Autor Tópico: Numenera - The Wonder Weird  (Lida 6986 vezes)

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Numenera - The Wonder Weird
« Online: Janeiro 09, 2015, 05:09:55 pm »
Numenera é um cenário de RPG. Nele, uma civilização em estágio medieval de evolução existe em um planeta Terra bilhões de anos no futuro. Pelo menos oito civilizações nasceram e desapareceram, e sobre os resquícios de sua existência vivem os seres humanos do presente, constantemente se deparando com artefatos tecnológicos ultramodernos que simplesmente não são capazes de compreender ou distinguir de magia: a Numenera.

Aqui eu irei narrar as histórias de um grupo de personagens nesse cenário de estranhas maravilhas.

Personagens:
Czyran Eczos, um Nano Mutante que Subtrai Energia
Mark, um Glaive Durão que Defende-se com Maestria
Stephen Dedalus, um Jack Inquisitivo que Funde Máquinas à Mente
Zippack Ranzz, um Jack Gracioso que Doma o Relâmpago
« Última modificação: Abril 13, 2015, 11:46:56 am por Hentges »

Re:Numenera - The Wonder Weird
« Resposta #1 Online: Janeiro 09, 2015, 05:10:16 pm »
Capítulo 1 – A Esfera que veio do Céu

Era madrugada em Itzen quando todos foram despertados pelo estrondo que assustou animais e balançou as casas modestas do vilarejo. O ribombar ainda ecoava quando Mark levantou-se e, já de escudo e espada em punho, saiu porta afora. Cid atrasou-se um instante. Adivinhou que o local do impacto atrairia a atenção de todos, e não gostaria de apresentar-se de maneira inadequada. Investiu um minuto num modesto tecnotruque, deixando impecáveis as roupas que vestia. A mulher que os acompanha seguiu o impulso de Mark, admirando-se ao seu lado com aquele extraordinário objeto inerte no meio da praça.

Haviam chegado no início da noite. Mark vem do norte, onde sua espada e escudo já estiveram a serviço de nobres e exércitos, mas disso ele pouco fala. Cid fala muito mais, sem se importar se é compreendido, guardando o silêncio apenas para escutar o que as máquinas têm a lhe dizer. A jovem que os acompanha ainda não concedeu o direito de fazer saber o seu nome. Seu corpo, com aço e carne competindo por espaço e primazia, evoca os maiores mistérios, tão amplos quanto as lacunas entre suas raras palavras. Rumam para leste. É para lá que as visões guiam Cid e para aonde os outros dois deixam-se arrastar; Mark busca distanciar-se do passado, e a companheira de ambos deseja a promessa implícita de Numenera que toda jornada faz aos aventureiros dispostos aos riscos.

Parar em Itzen significaria o conforto de uma noite longe das margens da estrada. Chegaram ao vilarejo em meio aos últimos acertos para o despacho, na manhã seguinte, dos tributos ao nobre local. Foram bem recebidos pela administradora do depósito de mantimentos, Denniewis, e com alguma desconfiança pelo chefe da guarda. Kellown viu com ressalvas o desejo dos visitantes de se dirigirem à fronteira do reino de Ancuan com o Império de Pytharon, região agitada por conta de um passado recente de dominação. A esta altura, ele já havia esquecido que Cid transformara, por um momento, o ensopado de carne de dossi em um caldo adocicado cujo único sabor era o de canela. Quem não esquecera de nada, pelo contrário, lembrava cada detalhe daquele rosto misterioso e altivo, era Rugglet, que mais cedo revelara à recém-chegada seu desejo de capturar ovos de raster e transformar os animais voadores em montaria treinada.

Mas as desconfianças, o sabor de canela e o curioso convite envolvendo montarias aladas empalideciam diante do que estava bem a sua frente.

No centro da praça, enterrada quase meio metro no solo, havia uma esfera prateada perfeitamente polida. Com cerca de três metros de altura, pelo menos quatro homens seriam necessários para abraçá-la. Sem emendas visíveis, sua superfície reflexiva daria um espelho decente.

A população se divide entre os assustados pela incerteza que envolvia aquela esfera que viera do céu e os curiosos diante do inusitado que dera novo ânimo ao sonolento cotidiano de Itzen. Entre os mais exaltados estava Aylonne, uma anciã que não demorou a declarar ser aquele um presente divino e merecedor de veneração. O fervor religioso contagiou alguns, mas ela acabou recolhida a sua casa antes que pudesse ter tempo para espalhar a palavra. Cid chegou a tratar rapidamente com Aylonne, mas sob falsos pretextos. Ela identificou o farsante que dizia passar-se por um dos veneradores do passado que formam a Ordem da Verdade.

Já pela manhã, quando a rotina de Itzen buscava contornar a estranheza daquela esfera prateada em meio à praça, e após nossa misteriosa protagonista desejar em um tom de voz mais elevado do que educado que a vila toda explodisse, alguns dos moradores reúnem-se para decidir o que fazer a respeito daquilo.
« Última modificação: Janeiro 19, 2015, 12:34:54 pm por Hentges »

Re:Numenera - The Wonder Weird
« Resposta #2 Online: Janeiro 19, 2015, 12:34:37 pm »
Capítulo 2 – Uma Cidade sob a Colina

“A Ishlav original foi destruída há cerca de vinte anos, após um grupo de exploradores retornar à cidade levando um estranho dispositivo que diziam ter vindo das estrelas. Quando os Pais Pretéritos na cidade buscaram compreender o que era aquilo, o dispositivo emitiu um poderoso choque de energia, destruindo praticamente tudo em um raio de três quilômetros. Contudo, nenhuma pessoa, animal ou planta foi afetado diretamente. Apenas matéria inanimada sofreu os efeitos. Após o eventos, Ishlav foi reconstruída, e aquele pegos pelo choque de energia contam até hoje como suas feridas cicatrizaram, doenças foram curadas e sua saúde, de um modo geral, melhorou muito.”

Foi mais ou menos assim que Cid contou a tal história. Eu e Mark ouvimos com atenção, mas Kellown e os outros, reunidos para decidir o que fazer da esfera, não deram o mesmo valor. A velha, Ayllone, parecia saber do que Cid falava, mas a desconfiança impediu que dividissem suspeitas quanto à origem da esfera. No fim, Kellown fez prevalecer a autoridade concedida pelo Lorde Wernard Streck: a esfera seria levada à propriedade do Lorde.

Ela foi amarrada e puxada por dois dossi. A força bruta dos bovinos mal deu conta de tirá-la do buraco. Como que por vontade própria, retornou ao ponto onde pousou. Quatro dossi puxando-a não conseguiram resultado melhor.

A tentativa frustrada capitaneada por Kellown incentivou Aylonne: gritava serem desrespeitosas as tentativas de remoção da esfera. Ela estava quase contando a história de Ishlav. Tudo aquilo foi distração o bastante para que Mark e Cid se aproximassem. Tocaram a esfera, e logo ela ergueu-se no ar. Primeiro, a dois metros de altura, e depois, o dobro disso. Ficou lá, pairando, para espanto de alguns e júbilo de outros. Quando chocou-se contra o chão, todas as construções da vila balançaram. Mark saiu do caminho, mas Cid foi atingido de raspão no ombro.

****

Demorou mais de uma hora até que Cid se sentisse bem outra vez. No intervalo, Rugglet me procurou. Ele baba feito um dossi quando fala comigo, o que é meio asqueroso. Um criador de brehms teve seu rebanho atacado pela segunda vez em menos de uma semana. Suspeita que os rasters vistos sobrevoando as imediações sejam os responsáveis. Ardonis teme que Lorde Streck puna a ele e toda sua família pela perda dos animais. Explico a situação para Cid e Mark. Eles planejam ir até Ishlav, descobrir mais a respeito da história da cidade. Bobagem. Vamos perder dez dias e só. Até lá, tudo se resolveu por aqui. Kellown já despachou alguém para informar Streck do que acontece e nenhum soldado pode deixar Itzen para ajudar o fazendeiro. Melhor tentar arranjar alguns ovos de raster para vender e seguir viagem, na direção que Cid apontou originalmente, além do Império de Pytharon. No caminho até a fazenda de Ardonis, Rugglet roça sua perna na minha enquanto conduz a carroça. Olho bem para ele com meu olho mecânico e isso encerra o assunto.

****

Não foram rasters que mataram os dois brehms de Ardonis. Foi alguma outra coisa, e bem grande, pois os brehm são fortes e rápidos o bastante para servir como montaria, ainda que eu não goste da pele fria de réptil deles. Não sendo rasters, vou embora. Ardonis não tem dinheiro, e eu cobro até pela curiosidade de saber o que aconteceu.

****

Rugglet fala das belezas da vida na colina, da caça ao raster, da antiga mina de sal e de tudo o mais que ela acha ser capaz de despertar meu interesse por Itzen, pelo menos por mais uma noite. Respondo que meus peitos emitem raios e que minha vagina é eletrificada, “nunca daria certo, querido”, e isso meio que encerra o assunto. Definitivamente.

****

Cid e Mark retornaram no dia seguinte, no final da manhã. Pouca coisa aconteceu. Um soldado, Lipke, ficou bêbado à noite e foi repreendido por Kellown. O capitão estava ansioso e, na manhã seguinte, esse parecia ser o estado de espírito de toda Itzen. As pessoas colocaram suas melhores roupas e estavam à espera do Lorde Wernard Streck em pessoa. Mark e Cid encontraram chirogs nas imediações da fazenda. Eles são uma espécie de lagarto inteligente, tão grande quanto uma pessoa e com uma cauda bem perigosa. Ao que parece, nunca tinham sido vistos por aqui. Suspeitam de que exista uma infestação na antiga mina de sal de Itzen, abandonada há dez anos. A comoção na vila, contudo, não deixa muito espaço para que a descoberta receba a devida atenção.

