Capítulo 11: O Futuro a partir de Qi
O Tonel avançava ao sabor da consternação. A capitã Akelle, a marinheira Mia e Stolinson, responsável pela carga, estavam mortos. Sob o efeito daquela pintura insidiosa, mutilaram-se com lâminas e as mãos nuas. Jaziam no convés, sob sacos grosseiros que antes levavam grãos. O Glifo já era a lembrança de ninguém além de Mark, Zippack, Czyran e Dedalus. De algum modo, por conta das imagens que os tomou de assalto, sabiam todos ser a pintura que Akelle trouxera ao Tonel a responsável por aquilo. A tragédia apenas ocorrera a partir da intervenção dos quatro. Mas não estivessem ali, o horror talvez tivesse vitimado a todos. Essa tripulação dividida cabia a London manter estável o bastante para aportar em Qi.
Entre os pertences pessoais de Akelle pouco havia para descobrir a respeito de Propaganda, assim era chamada a pintura. As anotações da capitã limitavam-se a mencionar a necessidade de se reportar à Guilda dos Mercadores de Qi, um procedimento incomum sendo o cog parte da Marinha Mercante de Ghan.
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Novansko subiu ao Tonel no final da tarde. Avaliou a carga e os mortos. Ambos foram desembarcados, mas a tripulação permaneceria retida até a manhã seguinte. London, a quem caberia as justificativas, partiu com ele. As explicações foram acordadas entre toda a tripulação. Mia e Stolinson teriam se amotinado contra a capitã por conta do baixo pagamento pelo transporte de grãos. Acabaram os três feridos além dos recursos que o Tonel levava. Nada seria dito a respeito de Propaganda, mas dela muito se falara. Havia aqueles que acreditavam que a peça deveria ser destruída, colocada sob a responsabilidade da Marinha Mercante de Ghan ou entregue a quem contratou seu transporte. A última opção acabou escolhida. Era a única da três maneiras que daria acesso a recursos para pagar pelos serviços da tripulação e por seu silêncio.
Do alto do Tonel, Dedalus fez com que um bilhete fosse entregue por um moleque à Guilda dos Mercadores de Qi. Foi ele também o ultimo a falar com Glifo, ainda que dessa conversa não fosse lembrar. Devolveu-lhe o Visor de Memórias e recomendou que se dirigisse ao encontro dos Pais Pretéritos.
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Até o meio da manhã seguinte a notícia da morte de parte da tripulação do Tonel já se espalhara pelo porto. Talvez por isso, nenhum bilhete com resposta da Guilda chegara. Decididos a completar o acordo de Akelle, ainda que com objetivos próprios, os quatro saíram às ruas. Em vários locais anunciava-se a plenos pulmões a 1a Regata Aérea de Qi. Sobrevoadores de diversos tamanhos, muitos deles semelhantes ao Fus-K, levavam e traziam a população da Cidade no Alto, a porção mais rica de Qi, onde os abastados viviam, muitos sem jamais tocar o chão. No solo, trípodes biomecânicos, os zhevs, garantiam a segurança das áreas mais movimentadas, inundadas por pessoas de todo o continente e de locais muito mais distantes também.
A sede da Liga dos Mercadores de Qi era um enorme balcão de negócios, onde a burocracia da maior parte das transações comerciais dos Nove Reinos era registrada com litros de tinta e quantidades maciças de papiro. Infelizmente, apenas uma linha fora dedicada ao Tonel. Sua carga era uma doação da Liga à Catedral da Forma. Não havia, segundo o responsável pelo livro de apontamentos, necessidade maior do que essa. A Marinha Mercante de Ghan detinha autonomia sobre os detalhes de suas negociações, a respeito das quais a Guilda não interferia.
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A Catedral da Forma era uma construção que se parecia com todas, combinando vitrais suntuosos a paredes de barro, rocha grosseira resultando em zigurates cuidadosamente alinhados, como se todas as possibilidades pudessem ser indefinidamente acrescentadas a uma pedra fundamental. Na entrada, uma criatura solicitava o nome daqueles que adentravam à nave. Seus braços curtos estavam presos a uma escrivaninha, sobre a qual repousava um interminável livro de registros. As pernas eram debilitadas e os músculos escassos acomodavam-se sob a pele acinzentada. Sobre a cabeça piava ocasionalmente um pequeno pássaro de metal, engaiolado e comportando-se como algo vivo.
