Autor Tópico: Ficções Interativas  (Lida 2608 vezes)

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Ficções Interativas
« Online: Dezembro 03, 2011, 11:55:02 am »
Essa discussão a respeito de imersão - se ela vem dos gráficos ou dos textos - e o tópico "Mais Dwarf Fortress e menos Modern Warfare" me lembraram um artigo muito bom de um amigo meu sobre as Ficções Interativas. Alguém sabe o que é? Já experimentou?

Sugestões de ficções interativas



Ficções interativas são obras de ficção em que o leitor pode interagir e interferir significativamente na narrativa. Embora este conceito seja amplo, no sentido estrito o termo “ficção interativa” significa um tipo específico de software, em que a interação com a narrativa é mediada por um interpretador de comandos textuais. Numa aventura-solo o leitor só pode selecionar entre as opções explicitamente dadas pelo autor, e por isso é possível construir aventuras-solo em formato impresso, com parágrafos numerados. Isto geralmente é chamado de livro-jogo. Mas a literatura interativa é maior que isso. Numa ficção interativa propriamente dita, as ações possíveis não estão visíveis para o leitor. Isso só é possível de ser feito usando alguma linguagem de programação. As ações do personagem devem ser imaginadas pelo leitor a partir de uma leitura atenciosa da narrativa, e o leitor deve ser capaz de descrever corretamente a ação escolhida em palavras e frases. Isso significa uma participação mais ativa no processo de construção da narrativa. O programa no qual é executada a ficção interativa interpreta os comandos e responde de acordo. As vantagens deste modelo de interatividade é que dificulta a tendência de trapacear, ou seja, de escolher uma opção sem ter realmente lido e entendido o que foi descrito.


A estrutura das ficções interativas não é um simples conjunto de parágrafos interligados, mas um verdadeiro “modelo de mundo”, composto de locais, objetos e personagens que podem estar ativos na parte oculta da narrativa. Geralmente, o leitor move o personagem usando referências cardinais: norte, sul, leste e oeste. Ele interage com objetos com o comando “pegar (nome do objeto)”, e interage com outros personagens com o comando “falar com (nome do personagem)”, por exemplo. Cada um desses objetos e personagens pode ter vários níveis de interação, uma vez que o leitor pode examiná-los mais atentamente com o comando “examinar”, o que resulta numa descrição mais detalhada, e expande as possibilidades de interação. O que um leitor supõe de cada descrição é uma parte ativa da resolução de problemas dentro de uma ficção interativa, trabalhando a imaginação do leitor de modo muito mais intenso.

Nos EUA e na Europa existe uma comunidade de autores de ficção interativa que todo ano faz um concurso para eleger as melhores obras de ficção interativa, o IFComp. Recentemente também foi feito um documentário sobre o assunto, chamado Get Lamp. Infelizmente, nós temos poucos exemplos de ficções interativas em português. Para aqueles que leem razoavelmente bem em inglês, aqui vai uma lista de ficções interativas que eu recomendo, mais pelo seu valor literário do que pela diversão:

Photopia (Adam Cadre, 1998). "Ler uma estória pra você? Que graça isso teria? Eu tenho uma idéia melhor: vamos contar uma estória juntos". Assim começa a ficção interativa de Adam Cadre, vencedor da IFComp de 98. Esta obra mudou a história das ficções interativas. É uma mistura criativa entre fantasia e realidade. Uma verdadeira obra-prima sobre a arte de contar estórias. O leitor se coloca no papel de uma criança ouvindo uma história de sua babá, e interagindo nesta história. Ao mesmo tempo, essa narrativa fantástica é entrecortada com cenas da memória da contadora de história, que explicam de onde vieram os elementos que compõem a primeira narrativa. Photopia é dividido em vários estágios, cada um deles relacionado a uma cor primária, e a narrativa gira ao redor do mistério e do significado das cores.

Kaged (Ian Finley, 2000). Essa obra venceu a IFComp de 2000 com muito merecimento. É uma estória sobre insanidade e traição num mundo dominado pela burocracia, bem no clima kafkiano. O leitor é colocado na pele de um funcionário que acaba de ser promovido, mas sua cidade está ameaçada por uma misteriosa onda de suicídios. A narrativa prende e surpreende o leitor, além de oferecer escolhas significativas. Como num romance de Kafka, o personagem principal parece não ter opção, devido à corrupção completa do sistema. Porém, o leitor se deixa envolver pela trama e pela expectativa de liberdade do personagem. O texto, muito bem escrito, colabora para criar um ar de suspense e tensão a cada momento.