Quando sobe a poeira da estrada ao longe, a população espana suas lapelas e lustra os calçados com cuspe. Kellown é o primeiro a se agitar. Sobe no telhado mais alto da vila sobre a colina e mira o horizonte. “Entrem nas suas casas. Entrem agora nas suas casas”. Com a face transfigurada, o capitão dá ordens aos gritos. Denniewis, próxima de mim, murmura alguma coisa. “Eles estão vindo pelo lado errado da estrada”.

São cavaleiros do Império de Pytharon. Oito deles, cuja chegada é observada por guardas atônitos e uma população em pânico atrás de suas janelas. Nem Kellown nem seus homens tentam resistir. Seria um sacrifício inútil. Mark, por suas armas, é tratado como os guardas e recolhido à guarnição. Cid parece apenas interessado em saber o que vai acontecer a seguir. Lipke, o tal bêbado, revelou-se o traidor, responsável por enviar notícias do que acontecia ali para além da fronteira.

Demora uma hora até que mais dois homens cheguem. Vestem o amarelo dos Pais Pretéritos, membros da Ordem da Verdade, veneradores do passado e os maiores conhecedores de Numenera nos Nove Reinos.

Instalam em dois pontos da esfera peças faiscantes que a fazem flutuar. Mais uma vez, a tentativa de remoção a ativa. Agora, os golpes contra o solo são incessantes. As casas de Itzen tremem ao impacto e curvam-se conforme o centro da praça afunda um pouco mais a cada novo estrondo.

Há pânico na vila. Alguns correm e outros buscam abrigo. É impossível saber quantos sobreviveram. Lá no alto, Itzen não existe mais. Em seu lugar, há uma cratera profunda revelando toneladas de terra e detritos que escondem parcialmente as estruturas construídas eras atrás sob o vão oco que todos sempre julgaram ser uma colina.

Re:Numenera - The Wonder Weird
« Resposta #3 Online: Fevereiro 11, 2015, 02:59:17 pm »
Capítulo 3 – Mundo Acima, Mundo Abaixo

A esfera dourada paira ao centro da sala. Cristais posicionados em padrões complexos iluminam todo o ambiente com intensidade, produzindo calor e alimentando a misteriosa maravilha capaz de criar a partir do nada. Em meio aos solavancos que abalam toda a estrutura, Cid sabe que compreender aquilo, controlar aquilo, é essencial para que ele e Mark não morram entre as estrelas.
 
****
 
Após despedirem-se de Keza – ela escolheu revelar seu nome apenas no último momento, quando partiu em direção à propriedade do Lorde Wernard Streck em companhia de alguns dos sobreviventes de Itzen –, desceram pela ruptura do solo que engoliu a vila. Não foi no alto de uma colina que a vila se ergueu, mas sobre o domo de uma estrutura ancestral.
 
Lá embaixo, escombros impediam que um grupo de chirogs invadisse a cúpula central do que parecia ser uma imensa estrutura subterrânea. Agiam como que atraídos pela esfera, envolvida por uma luz dourada e faiscante de símbolos incompreensíveis, escorrendo e alimentando algum equipamento ainda operacional e inalcançável sob a montanha de terra.
 
A exploração em meio à escuridão revelou uma sala banhada por luzes douradas. Ao centro, uma plataforma elevava-se até atingir a altura de três homens, apontando para uma parede onde um vórtice brilhava feito um sol. À esquerda e à direita, havia dois conjuntos de braços metálicos com longas pinças inertes. Entre a plataforma e o vórtice, uma piscina com um líquido dourado borbulhava. Três cristais junto às paredes iluminavam o ambiente. Mutilado, próximo de um painel danificado, jazia o cadáver de um chirog.
 
Enquanto permaneceram ali, ambos sentiram dores de cabeça. Nas duas ocasiões, coisas inexplicáveis aconteceram logo em seguida. Mark se viu coberto por um líquido viscoso, tão difícil de remover quanto óleo. Com Cid foi ainda mais estranho. Ele desapareceu por um segundo e, quando retornou, tinha ganhado sete centímetros de altura. Discos flutuantes surgiram em pleno ar, formados a partir do nada, e atacaram ambos, girando velozmente as suas extremidades afiadas. Foram despachados por Mark na direção do vórtice com golpes de machado, à custa de alguns ferimentos e um escudo destruído.
 
Impedidos de explorar o subterrâneo pelo bloqueio dos escombros e pela presença de chirogs, e com a escalada até a superfície impossibilitada pela exaustão e pela fragilidade das cordas, a Mark e Cid só resta o vórtice.
 
Após uma série de experimentações, perceberam a movimentação dos braços metálicos quando posicionados à margem mais alta da plataforma. Parados no local correto, primeiro Cid e depois Mark se deixaram içar por eles, sendo mergulhados na piscina dourada e levados na direção do vórtice.
 
****
 
Além do vórtice, o calor é intenso. Não fosse o líquido inteligente no qual foram submergidos, formando uma armadura reflexiva, Mark e Cid não resistiriam à temperatura extrema. Estão em uma sala construída segundo os mesmo princípios da estrutura subterrânea. Contudo, os sinais de degradação são mais presentes aqui. Solavancos ocasionais contribuem para a sensação de um eminente desmantelamento do local, seja qual for seu propósito.
 
Nas primeiras salas, encontram cadáveres calcinados de chirogs e o esqueleto de uma criatura assimétrica, com múltiplos membros e crânio triangular. Não se parece com nada conhecido nos Nove Reinos ou mesmo nas Terras Além. Para Cid, tudo lembra os Labirintos de Ferro, um complexo criado ao sul de Uxphon após uma cidade metálica despencar das estrelas.
 
Abrindo caminho ao longo de passagens e corredores sem encontrar saída, chegam a uma sala onde os cristais que parecem alimentar todo o local arranjam-se com maior complexidade, projetando-se pelas paredes. Uma enorme lâmina de vidro sintético repleta de rachaduras ocupa o centro da sala, mostrando cenas de outro lugar. Os pontos de controle revelam imagens da esfera que caiu em Itzen. Estava unida a um apêndice da estrutura até um desacoplamento desastroso. As imagens acompanham seu mergulho na escuridão, indo além de uma esfera cinzenta e árida e aproximando-se de um globo azul brilhante. Mark e Cid veem então todo o continente que abriga os Nove Reinos e as Terras Além. Quatro pontos iluminam-se: Itzen, os Labirintos de Ferro, a região de Augur-Kala e Qi, capital de Draolis.
 
A compreensão de que estão em algum lugar entre as estrelas abala Mark e Cid, mas um novo solavanco, mais forte que todos os anteriores, os alerta para o perigo que correm ali.
 
****
 
Cid mergulha as mãos na esfera dourada. Seu conhecimento a respeito da Numenera o auxilia, mas a tarefa é extremamente exigente. É como se tentasse compreender inúmeras conversas ao mesmo tempo. Ainda assim, é capaz de extrair significado da informação que a esfera faz chegar diretamente até sua mente. E isso faz com que seja capaz de estabilizar a estação onde se encontram. Ela ainda precisa ser reparada, e as energias que a esfera armazena e direciona poderiam fazer isso, mas o risco é alto demais. Cid está extenuado e teme as consequências de sua segunda tentativa para a sua sanidade. Mark, instruído pelo companheiro, tenta dar o passo seguinte.
 
A corrida de ambos em direção ao vórtice acontece em meio à falha catastrófica da estação. O breve benefício obtido por Cid não resiste ao fracasso na tentativa de uso da esfera. Pedaços da estrutura se desfazem internamente e separam-se além das janelas. Sem a energia que o mantinha, o vórtice desaparece assim que Mark e Cid o atravessam. Agora têm apenas a escalada à superfície e os chirogs no subterrâneo com que se preocupar…
« Última modificação: Fevereiro 26, 2015, 11:47:57 am por Hentges »

Re:Numenera - The Wonder Weird
« Resposta #4 Online: Março 09, 2015, 03:59:44 pm »
Capítulo 4 - Breve Interlúdio na Superfície

Mark e Cid viram o vórtice atrás deles se fechar e, com isso, cortar toda a energia da estrutura subterrânea. Ali, apenas os estalidos de caudas e garras de chirogs os guiava. As criaturas podiam ver na completa escuridão, mas ignoraram os recém-chegados. Venceram a barricada improvisada e alcançaram a esfera, cujo brilho evanescente atraiu meia dúzia deles, arranhando a superfície polida e impenetrável. Com as trevas atingindo também ela, os chirogs pareceram perder o interesse e simplesmente retornaram para o local de onde vieram.

Exaustos e feridos, com as cordas que os levaram até o subterrâneo comprometidas, Mark e Cid tombaram à espera de algo que mudasse sua sorte.

****

A voz familiar de Rugglet despertou Cid. O sol entrava pela fissura no alto do domo e fazia brilhar as lascas das armaduras que ele e Mark utilizaram, desfeitas durante o sono. Um complexo conjunto de cordas trouxe o carroceiro de Itzen até ali, e ele os elevaria até a superfície sem problemas.

No que restou de Itzen, um acampamento militar começava a se formar. Cerca de trinta soldados, alguns cavalgando brehms escamosos, outros conduzindo pesados dossis de chifres circulares, organizavam mantimentos para o destacamento que se estabeleceria provisoriamente ali. Seriam liderados por um Kellown à espera de nova investida de tropas do Império de Pytharon. A maioria dos moradores que restava, contudo, estaria sob a liderança severa de Elandra, capitã da milícia, a caminho da propriedade de Lorde Wernard Streck.

Ante a possibilidade de um confronto, Mark decidiu permanecer. Cid, que parecia ser mais capaz de explicar o que ambos encontraram no subterrâneo, recebeu um convite sem possibilidade de recusa: acompanharia Elandra e se reportaria ao Lorde. Antes de partir, ouviu de Mark a mais improvável das recomendações, que fosse claro e não os assustasse.