Lá dentro, quase todos eram mutantes, a maioria com marcas muito evidentes disso. Czyran, que já dispensara a luva usada para esconder sua condição, foi abordado por Hristo. Vestia-se com os trajes simples, os preferidos por aqueles que adoravam Nomothet. O Deus da Carne era vividamente representado numa escultura cuja intenção era a mesma da Catedral. Uma pessoa destinada à transformação a partir de um princípio original e impermanente.
Torsos, membros, olhos e órgãos internos misteriosamente preservados estavam expostos na nave, todos apresentando algum grau de mutação. Uma das criaturas que os recebeu à porta fora seccionada numa série de momentos, como que para a revelação dos vários estágios de sua feitura. Eram chamados de Escrevinhadores.
Hristo, cuja metade do rosto era cinzenta e desprovida de pelos, com um dos olhos anormalmente alongado, nada sabia a respeito de Akelle. Ele foi responsável por receber a doação trazida pelo Tonel, uma generosidade da Guilda dos Mercadores de Qi que contou com o auxílio de um feitor chamado Dimas. Hristo lamentou a morte da capitã, da qual ouviu falar superficialmente, mas nada mais tinha a acrescentar.
Antes de despedir-se, reforçou o convite a Czyran para uma nova visita. Então, dirigiu-se até um nobre cuja voz exaltada perturbava o ambiente.
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De volta à Liga dos Mercadores, agora sabendo quem foi o provável receptor do bilhete enviado na noite anterior, um encontro foi marcado. Dimas não pôde falar-lhes naquele momento, mas seria aguardado à noite na taverna onde estão hospedados, na região do porto.
Sentaram-se separados. Mark e Zippack, Dedalus e Czyran. Supunham que as roupas deste último, denunciando sua condição de nobreza no salão daquela espelunca à beira da Baía da Lua, atrairia Dimas. Apenas Zippack o vira, de relance, na segunda visita à Liga. Passados alguns minutos após o horário marcado para o encontro, uma confusão entre um jovem e o dono do lugar teve início. – Ela está morta, você não sabia? Quer falar com uma morta, garoto? – Dimas não viera, mas mandara um recado, entregue por um rapaz temendo uma surra ou coisa pior. Esperava que a entrega se realizasse mais tarde, quando a promessa à capitã seria cumprida. O representante de Akelle deveria comparecer sozinho.
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Zippack levava Propaganda em um tubo para acomodar mapas. O ponto de encontro ficava em meio a um labirinto de ruelas estreitas, distante o suficiente da região central para evitar o patrulhamento dos zhevs. Quem o esperava se deixou ver em meio às sombras. Por baixo da capa, a empunhadura reluzente do que poderia ser uma espada ou faca de lâmina larga. Trocaram breves palavras, demonstrando a pouca disposição de ambos para surpresas e ardis. Após ter conferida a qualidade do pano utilizado na tela, Propaganda foi levada dali.
A pequena caixa que Zippack recebeu em troca cabia na palma da mão. Seus símbolos, segundo Dedalus, eram termos como destino, encontro e guia. Se parecia com uma bússola, mas apontava não ao norte, mas a noroeste. Czyran lembrou aos demais as histórias anotadas por London a respeito da Pedra Sorridente, a Esquadra Vermelha, tesouros e seres de outros mundos habitando as profundezas do Mar Corare.
Era arriscado demais para que pudessem resistir.
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Havia muito o que fazer ao longo dos dias seguintes, quando Qi se preparava para a sua 1a Regata Aérea.
O primeiro e mais importante passo foi relatar a London o resultado da negociação envolvendo Propaganda. O imediato ainda encontrava-se abalado pela perda de Akelle, e não seria diferente para o restante da tripulação. A Marinha Mercante de Ghan havia pago um valor modesto a todos pela viagem de Glavis até Qi e descomissionara o Tonel. A possibilidade de navegar aos mares do norte animava o velho marinheiro, e quem sabe fizesse o mesmo pelos demais. A inciativa era arriscada, e precisariam de pelos menos 10 mil shins para uma embarcação e mantimentos.