For a Change (Dan Schmidt, 1999). Ficou em segundo lugar na IFComp de 99. É uma estória cheia de simbolismos e incrivelmente bem escrita. É um conto surrealista sobre abandonar o passado e voltar para a luz. Não há muito que eu possa dizer sobre essa obra, exceto que ela possui muita poesia misturada com complexos quebra-cabeças, em que o leitor se verá obrigado a seguir a lógica peculiar de um mundo imaginário que lembra as pinturas de Salvador Dali. O final pode tocar os sentimentos das pessoas mais sensíveis.

All Roads (Jon Ingold, 2001). Uma ficção interativa com puzzles simples, que conduz o leitor por um incontrolável vai e vem temporal na Veneza renascentista. Confuso, mas agradável, como um bom filme de suspense e espionagem. Este é para quem gosta de matemática e paradoxos temporais. O personagem principal é um condenado à morte que aparentemente tem a habilidade de viajar no tempo, mas não pode controlar isso, nem saber exatamente para qual direção no fluxo temporal ele está se movendo. A narrativa deixa em aberto a questão sobre o caráter do personagem. Alguns leitores poderão sentir que o personagem merecia morrer, mesmo tendo feito as melhores decisões possíveis. A mensagem do autor talvez seja que o destino não pode ser alterado. Para quem gosta da ideia por trás de filmes como “Efeito borboleta”, esta ficção interativa é bem mais sofisticada que o roteiro do filme. Jon Ingold é um dos maiores autores de ficção interativa da atualidade, e um ótimo escritor.

Aisle (Sam Barlow, 1999). Uma peça de um ato só, porém riquíssima em detalhes. Você tem uma só chance de tornar seu dia algo mais que ordinário. Uma ótima experiência em interatividade, o jogo parece ter uma resposta para quase tudo que você pode tentar. Diferente da maioria das ficções interativas, nesse aqui o espaço de tempo da narrativa compreende uma única escolha do personagem, a partir da qual virão as mais imprevisíveis consequências. O leitor pode definir o futuro do personagem, um homem num corredor de supermercado, com um único comando. Mas para chegar a este complexo comando, será preciso muitas tentativas e muita capacidade de abstração.

Galatea (Emily Short, 2000). Uma obra focada na conversação, escrita pela autora mais respeitada do gênero: Emily Short. Você tem a oportunidade de interagir com Galatéia, a estátua que criou vida no mito grego. Preso num museu, o personagem tem a oportunidade de interagir de diversas maneiras com uma personalidade mitológica. O assunto pode ir se desenvolvendo de modo que Galatéia se agrade ou se chateie com seu interlocutor. É preciso escolher os tópicos certos, e saber o momento apropriado de se fazer certas perguntas, por exemplo. A autora trabalha com inteligência artificial, e é professora de mitologia grega.

Metamorphoses (Emily Short, 2000). Esta belíssima obra prima de Emily Short é uma estória onde a realidade se divide em dois planos: o literal e o figurativo. Cheio de desafios simbólicos e psicológicos, que falam não só da natureza feminina, pois a personagem é uma mulher, mas da natureza humana também. Com múltiplos finais, é o exemplo máximo de que ficção interativa também é uma forma de arte. O leitor deve ter uma boa capacidade de interpretação e de associação entre ideias e objetos. Deve também ser capaz de perceber sutilezas nas descrições dos cenários e dos objetos. Nesta ficção interativa, os objetos podem se transformar, adquirindo diferentes propriedades, que serão úteis para chegar ao final. O que cada um decide fazer com os objetos revela algo da sua personalidade.

Quem ainda duvida do valor literário dessas obras interativas deve experimentar uma delas antes de fazer suas conclusões. Eu termino esperando que os brasileiros se interessem mais por este gênero.

Re:Ficções Interativas
« Resposta #1 Online: Dezembro 14, 2011, 12:32:11 am »
Lanzi, muito legal o texto. Eu nem sabia que esse gênero ainda existia. A única ficção interativa que joguei de fato, foi no início dos anos 90 e se chamava "A Mind Forever Voyager". Eu o finalizei, e achei fascinante.

Vou procurar conhecer os jogos citados.
The traditional playstyle is, above all else, the style of playing all games the same way, supported by the ambiguity and lack of procedure in the traditional game text. - Eero Tuovinen

Re:Ficções Interativas
« Resposta #2 Online: Dezembro 16, 2012, 10:29:59 pm »
Estava para perguntar na shoutbox onde criar um tópico sobre ficção interativa (se na seção "Video-games" ou na seção "Contos") e antes resolvi procurar, mais por desencargo de consciência do que por qualquer outra coisa, se já existia um tópico sobre esse assunto. Eis que encontro um tópico do Lanzi (quem sempre me assombra com os interesses que tem em comum comigo) de mais de um ano atrás!