****

Já há alguns dias Zippack Ranzz maneja sua aeronave na direção do grupo de rasters. No princípio, supôs que sua falta de velocidade seria compensada pela paciência. Contudo, viraram os bons ventos que colocaram as criaturas litorâneas em seu trajeto por Ancuan. A energia que mantinha Fus-K velejando no ar chegava ao fim antes que Zippack pudesse colocar suas mãos em um par de rasters e usar porções de seus órgãos biomecânicos para reabastecê-la.

Perto de ficar sem alternativas, Zippack apontou Fus-K na direção de uma grande construção ancestral. Se parecia com um animal de concreto a observar o horizonte com seu único olho espelhado, de asas assimétricas abertas e prestes a alçar voo. Em torno dela, um assentamento improvisado se formava.

O pouso suave de Fus-K chamou atenção de alguns dos aldeões. Era uma gente com ar cansado e faminto, cuja relutância em fazer contato não era resultado de acanhamento, mas puro estupor causado pelos eventos recentes.

Ignorante a respeito de tudo, Zippack recostou-se despreocupado em um galpão onde refeições e uma bebida forte a base de grãos eram vendidos. Foi então que uma velha subiu em um caixote e as coisas ficaram interessantes.

****

A marcha de Itzen até a propriedade do Lorde Wernard Streck tomou muitas horas de um dia que começou com a escalada de quase duzentos metros até a superfície. Talvez por fome e fraqueza, após chegar ao local e ser informado de que logo seria recebido em audiência, Cid tenha acabado próximo ao local onde Aylonne pregava.

Antes mesmo de fazer sua refeição, acabou reconhecido. A velha, sobre uma caixa, esbravejava contra o horror que se abateu sobre Itzen, resultado da ausência de uma suposta veneração da qual a esfera seria merecedora. Cid, com uma tigela na mão, entrou na história como o responsável pela audácia de interferir e, assim, desencadear a destruição de Itzen.

Cercado por uma turba insatisfeita, gente que perdeu suas casas, que viu parentes e amigos serem engolidos por uma cratera, que marchou para sentir fome e morar em tendas. Gente ansiosa por uma desforra, qualquer quer fosse ela.

Cid até que se saiu bem da situação, primeiro em meio à multidão e, depois, sobre algumas caixas empilhadas. Seu erro foi absolutamente compreensível. Explicou, fazendo sua voz chegar mais alto e mais longe do que a de Aylonne, que ele tinha conhecimento de um novo desastre que somente ele poderia impedir. Um desastre muito maior, pois aconteceria em Qi.

Qualquer pessoa conhecedora da dinâmica das multidões sabe como as palavras se deslocam e se perdem nela com facilidade. E, assim, Qi, capital de Draolis, se tornou aqui.

A balbúrdia decorrente das palavras de Cid foi rapidamente desfeita por um grupo de guardas, mas estava plantada a semente da desconfiança quanto ao destino de todos.

****

Zippack a Cid puderam finalmente apresentar-se adequadamente numa conversa da qual Rugglet fez parte, ainda que este último não se recorde do encontro. Estavam diante de um galpão onde, Rugglet esclareceu, um raster fora aprisionado. Antes disso, o som de correntes e o piado agudo da criatura já haviam atraído a atenção de Zippack. Tendo em vista a necessidade de deslocamento rápido, Cid propôs uma parceria que durasse, pelo menos, até a chegada em Qi. Disso dependia os órgãos biomecânicos de raster, alternativa que encontrou forte oposição em Rugglet, motivo pelo qual Cid, fazendo uso de seus tecnotruques, garantiu a paz do carroceiro ao suprimir suas memórias a respeito daquela conversa.

Certamente Cid e Zippack fariam planos mais detalhados, não fosse a intervenção de Elandra.

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Cid falou primeiro, mas o jovem Wernard Streck parecia não ouvir. A cada descrição, fosse direta, tortuosa, verdadeira ou quase isso, interrompia com a mesma pergunta – havia nos subterrâneos de Itzen algo que pudesse ser usado como arma contra o Império de Pytharon? Insatisfeito com Cid, recebeu Zippack para rapidamente requisitar a aeronave Fus-K. Ordenou em seguida que fosse sacrificado o raster aprisionado para garantir-lhe alguma autonomia e despachou o aeronauta.

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Já era noite quando Cid e Zippack encontraram-se diante da propriedade ancestral de Streck, um contraste tremendo com seu jovem e tolo proprietário. Ao que parece, ele ainda teria um prisioneiro com que se distrair antes de tomar qualquer atitude. Era momento de um planejamento que andasse ao largo dos desejos do nobre.
« Última modificação: Março 09, 2015, 05:41:18 pm por Hentges »

Re:Numenera - The Wonder Weird
« Resposta #5 Online: Março 16, 2015, 08:33:48 pm »
Capítulo 5 – PãnPãNãNãNãããnnnn...(ou, A Cavalgada das Valquírias)

Verdade seja dita, nem Zippack Ranzz e nem Stephen Dedalus sabiam ao certo como tirar do raster sacrificado os órgãos biomecânicos necessários à reenergização do Fus-K. Por isso, daremos mais tempo aos dois enquanto revemos episódios anteriores, inclusive apresentando o jovem freelancer Dedalus adequadamente e descobrindo o que aconteceu com Mark e Cid, nossos protagonistas originais.

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Stephen Dedalus vinha de Ishlav a mando de Pais Pretéritos. Estranhos fenômenos recentes no firmamento capturaram sua atenção, levando-o a convencer seus patrocinadores recorrentes de que havia algo que aprender com aquilo. Supunha que seria necessário chegar ao Império de Pytharon, passando pelas terras do Lorde Wernard Streck e pela vila de Itzen, para melhor observar a curiosa movimentação de algumas das luzes do céu noturno. Contudo, havia em seu caminho um soldado de nome Elandra.

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Mark precisou de toda uma manhã de descanso antes de sentir-se parcialmente refeito dos acontecimentos no subterrâneo de Itzen, e além dele. Finalmente pôde observar a tropa baseada ali: uma dúzia de homens, displicentes e mais interessados em saquear o que restou da vila do que erguer algum tipo organizado de defesa.

Foi no início da tarde que um grupo voltou de patrulha com um prisioneiro. Era Lipke, o traidor. Havia sido maltratado, e desesperava-se feito um homem prestes à condenação. Mark interferiu antes que o rapaz fosse atirado na cratera aberta pela esfera. Sem Kellown por perto, a certificar-se da ausência de chirogs no subterrâneo, os soldados revelaram-se selvagens, e voltaram seu desejo de punição em direção a Mark. Defendendo-se da melhor maneira possível, ao menos evitou a execução de Lipke.

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Cid encontrou-se com Keza, misturada aos refugiados de Itzen, e disso uma ideia surgiu.

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“O que você sabe de rasters?”. Lorde Wernard Streck baseava na resposta a essa única pergunta o julgamento a respeito da utilidade de Stephen Dedalus, suspeito de associação com os Pais Pretéritos do Império de Pytharon – a acusação era infundada, além de não fazer o menor sentido. Satisfeito, o Lorde promoveu-o de prisioneiro a colaborador, colocando-o junto de Zippack diante de um raster acorrentado e agonizante, um soldado com um machado enorme e sob os olhos de uma multidão de curiosos.

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Ele montava um brehm e usava uma armadura que brilhava sob o sol matutino. Vinha lentamente, feito quem desejava ser avistado, mas altivo, como que sabedor de que a possibilidade de um ataque inexistia. Apresentou-se como Kervinig, representante do Capitão Mallard do Império de Pytharon, líder de uma tropa de cinquenta homens prontos a tomar Itzen. Os soldados queriam avançar sobre o inimigo e sua arrogância, mas o comunicado entregue fez com que Kellown os impedisse. Sob o jugo de Mallard estariam pelos menos dez habitantes da vila, Denniewis entre eles. A menos que deixassem Itzen em seis horas, seriam massacrados, primeiro os camponeses, e então os soldados.

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O raster é uma criatura curiosa quando vista de perto. Suas asas alcançam oito metros de envergadura, e seu corpo não é esguio como o de outros animais voadores, mas forte, quase excessivo. Certamente as quatro patas curtas não são capazes de dar conta dele por mais do que um tempo muito breve. O vermelho sanguíneo de um raster torna fácil de avistá-lo nos céus de Ancuan. Ali, no chão, ele apenas se confundia com o líquido espalhado pelo machado do executor.

Dedalus e Zippack encontraram o que procuravam na cabeça da criatura sacrificada. Os grandes discos prateados nascem e crescem ali, mas são mecânicos e guardam partes cuja energia acumulada serviria para colocar Fus-K mais uma vez na altura das nuvens.

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Naquela noite, quando Dedalus e Zippack descansavam em uma das inúmeras tendas improvisadas nos arredores da propriedade de Lorde Wernard Streck, Cid finalmente reapareceu. Por baixo de panos, passou com cuidado e uma aura de segredo um misterioso dispositivo. Tratava-se de um tripé metálico, feito para sustentar uma peça do mesmo material. Repleta de botões e símbolos, seu propósito seria apenas descoberto mais tarde. Segundo Cid, e foi a última coisa que disse antes de sumir junto de Keza, se tratava de algo muito útil e de que o Lorde não sentiria falta imediatamente.

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Kellown não poderia abrir mão de homem nenhum, e Mark tomou para si a tarefa de localizar os invasores. Do alto da colina, era possível observar qualquer tentativa de aproximação. Mas a geografia acidentada da região também permitia que um agrupamento de soldados estivesse postado a menos de um quilômetro de Itzen.

