Autor Tópico: Tobogando  (Lida 1018 vezes)

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Offline Magyar

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Tobogando
« Online: Agosto 25, 2012, 03:25:28 am »
Manhã de domingo, de praxe minha mãe vinha acordar a gente às 9h da manhã para mais um dia planejado pelas vontades próprias.

- Vai, levanta! Arrumem a cama! Hoje vamos na piscina do clube!
- Não quero ir, me deixa dormir!
- Vai logo antes que eu te meta a mão - conclui ela. Viva a democracia!

Fui o segundo a levantar. Meu irmão mais novo já estava de pé enquanto ela gritava com os dois mais velhos. Eles se recusaram a sair da cama, mesmo com as ameaças de mesada cortada e tabefes de graça. Vantagens de uma adolescência.

- Pelo menos posso chamar o Gui?! - resolvi negociar.
- Tá bom filho, mas vai logo! Liga pra ele e fala que jajá estaremos passando na casa dele.
- Tá - pelo menos eu não era um fracassado em negociações.

Os pais do Gui foram compreensivos. Tinham prometido levá-lo ao clube a duas semanas atrás, e algo dizia que hoje eles não o levariam, para variar. O Gui não recusou o convite, e eles não o impediram. A competência sendo passada para terceiros.

Logo estávamos no carro, a caminho do clube. Sunga por baixo de um shorts, camiseta, chinelo e uma toalha. Estávamos prontos.

- Nossa, Bruno, você viu que inauguraram o tobogã gigante semana retrasada?! Meu irmão mais velho foi, falou que da maior medo!
- Sério, Gui?! Quão alto é?
- To tamanho de um prédio!
- Não acredito...
- Tá com medo?
- Eu? Eu não tenho medo de altura - mentiras, o que seria de nossa imagem sem elas?
- Não acredito... se você for, eu também vou!
- Tá bom... - eu sendo idiota desde sempre...

- Chegamos, garotos! - merda.

A entrada do clube era nova, assim como boa parte do clube que estava em reforma desde sempre. As catracas impediram nosso avanço, por mais vazio que estivesse a entrada. O estacionamento estava meio lotado, e minha mãe não pagara a última mensalidade. Fiquei feliz por isso evitar o combate que me aguardava. Aparentemente o Gui também gostou da possibilidade de deixar para outro dia, semana ou quem sabe ano que vem. Só o meu irmão mais novo que resolveu choramingar alguma coisa que fez a minha mãe, como qualquer ariana, resolver discutir com o responsável sobre a nossa entrada.

- Poxa, mas eu sempre paguei em dia! E quase nunca vim aqui. Hoje que eu venho vocês vão me impedir de entrar?!
- Desculpe, madame. Mas a senhora não pagou a última mensalidade. Estamos apenas seguindo o protocolo.
- Tá bom... mas hoje o banco não tá aberto, posso pagar na segunda?
- A senhorita terá que assinar um termo de compromisso então. Apenas o procedimento padrão.
- Tudo bem... aonde eu assino? - maldita burocracia que me iludira. Quando percebi, já estava com o frio na barriga de volta.

- Pronto, aqui está. Já podemos entrar, então?
- Sim, senhora. Podem entrar poraqui.

Seguimos andando pelo caminho. Passamos por quiosques, churrasqueiras, parquinho e diversas pessoas. Os minibugs me chamaram a atenção, mas minha mãe falou que tinha que pagar para usá-los e ainda não tínhamos idade suficiente para andar neles - obrigado, sociedade!

Olhando no horizonte, avistei meu desafio. Alto e imponente, derramava pessoas de intervalo em intervalo. Quanto mais próximo, maior ficava, assim como o frio que já não cabia mais na minha barriga. Logo estávamos passando pela poça d'água nojenta que "limpava" nossos pés. Eu estava quase tremendo, até que avistamos o rio lento - uma piscina com boias e cheia de jatos que te empurravam pelo percurso da piscina num formato de rio. Era divertido, e pensei que isso poderia tirar um pouco o foco do que me aguardava - como tudo nessa vida. Quem sabe o Gui não esqueceria daquele desafio bobo -ao menos seria mais fácil, é difícil fingir não ser babaca.

