Ele lida com temas como dissonância cognitiva, controle de informação, memória seletiva, exclusão social (no sentido de alguém que é excluído por não se encaixar no que a sociedade espera, como os testemunhas de jeová fazem com os ex-membros) e alienação de massas. É uma leitura muito rica em termos de ambiente.
Até porque tem adendos (tipo o dicionário de newspeak), parece coisa de cenário de RPG mesmo.
O foco da ficção especulativa em geral é usar cenários possíveis(no sentido que evitam furos de consistência, 'magia', enfim), não os prováveis, para explorar facetas humanas em condições diversas da nossa realidade. (...) Eles não pretendem alarmar que esses futuros podem acontecer a qualquer momento. 1984 por exemplo extrapola o autoritarismo, invasão da privacidade e manipulação da opnião pública ao máximo de forma propositalmente exagerada. É muito improvável que cheguemos aquele ponto naquelas condições, que o estado crie uma nova linguagem, etc, etc... mas não é esse o ponto. Através do exagero ele consegue explicitar muito melhor a crítica a essas tendências.
Quando eu estava pesquisando para o meu TCC, eu li uma tese dum cara criticando essa suposta verossimilhança, dizendo que muitas situações são impossíveis, etc, mas realmente, como você disse, ele perde o ponto. Não é essa a questão.
Com certeza concordo embora o propósito principal da ficção especulativa seja realmente o acima, e não uma envolvente história. O que não é uma carta branca para uma narrativa porca e nunca foi; Por isso a ficção especulativa é comumente mal vista pela crítica e autores não especulativos o que diminui simplesmente porque acho que eles cansaram de bater em cavalo morto e preferem ignorar esse nicho. (...) Só fã dessas ficções vem com esse papo de 'não é esse propósito' para os bajular como melhores romances já vistos.
Também acho que um romance distópico não deve ser avaliado pelo seu potencial profético, mas pelo seu conteúdo dramático. É impossível uma distopia que não projete no futuro problemas que já encontramos no presente. Por exemplo, eu poderia considerar muito melhor um livro distópico que apresente um futuro completamente impossível de acontecer, mas que produza, dentro desse esquema, metáforas, tramas, dramas e personagens com riqueza, do que um que apresentasse isso em menor escala com mais chances de ser verossímil.
(...)
O outro ponto do debate já foi sugerido, em outros moldes, pelo Vincer: por que a ficção especulativa sofre tanto para ser aceita para dentro da crítica? Eu arrisco uma resposta: acho que o conteúdo das obras hoje em dia pouco importa; interessa à crítica literária o que o autor e a obra trazem de novo em termos de linguagem. E poucos - quais além de Neuromancer? - são as obras de ficção especulativa que inovaram em termos de linguagem, muito embora a linguagem seja uma das coisas mais fascinantes de se trabalhar em um universo distópico.
Acho que o principal problema da aceitação das ficções especulativas é justamente a falta de inserção social. Por exemplo, é muito fácil ser um "crítico mordaz de seu tempo" quando você nem vive no país que está criticando. Sobre o "admirável mundo novo", eu li um crítico do tempo que (golpe baixo, claro) falava sobre o background acadêmico e burguês do Huxley (bem-nascido, estudou em Eton, família de acadêmicos e artistas) e disse que "o sr. Huxley deve ter o direito de procurar algum problema que ele não tem", algo assim.
É diferente (diferente, não melhor nem pior) de um Pilniak, um Bulgákov ou um Zamiátin, que produziram ficção científica como maneira de criticar uma sociedade que se pretendia cientifizada e futurista (a URSS), mas estando inseridos nessa mesma sociedade, entendendo suas maquinações, sonhos e frustrações. São retratos fiéis da decepção com o projeto soviético ao mesmo tempo que são protestos perigosos contra o regime (e foram devidamente punidos por causa disso).
O problema aí é que muito dessa produção de ficção especulativa surge sem grandes motivos, com críticas vazias e simplórias, escritas por gente completamente alheia a um problema real. Em suma, é literatura burguesa.
É claro que grandes livros surgem exatamente aí, e tenho que concordar com o Lanzi nessa questão da história bem construída: em termos de coerência interna, "player piano" dá de dez a zero em "1984" e "admirável mundo novo". É uma história bem-feita, bem sacada, os personagens são vivos, as situações são plausíveis, a crítica é bem-feita.
Isso não tira valor de nenhum livro, contudo. Mas em termos LITERÁRIOS, eu digo que "player piano" não deixa nada a desejar. Engraçado que o próprio Vonnegut disse que "alegremente plagiou 'admirável mundo novo', que tinha por sua vez alegremente plagiado 'nós'". Ou seja, ele sabia que não estava inovando, mas dando um tratamento diferente a um tema já conhecido.
E próxima vez que alguém disser 'é um aviso sobre o futuro!' dá um tapa nele por mim, para ver se ele acorda.
Vontade não falta,
Orwell além de ficcionista foi um crítico mordaz de seu tempo. Revolução dos bichos é outra pérola dele a criticar o comunismo praticado tão diferente do que foi idealizado. Conseguiu criar um choque nos seus leitores com sua obra fria, opressiva e dura. Eu tive pesadelos após terminar o livro e fiz uma enquete com conhecidos que leram e foi o mesmo com eles. Só com a internet que encontrei pessoas que haviam lido e não tinham tido pesadelos após o final.
Sério? Eu achei o final chocante, mas o problema do Orwell ter cismado com a revolução russa é que ele também fica batendo num cachorro morto. As referências à URSS em "1984" chegam a cansar um pouco, são exageradas e muitas.