De Lipke veio a suspeita de que a incursão em Ancuan seria mais uma aventura belicista do capitão de uma fortaleza do que a orientação da imperatriz de Pytharon em seu palácio. Isso se confirmou antes do final da tarde, quando Mark avistou os prisioneiros e os soldados do Império, postados em um vale à espera da ordem para avançar.

Estavam a duas horas de caminhada da vila, e não chegavam ao número anunciado por Kervinig, mas ainda superavam em quase três para um os homens em Itzen.

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Fus-K deu início ao seu voo silencioso no início da manhã. Nele embarcaram Elandra e um soldado de sua confiança, além do aeronauta Zippack e Dedalus, que rapidamente dominara o sistema de energia da aeronave. E Cid.

Três horas depois, pousavam junto dos escombros de Itzen. Os soldados ali postados não inspiravam confiança. A situação narrada por Kellown e as intervenções de Mark apresentaram um cenário sombrio. Naquele momento, tinham menos de duas horas para decidir entre lutar e arriscar as vidas dos aldeões a as suas, ou retirar-se da vila, abandonando os moradores à própria sorte e o orgulho em um ponto tão profundo quando os subterrâneos de Itzen.

Inicialmente relutantes, Zippack e Dedalus resolveram-se por tomar parte no que fosse decidido. Juntos, vasculharam os arredores em busca de pedras pesadas e combustível para explosivos improvisados. Mais tarde, já com a ajuda de ambos, Mark finalmente conseguiu, ao custo de um dossi, discernir o funcionamento do dispersor de energia encontrado nos subterrâneos. Cid, enquanto isso, tentava convencer os soldados da importância de ele estar junto da esfera nesse momento crítico.

****

Todos os soldados no solo eram necessários, e permitir que os quatro voassem sem supervisão exigiu de Elandra uma enorme dose de confiança.

Elevando o Fus-K ao limite de sua altitude, Zippack fornecia uma visão privilegiada da movimentação do grupo saído de Itzen e também daquele baseado em um vale a quilômetros dali. Imprimindo um mergulho ousado, surpreendeu os homens de Pytharon, pegos de surpresa e, àquela altura, já esquecidos de seus prisioneiros.

O casco da aeronave atropelou meia dúzia de soldados e um pedregulho arremessado por Cid fez outra vítima. Mark incendiou um grupo de homens e Dedalus disparou o dispersor, fazendo a energia ricochetear até encontrar um alvo orgânico e pulverizá-lo.

Manobrando o Fus-K, viram que sua intervenção garantiu a margem necessária para igualar as forças em combate. A um custo muito alto, os homens liderados por Elandra saíram vitoriosos. Considerando sua parte do acordo cumprida, apontaram o Fus-K em direção a Ishlav.

Era o mais longe que poderiam chegar com a energia de que dispunham.

Re:Numenera - The Wonder Weird
« Resposta #6 Online: Abril 13, 2015, 11:47:36 am »
Capítulo 6 - (Metade de) Um Conto de Duas Verdades

Ishlav é uma cidade dividida pela própria história, com a linha traçada vinte anos atrás, quando um evento ainda carente de explicações cortou a cidade ao meio. O pouco que se sabe diz respeito a um artefato extraordinário levado por exploradores à Ordem da Verdade. Na ânsia por compreender aquilo, os Pais Pretéritos ativaram o dispositivo e tudo o que era inanimado a meia légua de distância foi partido em dois. Construções desabaram, vidas foram perdidas, tragédia e incerteza tomou Ishlav. No penoso processo de reconstrução que se seguiu, contudo, os cidadãos perceberam que sua saúde havia melhorado. Sentiam-se mais capazes para trabalho e adoeciam com menor frequência. Ishlav foi em frente, pesarosa pelas vidas perdidas, mas orgulhosa do que recebeu em troca, mesmo sem compreender os motivos de tamanha dádiva.

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Czyran Eczos jamais duvidou de que sua condição estivesse relacionada ao fenômeno ocorrido na cidade. Foi afetado ainda no útero materno, recebendo dádivas superiores, mas nascendo com a mão esquerda de aspecto membranoso, cuja pele ressecada e quebradiça até hoje exige umidade frequente. A doença avançaria até tomar o braço quase que por completo, estagnando apenas graças ao conhecimento técnico do pai adotivo. Passados vinte anos, estava de volta a Ishlav em busca de respostas.

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O Fus-K posou suavemente em um terreno vazio, junto da propriedade da Ordem da Verdade, despertando como sempre acontecia a curiosidade de transeuntes. Ishalv, entretanto, não era uma vila qualquer de aldeões facilmente impressionáveis, mas uma cidade de bom porte e quase 20 mil habitantes, e estes logo trataram de cuidar de suas vidas.

Zippack e Mark permaneceram na aeronave, enquanto Dedalus se dirigiu ao encontro de Galvin, líder da Ordem da Verdade em Ishlav e patrono ocasional de suas pesquisas. Surpreso pelo encontro – esperava que Dedalus agora estivesse cruzando a fronteira de Ancuan com o Império de Pytharon -, o Pai Pretérito recebeu os três. Coube a Mark relatar os extraordinários eventos em Itzen, minimizando os acontecimentos da masmorra na escuridão entre as estrelas e atribuindo a Cid as previsões mais catastróficas a respeito do que testemunharam, especialmente no que dizia respeito a Qi, capital de Draolis. Cid, que ficara para trás no dia anterior ao se decidir por permanecer em Itzen, não poderia contribuir com seus raciocínios tortuosos.

Antes que pudessem explicar quais eram suas intenções ali, foram interrompidos pela urgência de um recém-chegado.

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Com os recursos de um passado de nobreza escasseando, Czyran se vira obrigado a adotar hábitos mais simples, especialmente no que dizia respeito à hospedagem. Disso resultava tratar com um estalajadeiro grosseiro feito Ebunike e dividir o quarto com viajantes, como Velson. Ebunike ainda teria pela frente muitos dias de rabugice e maus modos. Velson, contudo, teve na noite passada sua última oportunidade para reserva e circunspecção.

Quando Czyran abriu a janela ao lado de sua cama, constatou que ninguém vivo poderia ter aquele aspecto assustador e tão familiar.

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Simpatizar com Czyran não era tarefa fácil.

Ele interrompeu uma reunião, anunciou um problema complexo e arrematou mostrando a todos a deformidade em sua mão. A interrupção era inconveniente passageiro, mas o problema apresentado poderia ter implicações maiores. Quanto à mão, parecia a cena de alguém acostumado ao preconceito, buscando de imediato avaliar reações a sua condição incomum.

Entre todos, Zippack foi o único a abertamente demonstrar intolerância. Tanto que decidiu circular por Ishlav enquanto os demais, Galvin entre eles, se dirigiam ao local onde Czyran estava hospedado.

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A pele de Velson ressecara ao ponto de descolar-se do corpo, tornando-se um pó tão fino quanto as cinzas que repousam numa lareira pela manhã. Era um cadáver horrível de se olhar, com músculos, tendões e ossos expostos. Tocar seu corpo evocava perigo, pois era misteriosa a moléstia que lhe tomara a vida. Os pontos onde a pele ainda não se desprendera da carne em muito se pareciam com a deformidade de Czyran. Um olhar descuidado ou uma interpretação incorreta, e o jovem sem dúvida seria acusado de ser o causador daquilo.

Decidiu-se por levar o corpo até a sede da Ordem da Verdade, onde ficaria confinado e menos sujeito à transmissão de uma possível doença. Discretamente, entre lençóis e cobertores, foi retirado da estalagem, com Ebunike sendo convencido de que o sigilo a respeito do destino do viajante seria fundamental e benéfico a todos.

Entre os pertences de Velson, apenas aquilo que se poderia esperar encontrar na mochila de um viajante, além de alguns pedaços retangulares de pedra com pontos marcados em quantidade que variavam de um e cinco.

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Na praça em frente à sede da Ordem da Verdade, um grupo se formava. Homens e mulheres com a aparência de servos, mercadores e artesões. Todo o tipo de gente se juntava para atender aos comandos de um homem de nome Kollos. Líder dos Monges de Mitos, ele e seus companheiros mais antigos ensinavam à população as táticas de defesa da Prece de Punhos: chutes, socos e combinações de ambos para utilização em caso de ameaça. Junto com a atividade física ao qual cerca de cinquenta pessoas se integraram, Zippack entre elas, Kollos dizia frases de iluminação: “Se você ama a vida, não perca tempo. É de tempo que a vida é feita; A posse de qualquer coisa começa na mente; Exibicionismo é a ideia que o tolo tem da glória.”

De volta, com Mark, Dedalus e Czyran carregando um fardo um pouco para trás, Galvin não conseguiu disfarçar seu descontentamento diante daquela demonstração.

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A sede da Ordem da Verdade em Ishlav tem em seu primeiro andar uma combinação de biblioteca e oficina. Ali as pessoas costumam circular em busca de orientação dos Pais Pretéritos a respeito dos mais diversos assuntos, inclusive muitos dos quais em nada têm relação com a sua área de saber, a Numenera. É raro que o local esteja vazio, e por força das ordens de Galvin, esta era uma dessas raras ocasiões.

Entre dispositivos desmontados, remontados e desmontados novamente, diagramas complexos e plantas exóticas dissecadas, o corpo de Velson foi acomodado. O transporte tratou de desmantelar o que de pele ainda tinha no corpo, espalhando um pó claro no ar e causando novamente uma impressão forte em todos os presentes.

Galvin demonstrava disposição para examinar o cadáver, ainda que não soubesse ao certo como começar. Não fosse o estado assombroso de Velson, certamente poderia se dizer que era um homem saudável e bem constituído. Descobrir o que se passara com ele não seria tarefa simples.

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Do ponto de vista sempre prático de Zippack, Ishlav era simplesmente um ponto de passagem para Qi ou outro destino qualquer. O certo a se fazer, portanto, seria buscar meios de reabastecer o Fus-K enquanto Galvin não pudesse auxiliá-los com isso, ocupado que estava em examinar o falecido Velson.