Tenho pensado muito a respeito do lugar relegado a esse gênero de duas cabeças. Em sua forma natural, certamente não goza do mesmo prestígio que já teve no mundos dos jogos eletrônicos, e talvez sua evolução, na pele de jogos como o Heavy Rain, tenha se distanciado demais do seu componente literato. E, se como jogo, o gênero perdeu espaço, como literatura, o gênero talvez nunca tenha vingado a promessa de revolucionar o mundo dos livros através de sua hipertextualidade.

O que, para mim, é uma pena. Minha imaginação juvenil cresceu e se fortaleceu graças a uma dieta segura de livros-jogos. Existe algo na ficção interativa que para mim é mágico. Como escritor de contos, gostaria de poder dizer "Ei, escrevi um novo conto interativo, quer ler?" da mesma forma que faço com contos, e sinto que atualmente ainda não tenho esse poder.

Vou aproveitar o tópico para fazer perguntas que podem me levar às respostas que procuro:

1) Vocês acreditam que é possível escrever literatura com ficção interativa? Sei que essa pergunta levanta a enfadonha pergunta do que é literatura, mas pergunto pois, atualmente, não consigo ver nenhuma das grandes obras do gênero sendo citadas em NENHUM lugar fora do meio.

2) Novas tecnologias tem algum poder para popularizar o gênero? Novos leitores digitais, como o Kindle, poderiam faciliar o consumo e a produção de livros-jogos, por exemplo. Redes sociais poderiam oferecer produção "compartilhada" e interativa de histórias. Melhores parsers e ferramentas de IA (como chatbots) poderiam fazer dos jogos uma experiência ainda mais imersiva e completa.

Enfim... acabei de baixar o Inform7, vou fazer algumas experiências enquanto espero alguém mostrar interesse na discussão.  :)


Re:Ficções Interativas
« Resposta #3 Online: Janeiro 19, 2013, 10:23:32 pm »
É... experimentei com o Inform mas não deu muito samba, não.

Senti que o resultado é mais similar a uma text based adventure do que a ficção. A experiência, para mim, acaba sendo muito mais jogo e quase nada literatura.

É uma pena. Vou continuar agora experimentando com outras formas de ficção interativa! Meu próximo objeto de estudo nesse sentido são as interactive novels... em primeiro lugar, visual novels!

Re:Ficções Interativas
« Resposta #4 Online: Janeiro 21, 2013, 06:43:38 pm »
Olha só, hahaha. Temos muitos gostos em comum mesmo.

Respondendo as suas perguntas:

1 - Claro que sim! A gente pode pensar que talvez existam vários níveis de interação. Eu acho que é uma coisa fantástica que não teve seu potencial definitivamente explorado. Não sei se houve algum período em que as pessoas consideram esta forma de narrativa como uma próxima etapa da arte, mas a gente pode pensar que talvez já tenham existido pequenas variações nesse estilo, no teatro de improviso, e nas histórias contadas coletivamente em rodas. Você já viu um livro do Umberto Eco que se chama Obra Aberta? Eu só conheço através de comentários de terceiros, e parece que nesse livro ele analisa esse tipo de obra que é construída praticamente em conjunto com o espectador, com a participação dele. Tem um outro livro, do Julio Cortázar, que se chama O Jogo de Amarelinha, e a história e o final da história mudam conforme a ordem na qual você lê os capítulos. Quer dizer, não é uma obra tão interativa, mas é literatura da mais alta qualidade. Acho que se você conseguir narrar em uma linguagem legal, proporcionar uma experiência marcante, a gente pode dizer que não só será literatura, como será algo além da própria literatura. O lance é que simplesmente não há atenção pra essa forma de arte/jogo (talvez o problema seja esse segundo aspecto).

2 - Com certeza. Isso só aprofundaria a experiência, até mesmo em nível estético. Acho extremamente válido o uso de novas tecnologias desde que seja enriquecedor. Mas não tem como saber sem experimentar.