Stephen Dedalus concentrou-se no contato com a Ordem da Verdade. Esperava ser recebido por Pai Onald, de quem Pai Loig falara, ainda em Glavis. Responsável pelo contato com pessoas que prestavam serviços aos Pais Pretéritos, mas não eram membros, Pai Onald fazia o possível para receber Dedalus com a atenção que seu tempo escasso permitia. Aparentemente, uma grande surpresa aguardava a população de Qi ao final da 1a Regata Aérea, e por Pai Onald passavam os arranjos necessários à misteriosa revelação. O seu interesse na tragédia ocorrida em Glavis fez com que Dedalus recomendasse a Czyran que evitasse a Ordem. Poderiam ser relacionados aos acontecimentos, algo de que certamente não precisavam.
Impedido pela prudência de realizar seu propósito em Qi, Czyran Eczoz imaginava dividir sua atenção entre a nobreza local, a quem a boa vontade dos nobres de Glavis em relação à guerra dos Pais Pretéritos poderia interessar, e a Catedral da Forma, onde talvez aprendesse mais a respeito de mutações. Para sua surpresa, nobres e mutantes tinham ali um inesperado espaço de congregação discreta, uma informação que aos poucos Hristo lhe cedeu. Essa foi a razão da doação de grãos, pagamento por uma entrega muito especial realizada a uma nobre chamada Vita Severn.
Mark tinha a expectativa de vender sua habilidade de combate da maneira mais lucrativa possível. Descobriu, contudo, que ela seria necessária para a preservação da própria cabeça, posta a prêmio. Membros do exército de Thaemor já há algum tempo buscavam trabalho como mercenários em Qi. Trouxeram consigo a notícia de que um certo desertor que apunhalou seu capitão valia 300 shins, pouco importando se vivo ou morto. Gerard fez a revelação ante a espada de Mark, pouco depois de uma emboscada frustrada que deixou dois mortos e por pouco não envolveu um zhev. O nobre local que pagaria o prêmio chamava-se Vilerm Akefie.
A visão dos sobrevoadores enchia Zippack Ranzz de esperança. Quem sabe ali conseguiria um substituto à altura do Fus-K e faria pelos ares a viagem ao norte. A aproximação da 1a Regata Aérea lhe parecia uma boa oportunidade para tanto. Nos bastidores, repleto de nobres, capitães aéreos e todo o tipo de especialistas em Numenera, avistou um rosto conhecido. Choen Mohsen, líder do Conselho de Nobres de Ishlav e autora de uma oferta pelo Fus-K, estava em Qi. Lamentou saber que o sobrevoador de Zippack fora destruído. Com algumas modificações, ele seria um concorrente digno na regata. Contudo, seu antigo condutor representaria uma adição interessante à equipe que Mohsen estava formando.
Já há alguns dias, conforme os mais importantes convidados para a regata chegavam à cidade, o Salão Policromático se convertera no local favorito daqueles que dispunham dos recursos para desfrutar de arte e de boas conversas trezentos metros acima do solo. Czyran chegara ali pela força do próprio sobrenome, trazendo Mark a tiracolo. Zippack era convidado de Choen Mohsen, enquanto Dedalus contara com a gentileza de Pai Onald. Do alto do Salão Policromático seria dada, dali a poucos dias, a largada para 1a Regata Aérea, a qual, após vencidos vários obstáculos que exigiriam grande habilidade das equipes de cada sobrevoador, se encerraria sobre o Durkhal, a sede da Ordem da Verdade, uma verdadeira cidadela dentro de Qi. No momento, o Salão era objeto de uma gloriosa exposição organizada por Vita Severn. Arte e Numenera tinha entre suas peças a representação viva do Deus da Carne, cortesia da Catedral da Forma. A obra principal, um quadro finalizado recentemente por Jacopo de Glavis, criação definitiva do mestre antes de seu suicídio, apenas seria revelada no dia da regata. Mark, Zippack, Czyran e Dedalus sabiam exatamente o que era e o que poderia fazer.
Flanando pelo salão, cada qual com seu quinhão de graça social, foi possível descobrir que Vilerm Akefie e Vita Severn eram parceiros, sendo que o primeiro possuía algum grau e ascendência sobre a segunda. Além disso, a presença de uma obra “glorificando” a Catedral da Forma contrariava a Ordem da Verdade, que via o culto como uma aberração e deturpação da Numenera. Severn era considerada corajosa e imprudente em igual medida por seus convidados. A Ordem, por sua vez, parecia cada vez mais distante de seus nobres financiadores, que sentiam-se como meros baús de shins prontos a serem espoliados em favor de uma guerra que ninguém desejava e, pior, aos poucos aumentava o poderia militar de Navarene, irmão e rival ao norte de Draolis.