Infelizmente, não seria tarefa tão simples assim. O comércio de Numenera era proibido à população pelos Pais Pretéritos, uma determinação cuja explicação não chegou a ser adequadamente formulada. Como a posse dos dispositivos maravilhosos do passado não era proibida, juntos carregavam meia dúzia deles, era o caso de descobrir onde o comércio ilegal acontecia.

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Ao longo de vinte anos, Ishlav recebeu um enorme influxo de pessoas, todas ansiando pelos mesmos benefícios que a população original da cidade experimentava. Não se tem notícia de um só caso em que esse propósito foi atingido. Restou aos recém-chegados partir ou permanecer. Deste segundo grupo, a maior parte não tinha recursos para outro local que não fosse a Margem Sul, a Ishlav arruinada, a porção da cidade devastada e sobre cujas lembranças ruins nada foi reerguido.

Lentamente, esses cidadãos considerados de segunda categoria organizaram sua própria forma de viver, em muito amparada pela mendicância, criminalidade e violência. É nesse local que Czyran, Dedalus, Mark e Zippack esperam encontrar o que procuram.

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Na Margem Sul há jogos de azar, prostituição e comercialização de drogas. As pedras retangulares encontradas entre os pertences de Velson serviam como moeda para apostas, e saíram dali. Sem dinheiro o bastante para adquirir um pequeno reator elétrico que poderia alimentar o Fus-K, viram na indicação de Czyran uma boa saída para multiplicar seus recursos: colocar Mark em um fosso para lutar com animais selvagens. Após Dedalus adquirir a maravilhosa Água de Ishlav, garantia de benefícios para a saúde sem o risco de sua casa desabar repentinamente sobre sua cabeça, chegaram ao local onde o soldado teria a chance de provar seu valor.

Dentro do fosso estava o animal mais perigoso que Mark já tivera a chance de ver tão de perto. Com o peso de seis homem e pelagem grossa, são conhecidos como devastadores. Sem olhos, a besta se orienta pelo som e olfato para despedaçar coisas com presas tão compridas quanto a perna de uma mesa.

Ignorando as apostas de três para um contra ele e demonstrando imensa habilidade com o machado e escudo, Mark deu cabo do devastador em quatro movimentos, causando frustração entre os apostadores e obrigando seus três companheiros a impedir que mais animais fossem jogados no fosso para desafiar o soldado.

Saíram de lá com shins o bastante para negociar o reator elétrico para o Fus-K, "apenas porque preciso do dinheiro para minha mãe doente", e depois de constatar que um bom número de animais utilizados no fosso tinha na boca eczemas que em nada se pareciam com feridas de combate.

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Ao retornarem à sede dos Pais Pretéritos, Galvin examinava um cadáver. Apenas não era Velson. A moléstia misteriosa fizera uma segunda vítima.
« Última modificação: Abril 13, 2015, 11:52:10 am por Hentges »

Re:Numenera - The Wonder Weird
« Resposta #7 Online: Abril 27, 2015, 05:29:18 pm »
Capítulo 7 – (Segunda Metade de) Um Conto de Duas Verdades

A pequena sala comunal da Ordem da Verdade demonstrava naquela manhã, com sua refeição simples, cadeiras vagas e poeira acumulada onde os olhos não viam primeiro, a situação atual dos Pais Pretéritos em Ishlav. Apenas os mais jovens estavam ali, circunspectos, e ninguém ousava perguntar a respeito dos corpos sobre as mesas do laboratório. Já eram dois, e Galvin passara a madrugada examinando-os. Antes que fossem até ele, Zippack, Dedalus e Mark rumaram ao mercado central da cidade. O último desejava uma nova espada, enquanto os outros dois tinham ideias a respeito de como tornar o Fus-K uma aeronave mais eficiente.

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Czyran Eczos tinham mensagens a enviar a sua família e patrocinadores em Glavis. Ela levaria ao menos cinco dias até que chegasse à capital de Ancuan, muito mais tempo do que durariam os poucos shins que ainda levava consigo. A Ordem da Verdade era o único e melhor meio para empregar seu conhecimento a respeito da Numenera e, ao mesmo tempo, ganhar acesso aos dados sobre o evento que ocorreu na cidade vinte anos atrás.

Recebido por Galvin, Czyran foi confrontado com a realidade já há algum tempo estabelecida ali: não havia recursos. Contudo, ele facultaria acesso ao laboratório principal e à biblioteca. Gostaria apenas que o jovem nobre usasse de sua influência para tranquilizar o companheiro de Asther Vanita. Ela, também uma nobre, era a segunda vítima da estranha doença, e a divulgação das circunstâncias da morte causaria pânico entre a população.

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Ao retornarem, Mark, Dedalus e Zippack foram apresentados ao que Galvin descobrira ao longo da madrugada. Pouco havia a ser dito a respeito dos dois corpos, mas a água que trouxeram da Margem Sul apresentava propriedades curiosas. Nela, gramíneas e folhas comuns, do tipo que crescia em qualquer lugar de Ishlav, irradiavam uma leve fosforescência nas bordas. Perceptível apenas quando examinadas por meio de complexos painéis, que agigantavam sua aparência sob vidros e películas transparentes, era o primeiro indício a respeito de como se espalhava a doença.

Discretamente, Galvin e Dedalus conversaram a sós sobre o que ocorria na cidade e como o auxílio do pesquisador e de seus dois companheiros seria útil. Mais importante do que um pagamento, uma impossibilidade para a Ordem, a intervenção faria com que os três caíssem nas graças do grupo organizado mais importante dos Nove Reinos. E faria com que fosse esquecido o investimento feito na viagem inconclusa de Dedalus a Rarmon, no Império de Pytharon, para estudo do Grande Planetário de Ferro.

Do lado de fora, enquanto isso, Zippack recusava uma oferta de 5 mil shins e dois aneens domesticados pelo Fus-K. A nobre solicitante, Choen Mohsen, acreditava que aquele era o veículo capaz de levá-la adequadamente à capital de Draolis. “Chegar por cima é o único modo certo de chegar a Qi”.

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Já fazia algum tempo que Czyran conversava com Évoro, garboso companheiro de Asther Vanita, na mansão que dividiam. Ele já se mostrara um companheiro dedicado, um amante enlutado e um jovem egoísta. A contragosto, concordava com a possibilidade de adiar o digno funeral merecido por ela. Servo com funções e privilégios especiais, Évoro era responsável por alimentar a maior obsessão de Asther Vanita: a manutenção de sua juventude. Isso o ultrajava mais do que os boatos de que seriam amantes.

Quando Mark, Dedalus e Zippack chegaram ali, Czyran já encontrara, em meio a pós, unguentos, pomadas e xaropes, uma garrafa muito semelhante àquela que trouxeram da Margem Sul. A Água de Ishlav fora despejada numa cuba de vidro e tinha os mesmos resquícios de plantas da outra amosta. Já há alguns meses Évoro a adquiria de um homem chamado Strepicus. Asther passava o líquido nas mãos, rosto e colo, além de bebê-lo regularmente.

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Naquela tarde, Dedalus, Zippack e Czyran fizeram testes com o pequeno reator elétrico adquirido na Margem Sul. Sua intenção era fazer com que a fonte de energia alimentasse o Fus-K. Mesmo tendo o laboratório da Ordem da Verdade à disposição, não foi possível realizar a conversão. Galvin se recusou a ajudá-los, mas não impediu a tarefa. Os Pais Pretéritos eram os responsáveis pela restrição à Numenera em Ishlav, e tomar parte naquilo feriria a crença na necessidade de tal proteção. Segundo Galvin, se mesmo a Ordem da Verdade, em posse de todo conhecimento acumulado a respeito da Numenera, não pôde controlar o desastre do passado, a livre circulação de dispositivos de origem misteriosa e propósitos inescrutáveis apenas colocaria a cidade em risco.

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Mark, por sua vez, se dirigia ao local que servia ao encontro e treinamento dos Monges de Mitos. Fora abordado mais cedo por Mikhal, que na noite anterior o vira enfrentando o devastador no fosso. Ele parecia ter aquilo que interessava a uma ordem que buscava a iluminação dos capazes de provar seu valor em combate.

Naquele momento, cerca de quarenta pessoas se esforçavam para acompanhar os movimentos de Kollos e seus mais graduados seguidores. Era disciplinados, mas diferiam do tradicional treinamento militar na maneira com que golpes de mãos nuas eram intercalados por um discurso de purificação pacífica. Ensinavam a defesa, e não o ataque. Observando de longe, Mark podia ver que os Monges de Mitos haviam ocupado, com suas famílias e associados, todo um bairro de Ishlav.

Não era estranho ao soldado mover-se sem a proteção da armadura ou o peso do escudo; lutar de mãos nuas era algo que aprendera em tavernas de Thaemor. Mesmo assim, em nenhum momento foi capaz de surpreender Kollos, cuja reputação pela capacidade de luta de fato se confirmava com poucos movimentos.

Antes de despedirem-se, um brinde ao guerreiro que talvez encontrasse a elevação espiritual. Era a Água de Ishlav que Kollos e Mikhal bebiam e com a qual Mark apenas umedeceu os lábios.

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Os quatro deixaram o capitulo da Ordem da Verdade durante a noite. Naquele momento, um grande número de soldados da Guarda de Ishlav já se postava ali. Protegeriam uma reunião da nobreza local, convocada por Galvin. Era hora de dividir com o conselho da cidade as notícias a respeito das mortes e os riscos que a cidade poderia correr.

O plano do grupo consistia em fazer Czyran passar-se por um nobre munido de shins e ingenuidade, disposto a adquirir de Strepicus a famosa Água de Ishlav em grande quantidade. Os demais seriam seus protetores e conselheiros, o acompanhando ao endereço do comerciante, fornecido por Évoro.