- Hey, você tá com medo de ir no tobogã gigante, Bruno?
- Oi? Eu? Claro que não... - corrigindo: estava morrendo de medo.
- Então, você vai lá?
- Claro, só tava esperando a fila diminuir um pouco - depois da primeira, as outras mentiras ficam na ponta da língua.
- Ah tá. Olha! parece que já tá menor!
- É, to vendo... - aonde foi que deixei a ponta da minha língua?

Procurei por desculpas pelo caminho, mas nada. Começamos a subir a rampa em espiral. Havia três níveis de tobogã, e o desafio era a mais alta. Fomos subindo lentamente, cabisbaixos, como quem atravessa o corredor da morte rumo ao destino imutável.

- Sabe, pensei que você fosse amarelar, Bruno.
- O que? Eu? Nunca! - estúpido...
- É, to vendo! Você me deu até coragem de ir junto! De verdade!

Não tardou para chegarmos na fila. Poucas crianças da nossa idade, a maioria já era adolescente. Alguns atrás de nós sacaneavam com um cara que estava com medo de ir. "Alá, mano! Até os pivete tão indo!". Foi o suficiente para ferir o ego do cara. Nada como um idiota mentiroso para criar a própria horda de idiotas.

A água saía de um tubo, e um instrutor organizava o tempo de queda de cada um. O timingnão deveria ser quebrado a fim de não causar acidentes lá em baixo. Uma pessoa descia, espirrava água na descida, e liberava para o próximo poder descer. O desespero começou a bater forte em meu peito enquanto a fila demorava uma eternidade para andar. Resolvi olhar ao redor, e me dei de frente com uma vista panorâmica do parque que tirou uma parte do peso de meu corpo.

- Hei muleque! Sua vez! Vai descer? - maldita visão, fez o tempo passar num piscar de olhos. Duas moças desistiram de descer, e já era a minha vez. A água corria por uma descida sem destino visível.
- V-vou! - tem gente que não sabe quando parar mesmo... cabeça dura!
- Então deita na água. Isso. É só cruzar os braços e deixar os pés juntos. Vou te dar impulso para você descer, e não separe os pés nem os braços para não se machucar - em minha mente eu digeria as palavras até decifrar o que tinha ouvido: "TÁ FUDIDO, MULEQUE!"

Cruzei os braços. Os calcanhares pareciam colados, assim como os olhos. A água passava pelo meu corpo, até que um empurrão me levou para frente. Antes na horizontal, agora na vertical. A queda era brusca, e o fato de não sentir o plástico, mas apenas a água que descia nas minhas costas, me deu um susto - abri os braços por um milésimo de segundo que pareceu durar uma eternidade. "Voumorrer voumorrer voumorrNÃOQUEROMORRER!" foi tudo o que se passou pela minha cabeça no momento.

Imaginei a ambulância chegando no meu corpo, e o instrutor explicando o que ocorrera, desesperado: "eu falei para ele não abrir os braços!". Comecei a ser otimista "Vai que só fico só paraplégico...". Antes de pensar na possibilidade de bater os braços para sair voando, cheguei ao meu destino.

A aterrissagem foi suave e a água se espalhou para todos os lados, molhando os desavisados lá em baixo. Estava vivo, e os batimentos em meu peito eram indício de adrenalina e alegria. Um sorriso bobo de criança que descobriu o mundo se estampava em minha cara. Me sentia mais leve do que nunca. A missão estava cumprida. Meu medo se fora e eu era imortal de novo. Saí do tobogã e aguardei o Gui.

Reto. Foi assim que vi ele descendo aquele gigante. Voou água para tudo quanto é lado. Ele confessou que quase desistira também. Só conseguiu ir depois que eu já tinha descido, sentindo-se no dever de manter a palavra - até porque eu o atormentaria para sempre, caso contrário. Acabamos indo mais quatro vezes no tobogã gigante, mas nenhuma delas foi como a primeira. Talvez o medo da pior das hipóteses ocorrer tenha ajudado a torná-la uma experiência única. Tem vezes que a gente só precisa de um empurrão.
« Última modificação: Agosto 25, 2012, 05:13:09 pm por Magyar »
"Babuínos balbuciam balbúrdias banais, bêbados, em bando."