Re:Ficções Interativas
« Resposta #5 Online: Janeiro 23, 2013, 12:59:21 am »
1 - Claro que sim! A gente pode pensar que talvez existam vários níveis de interação. Eu acho que é uma coisa fantástica que não teve seu potencial definitivamente explorado. Não sei se houve algum período em que as pessoas consideram esta forma de narrativa como uma próxima etapa da arte, mas a gente pode pensar que talvez já tenham existido pequenas variações nesse estilo, no teatro de improviso, e nas histórias contadas coletivamente em rodas. Você já viu um livro do Umberto Eco que se chama Obra Aberta? Eu só conheço através de comentários de terceiros, e parece que nesse livro ele analisa esse tipo de obra que é construída praticamente em conjunto com o espectador, com a participação dele. Tem um outro livro, do Julio Cortázar, que se chama O Jogo de Amarelinha, e a história e o final da história mudam conforme a ordem na qual você lê os capítulos. Quer dizer, não é uma obra tão interativa, mas é literatura da mais alta qualidade. Acho que se você conseguir narrar em uma linguagem legal, proporcionar uma experiência marcante, a gente pode dizer que não só será literatura, como será algo além da própria literatura. O lance é que simplesmente não há atenção pra essa forma de arte/jogo (talvez o problema seja esse segundo aspecto).

Gostaria de saber se existe algum trabalho no sentido de classificar esses níveis de interatividade. Tenho que procurar esse Obra Aberta, do Eco (o Hopscotch do Cortázar já conhecia). Digo isso pois reconheço que existem muitos diferentes níveis na forma como um leitor interage com a obra. No jogo da amarelinha, o leitor escolhe a sequência através da qual ele fica sabendo da história: de certa forma, é uma interatividade similar à proposta pelo Burroughs quando ele diz que os capítulos do Naked Lunch podem ser lidos em qualquer ordem ou o Building Stories que eu descobri aqui no tópico de HQs. Livros-jogos, por exemplo, me parecem oferecer um nível diferente de interatividade: nele, você escolhe o que um personagem faz, suas ações. Essas interavidades diferem de várias formas, não? (vejo claramente que, na primeira, todos os capítulos "acontecem", enquanto que num livro jogo a maioria dos capítulos "não acontece" a cada leitura, pois o leitor só escolhe alguns de muitos.)

Consigo imaginar que existem ainda outros níveis. Acredito que uma IF estilo ZORK ser um livro-jogo com uma interatividade ainda mais aprofundada (não necessariamente melhor!): o autor tem que praticamente abandonar qualquer noção de que tem controle sobre o ritmo da história. Existem ainda as ficções onde os leitores interagem não com a história em si, mas com o processo de fabricação dela, como em programas na linha do finado Você decide da Globo, ou de séries (de livros, de TV) que se moldam ao feedback de seus leitores...


2 - Com certeza. Isso só aprofundaria a experiência, até mesmo em nível estético. Acho extremamente válido o uso de novas tecnologias desde que seja enriquecedor. Mas não tem como saber sem experimentar.

Tenho um Kindle Touch que seria PERFEITO para um livro da tão querida série Aventuras Fantásticas... sonho com histórias cujo fim pode ser definido pela interação de usuários em uma rede social, ou mesmo uma visual novel que use a minha geolocalização para saber o clima de onde estou... penso serem muitas as possibilidades.

Re:Ficções Interativas
« Resposta #6 Online: Janeiro 24, 2013, 01:19:09 pm »
Então Ygor, até onde eu sei não existe trabalho nenhum pra classificar esses níveis, mas tá aí um bom projeto de pesquisa... É que ainda sou um amador, mas a ideia de escrever algo assim me parece muito sedutora.

Imagina se um belo dia algum cara fodão, tipo o próprio Eco resolvesse escrever umas paradas assim. Acho que talvez alavancaria o gênero

Re:Ficções Interativas
« Resposta #7 Online: Fevereiro 01, 2013, 01:37:15 am »
Então Ygor, até onde eu sei não existe trabalho nenhum pra classificar esses níveis, mas tá aí um bom projeto de pesquisa... É que ainda sou um amador, mas a ideia de escrever algo assim me parece muito sedutora.

Imagina se um belo dia algum cara fodão, tipo o próprio Eco resolvesse escrever umas paradas assim. Acho que talvez alavancaria o gênero

Pois é... eu tinha vontade de ir atrás dessas informações. Sei que devem existir muitos pesquisadores interessados nesse assunto. Mas ainda não comecei a procurar. Tem que ter fôlego. O mais próximo que cheguei disso foi saber que esse existe esse trabalho do grego do Logicomix.

Sim, já imaginei se um Eco, Calvino ou mesmo Pynchon escrevesse algo assim. Ia ser bombástico, mas... acredito que iam ver o valor da obra e não e não reconheceriam todo um gênero ou formato. Talvez ele não exista.

De qualquer forma, ainda mantenho meus interesses. Não pude me dedicar a nada próximo disso, mas... estou cozinhando uma ideia... :hum:

PS: Agora, olha que interessante!
« Última modificação: Fevereiro 01, 2013, 01:42:05 am por Speranza »