Lá chegando, em uma viela discreta num dos pontos mais extremos da Margem Sul, se depararam com uma residência vazia. Sobre uma mesa simples estavam plantas e folhas, além de cordas e baldes usados para recolhimento de água de poços. Havia diversas garrafas grosseiras, semelhantes àquela encontrada no quarto de Asther Vanita. A cama fora arrastada da parede, deixando à vista um buraco no chão de terra batida. Possivelmente um esconderijo para shins ou pequenos objetos. Nos fundos, Mark e Dedalus encontraram árvores sem folhas um poço no qual água corrente se fazia ouvir. Sem dúvida era dessa combinação que Strepicus produzia sua água milagrosa.

Em frente à casa, à espera dos companheiros, Zippack e Czyran apenas tiveram a oportunidade de observar a inesperada passagem de dois Monges de Mitos.

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A terceira morte ocorreu subitamente. Um homem, transportando caixas, simplesmente desabou em meio à rua. Curiosos se aproximaram, um alarido se formou, mas ninguém pareceu disposto a ajudá-lo. Pelo menos não até que Mark abrisse caminho, buscando aproximar-se. A pele do jovem já apresentava empalidecimento. Ao tocá-lo, buscando por sinais vitais, o soldado já podia sentir os estalidos do ressecamento anormal.

O cadáver foi coberto, vozes se fizeram ouvir mais do que outras e o grupo de curiosos dispersou-se, dando aos quatro a chance de descobrir mais a respeito do morto. Morador da Margem Sul, era um criador de animais que serviam de alimento às bestas da pequena arena de combates local. Parecia ter negócios com Strepicus, ainda que não fosse clara sua natureza.

Levando consigo o corpo do criador, ocultado por cobertores, e um de seus animais, que apresentava feridas na boca à semelhança dos animais da arena, retornaram ao capítulo da Ordem da Verdade. Com a reunião da nobreza ainda em andamento, foram impedidos de entrar. Deixaram seus despojos nos fundos do prédio e um bilhete alarmante dirigido a Galvin. “Uma pessoa morreu na Margem Sul”.

****

O complexo subterrâneo de Ishlav é formado por um conjunto de cavernas sobre os quais a cidade foi erguida duas vezes. Ali correm os riachos que abastecem diversos fontes e poços pela cidade. O avanço inicialmente se deu através da escuridão iluminada por tochas, com a fosforescência detectada nas plantas recolhidas junto da Água de Ishlav se acentuando conforme dirigiam-se tortuosamente ao norte.

Após uma hora de exploração a partir de um riacho na Margem Sul, junto da arena, as paredes úmidas das cavernas já davam lugar a uma vegetação exuberante, formada basicamente por fungos de pulsação luminescente. As tochas sequer eram necessárias quando chegaram ao centro daquilo.

O grande salão natural era iluminado por uma piscina fosforescente. Com dez metros de diâmetro e cortada por passarelas, estava prestes a transbordar. Do teto da caverna, pingava a partir de uma estalactite uma substância da mesma cor da luz que os guiou até ali.

Debruçado sobre uma das passarelas, Kollos recolhia o líquido da piscina sem preocupação aparente quanto aos efeitos daquilo sobre si.

– Vocês chegaram até aqui, mas não sabem onde estão. Logo acima de nós, os nobres de Ishlav decidem apenas preocupando-se consigo o destino de toda a cidade. Estes são os subterrâneos da Ordem da Verdade.

Kollos parece plenamente seguro de suas conclusões, demonstrando pouca inclinação a explicá-las, especialmente por tomar seus quatro interlocutores por associados aos Pais Pretéritos. Ele tem plena ciência de que, se divulgadas, provocarão um revolta de consequências imediatas.

– A população tem o direito de decidir por conta própria, mesmo que isso signifique que tudo fique pior antes de melhor.

Nenhum dos quatro faz menção a colocar-se no caminho de Kollos. Não é difícil imaginar o que faria ele em posse da confirmação de suas suspeitas.

A possível negligência que pode resultar numa tragédia impulsiona Czyran, Dedalus, Mark e Zippack de volta à Ordem da Verdade.

Nas ruas da Margem Sul, mais mortes eram lamentadas.

****

Na Ordem da Verdade, tudo aconteceu rapidamente.

Apesar das primeira negativas, Galvin não podia esconder que sim, ainda tinha em seu poder o artefato causador da tragédia de vinte anos atrás. Permanecia tão inerte e misterioso quanto no momento imediatamente posterior ao efeito que causou. Ou não?

Enquanto Czyran recolhia seus pertences na estalagem de Ebunike, e Zippack fazia os preparativos para uma rápida decolagem do Fus-K, Mark se deparava nos porões da Ordem da Verdade com uma esfera metálica produzindo uma familiar e desconcertante vibração. De algum modo, estava ativada, ou reativada, e interagindo com todos ou alguns dos dispositivos descartados ali. Havia motivos,para que as alegações de Kollos fossem verdadeiras. E, mais importante, havia mais do que o suficiente ali para fazer parecer com que estivessem completamente certas.

Importava apenas tirar a esfera dali, a esta altura já desativada por Dedalus, e foi por isso que Galvin ingressou na arriscada tarefa de associar urgência e o reator elétrico necessário à partida.

Quando o Fus-K levantou voo, levava Zippack, Dedalus, Mark e Czyran. Levava também a misteriosa esfera. Do alto, era possível ver a multidão guiada por Monges de Mitos prestes a chocar-se contra a Ordem da Verdade. No prédio esvaziado, Galvin era o único Pai Pretérito que restava.

Qualquer que fosse o futuro de Ishlav, uma brusca mudança parecia prestes a novamente cortar a cidade ao meio.

Re:Numenera - The Wonder Weird
« Resposta #8 Online: Maio 17, 2015, 08:39:42 pm »
Capítulo 8 – De: Ishlav. Para: Glavis.

Amanhecia quando o Fus-K chegou à costa de Ancuan levando Zippack Ranzz, Czyran Eczoz , Mark e Stephen Dedalus. Viajava energizado pelo reator elétrico adquirido em Ishlav, e se comportava perfeitamente. De fato, o dispositivo produzia mais energia até do que era necessário para manutenção do veículo no ar e avançando, e planos de melhorias utilizando este excesso talvez fossem cogitados pela tripulação. Contudo, era a esfera retirada da Ordem da Verdade em Ishlav que de fato importava naquele momento. O grupo concordara que levá-la até Glavis seria um risco. Desativada e deixada em uma encosta rochosa, numa região escarpada banhada pela extensa Baía Kelen, permaneceria em segurança e segredo.

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Os 20 mil habitantes de Glavis vivem no que se parece com três cidades distintas. Porto Frohm, a menor e mais movimentada delas, compreende a região portuária. Há a Colina de Nurel, lar da nobreza e dos abastados, e Terras Férteis, onde se organiza toda a produção. A capital de Ancuan é comandada pelo Rei Asour-Mantir, que governa de um isolamento autoimposto em sua fortaleza transparente, 35 km a noroeste de Glavis, cercado por bajuladores e pela Legião Azul, soldados famosos pela habilidade como arqueiros. O povo de Glavis venera Relia e Bianes, deuses irmãos. Altares discretos são depósito de oferendas muitas vezes consumidas bem diante dos olhos dos fiéis. Seus templos e estátuas foram erigidos com uma espécie de pedra-sabão, muito resistente e abundante em todo o litoral.

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O Conselho Numer, assim Czyran explica aos demais, cumpre em Ancuan um papel semelhante e paralelo ao da Ordem da Verdade. Seu pai já fizera parte do grupo, mas a idade, somada ao desinteresse pelas aplicações bélicas e energéticas da Numenera em voga, o afastaram. Mantido por membros da nobreza local como um clube de cavalheiros interessados na promoção do conhecimento, é no pátio da sede do Conselho Numer que o Fus-K pousou, no início da noite.

Àquela altura, notícias de Ishlav já haviam chegado. A Ordem da Verdade, enfraquecida há meses, fora atacada por uma turba durante o surto de uma doença desconhecida. Um culto local, chamado de Monges de Mitos, seria o responsável. A situação fora controlada pela guarda local, com Galvin e os demais Pais Pretéritos agora sob a proteção direta de Choen Mohsen, líder do Conselho de Nobres. A mensagem, redigida por Galvin, em conjunto com Choen Mohsen, não mencionava o dispositivo que desencadeou a doença e nem seu destino.

Czyran manifestava dúvidas quanto à veracidade das notícias, mas tinha problemas maiores a contornar. Yalacker-Siross, membro do Conselho Numer e responsável pela viagem a Ishlav, não aceitava que um pesquisador deixasse uma cidade em meio a um surto de doença que, suspeitava-se, poderia ter relação com o evento desencadeado pelos Pais Pretéritos vinte anos atrás, em um novo episódio de negligência.

Mantendo a esfera em segredo, Czyran teria até a manhã seguinte para preparar um relatório e convencer os demais membros de sua capacidade para continuidade da realização das pesquisas em Ishlav.

Enquanto isso, Dedalus encontrou no capitulo da Ordem da Verdade um rosto conhecido. Loig era um jovem Pai Pretérito vindo de Ishlav, ansioso por notícias em primeira mão. Ele confirmaria a versão dos fatos conhecida pelo Conselho Numer, bem como a ausência de qualquer menção a um dispositivo retirado da Ordem da Verdade.

Mais tarde, Dedalus juntou-se a Mark e Zippack em Porto Frohm. Embarcações do Reino de Ghan estavam de partida para Qi, e sua tripulação de maioria feminina tinha muito a celebrar.

