Deixa eu ir direto ao exemplo que queria dar. Isso vai ser um pouco longo, mas acho que vale a pena ler.
Há a seguinte situação: um trem vai atingir 5 pessoas que trabalham desprevenidas sobre a linha. Mas você tem a chance de evitar a tragédia acionando uma alavanca que leva o trem para outra linha, onde ele atingirá apenas uma pessoa. Você mudaria o trajeto, salvando as 5 e matando 1?
Chamarei essa de Situação 1 ou S1.
Outra situação: um trem em disparada irá atingir 5 trabalhadores desprevenidos nos trilhos. Agora, porém, há uma linha só. O trem pode ser parado por algum objeto pesado jogado em sua frente. Um homem com uma mochila muito grande está ao lado da ferrovia. Se você empurrá-lo para a linha, o trem vai parar, salvando as 5 pessoas, mas liquidando uma. Você empurraria o homem da mochila para a linha?
Chamarei essa de Situação 2 ou S2.
(não se preocupem com as questões logísticas da situação - "ah, não tenho certeza se o trem pararia arremessando o cara" e coisas assim -, pois são irrelevantes para o caso. O que queremos avaliar é o dilema moral, não a coerência da circunstância criada. Considerem que todas as informações das situações são precisas e que vocês têm certeza disso.)
Num estudo realizado em Harvard, colocaram essa situação diante de diversas pessoas, de diferentes classes sociais, de diferentes culturas (contanto saibam o que é um trem).
Na S1, 97% das pessoas, sem diferença significativa entre pessoas de diferentes classes sociais, escolaridade, etc., responderam que puxariam a alavanca, salvando as cinco pessoas e condenando a outra.
No S2, 75% das pessoas, também sem diferença significativa entre populações, disseram que não empurrariam o rapaz, salvando as cinco pessoas e condenando-o.
É um dado interessante. Afinal de contas, em termos estritamente lógicos, não há diferença entre S1 e S2: ambos significam condenar alguém para salvar outras cinco pessoas. Mas as respostas a S1 e S2 são quase opostas. Por quê?
Sabe-se já há algum tempo que o ser humano (e os demais animais, mas com mais limitações) aprende pelas consequências de sua ação. Se eu jogo comida no chão e minha mãe me bate, diminui a probabilidade de que eu faça o mesmo em situações similares. Se eu tento abrir uma porta girando a maçaneta e não consigo, mas quando puxo ela abre, e assim sucessivamente, aumenta a probabilidade de que, se eu quiser abrir essa porta, nas próximas vezes eu puxe a maçaneta ao invés de girá-la.
Aprendemos através de nossas experiências diretas, através da experiência de outros (vejo alguém conseguindo abrir a porta puxando ao invés de girar, por exemplo) ou através de ensinamentos (alguém nos diz o que deveríamos ou não fazer em determinadas situações).
Pois bem, usualmente a ação "empurrar alguém da ponte, na frente de um trem" seria punida. Por isso e talvez por razões filogenéticas (aí estamos especulando, mas é possível), a maioria de nós sente um mal-estar tremendo com a ideia. Empurrar alguém da ponte, que parece que não tinha nada a ver com a situação, soa a nós, mesmo que inconscientemente, como assassinato. Um frio e cruel, ainda por cima.
"Puxar uma alavanca", mesmo que as consequências sejam as mesmas, não...
Em S2 temos uma participação ativa, estamos empurrando alguém da ponte em frente ao trem e isso está diretamente relacionado com algo ruim, moralmente reprovável. Em S1, temos uma participação mais indireta, mesmo as consequências sendo exatamente as mesmas, mas não nos soa tão "errado".
As muitas variações desta pesquisa confirmam essa hipótese ("e se você puxasse uma alavanca que fizesse cair o mochileiro?" e etc).
Agora vamos a um dos debates morais correntes: a eutanásia.
Para a maioria das pessoas a eutanásia é moralmente condenável. Implica, pra eles, matar alguém. Já a ortotanásia, que é simplesmente suspender tratamento para deixar a pessoa morrer, é muito mais aceita e inclusive aprovada legalmente. A consequência de ambas é a mesma (a pessoa morre), mas na ortotanásia é talvez pior, já que prolonga a malograda existência da pessoa (que já quer morrer, o desejo tem que ser dela) até que a doença ou seja-lá-o-que-for a mate. Qual a diferença?
A diferença é essencialmente a mesma do S1 e S2. Na eutanásia, a pessoa participa ativamente da morte da outra, ela injeta uma substância (geralmente altas doses de morfina) para que a pessoa morra, como ela deseja, naquele momento e sem dor. Na ortotanásia ela participa passivamente: suspende o tratamento, o que inevitavelmente implicará também na morte da pessoa, mas não tá lá, injetando nada que ocasionará a morte dela. Essa última soa menos errada pra maioria de nós e a primeira parece algo mais próximo de assassinato, de imoral e provavelmente se fossemos a pessoa que faz um ou outro, sentiríamos mais remorso se fossemos o da eutanásia.
Pelo exato mesmo motivo: geralmente injetar algo em alguém, ocasionando a morte, é punido, nos soa como assassinato, causa mal-estar pensar em fazer isso com alguém; simplesmente suspender tratamento - mesmo que as consequências sejam bem mais nefastas, como descrevi -, não.
Mas isso é uma falha da nossa aprendizagem, chamada de generalização de estímulo. Situações com propriedades semelhantes ocasionam respostas semelhantes, mesmo que não seja o caso. É o mesmo que uma pessoa que (lá vem exemplo esdrúxulo, porque tô elaborando agora) apanha do pai e aprende que não pode enfrentá-lo, mas que agora está diante de um babaca que quer pegar sua mulher, mas não consegue enfrentá-lo porque ele se parece com o pai. Independente da nossa aprendizagem, essa simplesmente não é a resposta mais adequada a essa situação.
Essa compreensão, muito grosseiramente descrita aqui, implica sim numa mudança em relação ao dilema moral. Ora, se o que nos causa repulsa à eutanásia mas não à ortotanásia é uma falha do modo de aprendizagem do ser humano, uma generalização de estímulos, então, compreendendo isso, compreendendo a nossa motivação e o porquê do incômodo, estamos aptos a agir diferentemente. O que implica, inclusive, em tomar decisões legais diferentes. É algo imenso.
Claro, a ciência não está prescrevendo nada. Ela não está dizendo: "olha, isso ocorre devido a um problema de generalização de estímulos, que faz com que você tenha uma resposta disfuncional nessa ocasião, logo você deve tomar a outra atitude". O que ela faz pára antes do "logo" ali, ou seja, só descreve. Mas aquele que acredita que a descrição não implica na prescrição está sendo bastante ingênuo.
A religião diz "faça isso" e "faça aquilo" porque "é a vontade de Deus". A ciência diz "se você fizer isso, acontecerá aquilo", "se você fizer aquilo outro, acontecerá isso" e "você faz isso por causa de X, Y e Z". Pra mim, ambas têm implicações morais. A diferença é que uma é dogmática - e por isso mesmo tem de ser tão prescritiva - e a outra é mais bem fundamentada, sendo mais persuasiva do que impositiva (o que não quer dizer que ela esteja certa).