Naquela mesma noite, um acordo complexo foi costurado. E ele começou a ser feito a partir de uma boa dose de conflito.
Vilerm Akefie era o interlocutor e líder informal de um grupo de nobres que buscava alternativas ao conflito aberto com os gaianos, dos quais pouco se sabia de concreto além da antipatia genocida que despertavam no Pai Âmbar, Durranet VI, líder da Ordem da Verdade. Foi por iniciativa de Akefie que A Pedra Sorridente foi embarcada há um ano em um navio comandado pela Esquadra Vermelha. Seu destino era Theosis, de onde deveria seguir viagem. Ela levava uma mensagem de paz e boa vontade em um momento muito distinto do atual. Por razões desconhecidas, nunca chegou ao destino e sua tripulação jamais foi encontrada. Acreditava-se que o naufrágio tivesse ocorrido nos arredores das Ilhas Ashuri. Destino Sorridente foi criado para encontrar o artefato, mas sua precisão jamais foi confirmada. Além disso, Akefie desconfiava que a Esquadra Vermelha teria interesses particulares e nebulosos na viagem, tendo o naufrágio sido causado por eles. Uma expedição de resgate não poderia ter sua participação. Contudo, isso não dava direito de Vita Severn negociar Destino Sorridente sem o seu conhecimento.
Vita Severn, por sua vez, defendia que Propaganda era a peça mais importante de sua exposição, e apenas uma substituição à altura faria com que desistisse de exibi-la. Não havendo como confirmar com segurança o relato de Mark, Zippack, Czyran e Dedalus a respeito do perigo que ela representava, os quatro acenaram com uma solução inesperada. Uma combinação de arte e Numenera que ninguém iria esquecer. Ou melhor, lembrar.
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Com a recompensa por sua cabeça retirada por Vilerm Akefie, Mark caminhou por toda a Qi, na vã esperança de ser abordado pelo Glifo e disso se recordar. Dedalus buscou fazer o mesmo, mas junto da Ordem da Verdade. Infelizmente, com a aproximação da regata, os Pais Pretéritos tornaram-se mais restritivos em relação à circulação no Durkhal. Zippack estava mais interessado no trabalho no sobrevoador de Mohsen, e tinha certeza de que o Glifo o evitaria, se pudesse. Czyran foi quem teve mais sorte, sendo encontrado mais do que encontrando-o/a.
– Eu ajudo você, Czyran.
Glifo precisou de poucas palavras para explicar que permanecera por perto a maior parte do tempo.
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De posse do Visor de Memórias, era um problema que apenas cabia a Vita Severn decidir como o Glifo se tornaria o centro das atenções de toda a nobreza de Qi e dos Nove Reinos, papel para o qual ele/a demonstrava ansiedade. Propaganda foi queimada sem jamais ser contemplada novamente. Com o suicídio de Jacopo, esperava-se que isso desse fim à possibilidade de morte em massa que a tela representava. Os esforços dos últimos dias bastaram para que fosse conquistada a confiança de Vilerm Akefie, mas ainda não havia recursos para financiar o substituto do Tonel. A maior parte da nobreza de Qi preferia a extorsão pontual dos Pais Pretéritos ao desafio direto à Ordem. Quem dispunha dos shins necessários era Choen Mohsen. Mas ela apenas cederia os valores em troca da prestigiosa vitória na 1a Regata Aérea de Qi.
Felizmente, Zippack e Dedalus, além de mais alguns tripulantes, foram capazes do feito. Os dois garantiam no ar os recursos para a partida que Czyran e Mark preparavam na orla. Foi dali, dos céus e da costa do Mar dos Segredos, que os quatro contemplaram aquilo que os Pais Pretéritos preparavam para assombrar os Nove Reinos. Uma gigantesca embarcação partiu do Durkhal para lançar sobre Qi sua sombra, movida pela faiscante energia dourada que os quatro já conheciam e associavam às esferas que tanta tragédia causaram. Era O Doutrinador, a arma definitiva da Ordem da Verdade, cuja conclusão significaria a destruição dos gaianos e de tudo mais que ficasse em seu caminho.