****

O Conselho Numer considerava resolvida a questão em Ishlav, pelo menos do que dizia respeito à doença que abateu uns poucos moradores. O aspecto político, com a Ordem da Verdade enfraquecida, era mais importante naquele momento. Contudo, Czyran não estava interessado em jogos de poder. Em deferência ao seu pai, os membros concederiam a ele a oportunidade de apontar o destino de suas pesquisas, desde que ele mostrasse algo capaz de fazer brilhar olhos e abrir cofres.

****

Durante dois dias o Fus-K esteve pousado às margens da Baía Kelen. Sob a supervisão de Dedalus, Mark, Czyran e Zippack fizeram todos os testes que consideraram possíveis com a esfera de Ishlav. Sob certos aspectos, ela se parecia com a fonte de energia encontrada por Mark e Cid na masmorra entre as estrelas. Tratava-se de um poderoso mecanismo de alteração das propriedades fundamentais da vida. Isso significava que ela seria capaz de quase tudo em relação à matéria orgânica, sendo uma espécie de armazenador de energia vital contendo segredos a respeito da vida em civilizações remotas e de feitos como a reversão da morte.

Infelizmente, os testes a exauriram, e ela jamais seria utilizada para as coisas grandiosas e terríveis de que seria capaz.

A não ser…

****

O membros do Conselho Numer chegaram ao meio-dia à propriedade de Mensel Eczoz, em Terras Férteis. Czyran os recebeu logo depois de Zippack, utilizando seu domínio natural sobre a eletricidade, energizar a esfera. Ele já fizera isso em ocasiões anteriores, mas nunca com dispositivos tão complexos. Suspeitava de que ela funcionaria por algumas horas, pelos menos um dia, tempo suficiente para que fosse apresentada ao Conselho Numer e convencesse das vantagens de financiar o grupo para encontrar artefatos semelhante. Se aquilo que Mark e Cid viram estivesse correto, existiriam outras nos Labirintos de Ferro, na região de Augur-Kala e em Qi, capital de Draolis, além daquela que despencou sobre Itzen.

Como forma de provar o poder do dispositivo, Dedalus planejava curar a mutação de Czyran.

Mas algo deu errado.

A última coisa que todos perceberam foi o choque de energia devastador emitido pela esfera.

Re:Numenera - The Wonder Weird
« Resposta #9 Online: Maio 19, 2015, 07:10:00 am »
Olá Hentges,

Você poderia falar -- aqui ou num outro tópico -- sobre sua experiência com o Cypher System? Tipo, o que você acha bacana e o que não é tão bacana assim? Como você tem lidado com o "GM Intrusion"? Alguma house-rule digna de nota? Você chegou a dar uma olhada na versão brasileira do Numenera?

Re:Numenera - The Wonder Weird
« Resposta #10 Online: Maio 19, 2015, 09:57:03 am »
Buenas

Estou achando o sistema muito bom pela sua simplicidade na resolução de tarefas. Uma rolagem de um d20, feita sempre pelos jogadores, e pronto, tudo resolvido. Eu não sou um narrador de pedir muitas jogadas, geralmente me contentando em saber se o personagem tem ou não a habilidade requerida, e também não existiram muitos combates até aqui; é um impressão positiva, mas vinda de alguém que pega leve com as regras.

As GM Intrusions também usei pouco, nas duas ocasiões para criar situações que impediram a fragmentação da trama pela separação dos personagens. É um mecanismo novo para mim, e eu tenho que me acostumar a sua possibilidade. Acho interessante como possibilidade, mas acho que seu uso recorrente, uma vez por sessão, digamos, já pareceria excessivo pra mim e para os jogadores.

Quanto à versão traduzida, espero que seja um sucesso. O cenário e as regras são muito bons, e merecem ser acessíveis a um público maior. Particularmente, prefiro o material na língua original, especialmente por conta das referências cruzadas, que se perdem com a nova paginação nas traduções.

Qualquer coisa, estamos aí.

Re:Numenera - The Wonder Weird
« Resposta #11 Online: Maio 31, 2015, 08:34:59 pm »
Capítulo 9 - Os Trabalhadores do Mar dos Segredos (Parte Um)

Um mês passou-se desde o evento cujo epicentro foi a propriedade de Lemsel Eczoz. O choque inicial e o desabamento de construções fizeram inúmeras vítimas, a maior parte delas em Terras Férteis. Demorou duas semanas até que a Ordem da Verdade lançasse luz sobre a tragédia.

Um grupo de mercenários liderados por um gaiano estava a caminho de Glavis. Deduziu-se que planejava detonar o dispositivo na cidade para minar os esforços de guerra que partem de Porto Frohm a caminho de Qi e, dali, para o norte, além do Campo sob as Nuvens de Cristal. O líder dos Pais Pretéritos em Glavis, Adhamastor Nerus, apresentou as conclusões ao próprio Rei Asour-Mantir, que em uma rara manifestação direta aos seus súditos, empenhou recursos e esforços de Ancuan em favor da causa da Ordem da Verdade.

Zippack Ranzz frequentou Porto Forhm nas últimas semanas e observou a partida de embarcações levando membros da Legião Azul para Qi. Ali, entre bebedeiras e apresentações performáticas, vendeu partes aproveitáveis do Fus-K, danificado além de qualquer possibilidade de reparo pelo choque de energia emitido pela esfera trazida de Ishlav. Nas ruas, falava-se dos gaianos como uma raça de nortistas desprezíveis, mesmo que até recentemente sua existência fosse ignorada. A população estava aliviada pelo ataque mal sucedido ter feito menos vítimas do que poderia, e a presença de homens de um Senhor de Guerra chamado Serec reforçava a sensação geral de segurança.

Mark ingressou entre as fileiras de Serec, informalmente chamado de O Relutante. Com o contingente presente nas ruas de Glavis, uma companhia de mercenários foi deslocada até Itzen a pedido de Lorde Wernard Streck. Por duas semanas, Mark acompanhou a construção de uma guarnição onde antes havia Itzen e patrulhou a fronteira de Ancuan com o Império de Phytaron. Da esfera que destruiu a vila não se tinha notícia desde sua remoção com a ajuda de homens de Serec, cuja força militar começa a se expandir para além dos arredores de Glavis. Seus capitães, em mais de uma ocasião, ordenaram que tropas se movimentassem além da fronteira, fomentando animosidades que justificariam, e quem sabe ampliariam, a necessidade de milicianos na região.

Stephen Dedalus investiu seu tempo buscando aproximar-se de Loig. O jovem Pai Pretérito de Ishalv é ambicioso, e aos poucos cedeu informações a respeito do que realmente estava acontecendo na Ordem da Verdade em Ancuan. Internamente, se dava como certa a relação entre o evento em Ishlav vinte anos atrás e o ocorrido em Glavis. As propriedades afastadas de Terras Férteis dificultavam apontar o centro da emissão de energia, mas a Ordem considerava em suas conjecturas a perda de quase todo o Conselho Numer na ocasião, inclusive com a propriedade de Lemsel Eczoz tendo sido seriamente afetada. A opção pelo uso político da tragédia se justificava, pois culpados punidos pelos seus atos são mais tranquilizadores para a população do que uma tragédia inexplicada capaz de se repetir a qualquer momento. Sugerindo a Loig o desejo de aproximar-se da Ordem da Verdade em Qi, Dedalus recebeu um contato: Pai Onald.

Czyran Eczoz tinha mais preocupações do que todos. Seu pai, Lemsel, foi uma entre tantas vítimas diretas da decisão de levar à propriedade em Terras Férteis a esfera resgatada de Ishlav. Durante as semanas seguintes, havia esse funeral e o de diversos servos por realizar, uma propriedade para reerguer e uma família a liderar. Em paralelo, a necessidade de manutenção do segredo em relação ao ocorrido. Recuperando-se lentamente, Yalacker-Siross era o único sobrevivente do Conselho Numer original, e demonstrava disposição para contribuir. Contudo, famílias nobres perderam subitamente seus membros, havia muito espaço para intrigas e disputas de poder se avizinhavam. O Conselho estava aberto para sucessores que quisessem ocupar uma cadeira, mas as circunstâncias faziam dele uma entidade sem força e praticamente inexistente, cujo vácuo seria preenchido por Czyran.

Causadora daquilo tudo, a esfera de Ishlav, exaurida, fora cerrada em um baú e enterrada nos arredores da propriedade dos Eczos, em Terras Férteis.

****

O Tonel era um cog com cerca de oitenta pés. Impulsionado por uma única vela quadrada e manejado por uma tripulação de dez pessoas, era comandado pela capitã Akelle, que acompanhava o embarque das últimas sacas de grãos e a chegada de Czyran Eczos, Stephen Dedalus, Mark e Zippack Ranzz. Por último veio Anders, acompanhado por Loig e levando uma grande quantidade de pertences. A previsão era de uma viagem de oito dias a partir da Baía Kelen e pelo Mar dos Segredos, apenas possível graças a uma rota que não incluía paradas nos portos de Rarrow e Kaparin, em Ancuan, e Mullen, em Iscobal. Dedalus, Mark e Zippack uniram-se à tripulação, assumindo tarefas menores já a partir de partida para Qi, enquanto Czyran, financiado por nobres locais e levando consigo uma carta de intenções e boa-vontade em relação aos esforços de guerra da Ordem da Verdade, era um passageiro.

Além da capitã, o Tonel levava seis marinheiras e uma responsável pela cozinha e mantimentos, um imediato e um oficial de carga. Mesmo com os cinco novos integrantes, estava mantida a maioria feminina que garantiria boa sorte à viagem, como manda a crença da Marinha Mercante do Reino de Ghan. Era final de tarde, momento de deixar Glavis.

