um crítico mordaz de seu tempo. Revolução dos bichos é outra pérola dele a criticar o comunismo praticado tão diferente do que foi idealizado. Conseguiu criar um choque nos seus leitores com sua obra fria, opressiva e dura. Eu tive pesadelos após terminar o livro e fiz uma enquete com conhecidos que leram e foi o mesmo com eles. Só com a internet que encontrei pessoas que haviam lido e não tinham tido pesadelos após o final.

Sério? Eu achei o final chocante, mas o problema do Orwell ter cismado com a revolução russa é que ele também fica batendo num cachorro morto. As referências à URSS em "1984" chegam a cansar um pouco, são exageradas e muitas.
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Offline kinn

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Re:Distopias
« Resposta #8 Online: Junho 13, 2012, 11:42:52 am »
Eu acho que 1984 é uma mistura de URSS stalinista com propaganda nazista bem sucedida e corporação eficiente.
Revolução dos bichos que seria 100% URSS.

E em termo de críticos Dostoievsky (?) é excelente crítico do seu tempo com muito menos ficção. Eu diria que também é o inventor da fórmula das novelas, pelo formato que conduz suas histórias.
Pesquisas provam:
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Offline Madrüga

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Re:Distopias
« Resposta #9 Online: Junho 13, 2012, 12:28:49 pm »
E em termo de críticos Dostoievsky (?) é excelente crítico do seu tempo com muito menos ficção. Eu diria que também é o inventor da fórmula das novelas, pelo formato que conduz suas histórias.

Isso é frase feita. "Menos ficção" é besteira. Fora as "notas de inverno sobre impressões de verão", tudo é ficção, ora. A diferença é que Doistoiévski estava inserido naquela sociedade que retratava e criticava, tinha sua própria posição ideológica sobre política, eslavismo e religião e utilizava acontecimentos contemporâneos para se inspirar (notícias que abalavam a Rússia, como o suicídio da "krótkaia" ("a humilde"? algo assim) que inspirou o conto, etc.

Ele podia até ser "crítico de seu tempo", mas era cristão convicto, por exemplo, o que ia na contramão do niilismo e do socialismo soviético que começava a nascer. Quando dizemos "crítico de seu tempo", parece que o cara é um herói isolado, certo em tudo, cortando com sua pena pujante tudo que há de hipócrita na sociedade. Mas pô, até o taxista reclamão é um crítico de seu tempo.

O que estou dizendo é que Orwell era, afinal, um estrangeiro criticando a URSS. Isso é válido, mas a coisa é tão repetitiva que por vezes parece propaganda. É como a menção a Ford no "admirável mundo novo": é bacana, legal, trocadilho sacado, mas a repetição enche o saco. Como disse outro crítico da época, parece que ele achou uma piada muito boa, mas não se contentou em contá-la uma vez só.
« Última modificação: Junho 13, 2012, 12:36:43 pm por Madrüga »
"If there are ten thousand medieval peasants who create vampires by believing them real, there may be one -- probably a child -- who will imagine the stake necessary to kill it. But a stake is only stupid wood; the mind is the mallet which drives it home."
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Re:Distopias
« Resposta #10 Online: Junho 13, 2012, 03:27:56 pm »
Mas eu costumo aceitar a ideia de que a crítica do Huxley é voltada para um alvo maior; o processo de racionalização da sociedade ocidental. Deste modo, como o acadêmico burguês que era, sua crítica até se encontra bastante assentada sobre o local social do qual ele fala.

Pelo que li a insistência do Orwell se deve à sua desilusão com o comunismo, uma vez que o cara teve ideais revolucionários, chegando até a ter lutado na Espanha. Então, descontente com os rumos das revoluções pelas quais ele mesmo havia lutado, mesmo que fosse um inglês, deve ter usado a literatura como instrumento crítico.

Acho que o recurso da distopia costuma ser usado, com poucas excessões, como uma forma de imaginar os problemas da sociedade contemporânea acentuados no futuro e a partir disso tecer uma crítica sobre os possíveis rumos do presente. Também pode ser usada como simples experimentação literária, já que a literatura é um exercício de imaginação. Esse segundo caso costuma se preocupar menos com a crítica, com a verossimilhança etc. Do primeiro sobram exemplos: Neuromancer, Laranja Mecânica, 1984, Admirável Mundo Novo, O Homem Duplo. Quanto ao segundo, estou tendo até dificuldade de me lembrar de algum, na verdade, mas sei que existem.

Offline Malena Mordekai

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Re:Distopias
« Resposta #11 Online: Junho 13, 2012, 04:18:21 pm »
Claro que Ford tem de ser citado várias vezes, ele é a figura divinizada do Admirável Mundo Novo, seria como ler um romance medieval sem ler menções constantes a Deus.
E como no caso de Deus, a figura real de Ford não tem a menor relevância, ao ponto de considerar-se que ele e Freud eram a mesma pessoa.

Ao contrário do Madrüga eu gosto da literatura desse livro; gosto dos personagens e como eles parecem rasos, exceto aqueles que são desajustados, como Bernard, Helmhotz e, lógico, o Selvagem. Porém mais profundo até do que estes três é Mustafá Mond, dá pra entender o pesar e o pragmatismo dele muito bem, e você só lê suas palavras mais sinceras no final.

E eu não acho besteira essa menor importância que se dá aos personagens individuais em algumas obras da ficção especulativa. É como na ficção de horror, os personagens não são o principal, e sim a atmosfera.
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Re:Distopias
« Resposta #12 Online: Junho 13, 2012, 06:38:11 pm »
Eu entendo o Madruga quando ele fala da pobreza da trama do Admirável Mundo Novo. Aquele discurso final, igual ao discurso do O'brien no 1984, é a típica síndrome do Scooby-Doo: sempre tem que vir um "vilão" pra esclarecer tudo.

Offline Malena Mordekai

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Re:Distopias
« Resposta #13 Online: Junho 13, 2012, 07:23:03 pm »
De fato, mas ao contrário de outros discursos de vilão, o mais provável é que o leitor sinta simpatia pelo Mustafá Mond.
Eu mesmo acho o Selvagem chatíssimo, um pé no saco que não compreende nada ao seu redor, apesar da própria inteligência, e que na verdade se tivesse o poder em mãos seria um verdadeiro tirano e opressor.
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Offline Madrüga

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Re:Distopias
« Resposta #14 Online: Junho 13, 2012, 07:34:13 pm »
O Selvagem é um mala mesmo. Eu achava (ainda acho um pouco) que
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mas tem a ver com o direito à infelicidade e com as emoções nobres, que o Mustafa Mond declarou não serem mais necessárias no novo mundo (daí Shakespeare ser banido, por exemplo). Ele queria vivenciar uma tragédia.

Uma coisa que ninguém consegue me enfiar na cabeça é o lance de "orgy-porgy". Aquilo é estúpido demais. Me dá vergonha alheia de ler.

Quanto ao Ford, rola um exagero no tratamento. Embora o Huxley não admitisse que leu "nós" antes de escrever seu livro, me parece que tem muito da mesma ideia que o Zamiátin colocou na figura profética de Taylor. Mas o excesso das referências, a torre T, o símbolo do T, as rezas, as canções, as exclamações... sei lá. Demais.

Lanzi, acho que injustiçamos o "fahrenheit 451" (pô, o Bradbury morreu esses dias). Ninguém lembrou dele, XD
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