****

Em seu primeiro dia no mar Mark se revelaria, entre cordas enroladas, nós desfeitos e um enjoo interminável, um péssimo marinheiro. Exatamente o contrário de Zippack, cujas tarefas de auxiliar na cozinha garantiam à tripulação as melhores refeições em muito tempo, para desagrado de Ziona, que supervisionava com zelo o espaço exíguo que antes era apenas seu. Navegar era muito mais simples do que voar, raciocinava ele. Dedalus tratava com o imediato e a capitã a respeito de métodos de orientação pelas estrelas, enquanto Czyran tentava se aproximar de Anders, um passageiro arredio e de ar doentio, responsável pela primeira parada do Tonel, em Ilhas Aras.

Dois botes deixaram o Tonel naquele final de tarde em sua direção. Levavam Anders, Czyran, Mark, Dedalus, o imediato London e a marinheira Amanethes, além de toda a bagagem do passageiro. As Ilhas Aras eram um bastião de independência, violência e morte situada no calcanhar da Península do Escorpião. Com suas praias pedregosas e montanhas permanentemente cobertas de neve, seria um destino pouco convidativo mesmo que nela não habitassem os Jaekels, uma população primitiva e conhecida por idolatrar deuses-animais e realizar modificações nos próprios corpos utilizando Numenera. Anders pretendia realizar observações desse grupo, mas as pequenas gaiolas presentes no acampamento montado em visitas anteriores diziam que sua intervenção poderia ser mais ativa do que se permitia revelar.

Foi deixado ali sob auspícios de boa sorte.

Zippack, tendo preferido a segurança do Tonel, teve uma experiência peculiar. Já percebera que seus pertences haviam sido objeto da curiosidade alheia, e durante o dia, sozinho na cozinha, sentiu como se alguém lhe observasse e fizesse companhia. Até então, desconfiava de algum truque da insatisfeita Ziona. Naquele final de tarde, viu a capitã Akelle conversando com uma pessoa. Suas feições não permitiam dizer se era homem ou mulher. Quando questionada, Akelle estranhou a abordagem, pois não conversara com ninguém e nem havia no Tonel ninguém que correspondesse à descrição de Zippack. Intrigado, vasculhou a embarcação tanto quanto pode, nada encontrando. Quando seus companheiros voltaram, não conseguiu relatar o ocorrido. Sentia que algo estranho havia se passado, mas não lembrava o que era.

****

Os dias seguintes foram tranquilos. O Tonel avançava veloz, ultrapassando Rarrow e se aproximando do estreito entre as Ilhas da Última Migração e o continente. Mark dava lições de espada para Amanethes. A marinheira pretendia deixar a Marinha Mercante de Ghan e retornar a sua família, em Keford, em conflito com um nobre de Navarene que reclamava o direito sobre a Floresta Oeste. London, enquanto isso, entretinha a tripulação com histórias a respeito da Pedra Sorridente, um artefato capaz de trazer paz a pessoas e nações. Segundo ele, a pedra era levada ao norte por uma embarcação da Esquadra Vermelha quando foi afundada por gaianos que não desejavam a conciliação com os Nove Reinos.

A menção veio junto com o aviso de que uma armada se postava no caminho do Tonel. Akelle buscou tranquilizar a tripulação. A Esquadra Vermelha era formada por exploradores dos oceanos e estudiosos, e certamente estaria realizando algum tipo de pesquisa na região. Pirataria não era algo a se temer deles. Foi então que um submergível se postou junto ao Tonel. A escotilha, feita de material semelhante à pedra coberta de corais, se abriu e dela um homem solicitou que seu ingresso na embarcação fosse facultado.

O capitão Pierce dirigia-se somente à oficial de mesma patente, e juntos retiraram-se ao aposento de Akelle. Neste momento, era possível ver a Esquadra Vermelha abordando outras embarcações rumando ao norte. Aproveitando-se da distração proporcionada por aquele evento inesperado, e pelo emanador sonoro trazido pelo imediato de Pierce - o dispositivo enchia o convés com sons retirados do fundo do mar -, Zippack discretamente dirigiu-se ao compartimento de carga do Tonel. A sensação de uma presença o perturbava, e este era o único local que ainda não vasculhara com cuidado.

Ali embaixo, sobre duas sacas de grãos alinhadas como que para servirem de cama, ele encontrou um estranho objeto.

Àquela altura, Pierce e o imediato já estavam de volta ao submergível e a capitã Akelle explicava à tripulação o motivo de subida a bordo. A Esquadra Vermelha procurava algo em embarcações saídas de Glavis. Não diziam do que se tratava, mas parecia algo portátil, pois até mesmo gavetas foram vasculhadas. Contudo, o Tonel era uma embarcação amiga, e sua passagem foi admitida depois de uma visita protocolar.

Czyran, Mark, Dedalus e Zippack desconfiavam que a Esquadra Vermelha buscava o objeto encontrado pelo último. Tratava-se de uma espécie de óculos, com visor polido e hastes um pouco longas demais. Mais estranho eram os apêndices que se projetavam da parte superior do visor e tinham nas pontas pequenos orifícios de sucção, como se feitos para serem presos em diversas partes da cabeça do usuário e emitirem pequenas descargas elétricas.

E a viagem ainda estava na metade.

Re:Numenera - The Wonder Weird
« Resposta #12 Online: Junho 18, 2015, 11:05:40 am »
Capítulo 10 – Os Trabalhadores do Mar dos Segredos (Parte Dois)

Dedalus ajustava o dispositivo à cabeça com alguma dificuldade. Ele era ligeiramente maior do que o adequado a um rosto humano. Já os eletrodos, um arbusto de fios eletrificados partindo do alto do visor, pareciam uma adição posterior à peça. Seu posicionamento adequado contava com a ajuda de Czyran, o segundo mais capaz na compreensão da Numenera. Mark e Zippack apenas observavam enquanto os arranjos para o teste eram feitos, todos apertados no pequeno cômodo que servia ao nobre.

O dispositivo tinha função semelhante à do registrador sonoro trazido a bordo do Tonel pelo imediato do capitão Pierce, ainda que mais complexo. Suas lentes eram capazes de registrar, por alguns minutos, tudo aquilo para que seu usuário olhasse, com imagens e sons podendo ser consultados posteriormente. Utilizado com os eletrodos corretamente posicionados, incutia memórias vívidas dos fatos gravados, permitindo que conversas fossem reproduzidas palavra a palavra e imagens recordadas em cada detalhe. Um recurso extraordinário, mas de efeito temporário.

A discussão que se seguiu tratou da maneria como o dispositivo foi encontrado, seu propósito e verdadeiro proprietário. Tomaria a madrugada inteira, não fosse o grito de surpresa e admiração que a interrompeu.

– Rhog!

****

Os cerca de oitenta pés do Tonel significavam pouco mais de vinte metros. E o rhog, nadando ao seu lado, era tão grande quanto. Toda a tripulação estava à murada, observando a criatura que agitava enormes quantidades de água sem que nenhum ruído fosse ouvido. O prodígio era possível graças às vinhas que cresciam no dorso do rhog, um material raro e valioso. Foi Amanethes, marinheira a quem Mark vinha dando aulas de esgrima, a primeira a manifestar o desejo de descer. Com a ajuda de seu instrutor, ela arranjava cordas e iniciava os preparativos. A perspectiva de ganhos com as vinhas lhe davam a coragem necessária para correr tamanho risco.

Zippack e Dedalus, contudo, tinham planos próprios.

O primeiro carregava consigo há semanas um autômato de combate de porte médio. Pouco menor do que uma mulher adulta, tinha nos lugar de mãos serras circulares afiadíssimas. Em combinação com uma manopla manipuladora de metais, esta saída da sacola de Dedalus, seria possível alcançar, remover e trazer a bordo um ramo das preciosas vinhas. E assim foi feito. Amanethes, de quem partira a ideia de descer até o dorso do rhog, foi impedida pela capitã Akelle. O animal era dócil, mas poderia reagir a um novo ferimento, mesmo que superficial. Descer significaria colocar em risco o Tonel, a viagem e toda a tripulação.

– Não haveria riscos se eu recebe por mais do que o transporte de grãos.

Silêncio no convés. Pela primeira vez, em alto e bom som, a autoridade da capitã era afrontada e os receios financeiros da tripulação revelados. Akelle repetiu sua ordem, restabelecendo a autoridade, mas foi a ação de Dedalus que encerrou a questão, ao cortar as cordas que sustentariam a marinheira.

****

A necessidade de shins para retornar a Keford foi o que provocou a insubordinação de Amanethes. Sentia-se traída pela passividade de Mark diante de Zippack e Dedalus, e ainda estava abalada quando a Czyran a abordou. Não fazia sentido partir de Glavis para uma viagem sem paradas até Qi durante um período de intensa movimentação comercial. O Tonel poderia levar Numenera, armas, soldados. Em lugar disso, transportava grãos e tripulantes não treinados pagando metade ou menos do custo da viagem. Ao que parecia, suas preocupações eram compartilhadas por toda tripulação.

****

– Dedalus, eu gostaria de agradecer pelo que você fez.
– Foi necessário.
– Perigoso, mas necessário.
– Ela não desceria sem a corda. Era a maneira mais rápida de acabar com aquilo.
– Obrigada.
– Não foi nada.
– Eu vi você tratando com London a respeito de alguns mapas.
– Sim. Identificação de constelações e formas de orientação.
– Eu gostaria de falar a respeito.
– Ótimo. Vou reunir meus livros e mais tarde podemos ver as estrelas.

Só depois Dedalus percebeu o que disse. É só então deu-se conta de que Akelle sorriu.

****

– Lorde Eczoz, o senhor teria um instante?
– Pois não.
– Sou o imediato. London. Não sei se o senhor lembra.
– É claro.
– Eu gostaria de fazer um pedido. Uma oferta.
– Pois não.
– O senhor parece uma pessoa educada. Alguém de posses.
– Sim.
– E já deve estar ciente do descontentamento da tripulação.
– Parece que temem receber um pagamento reduzido por esta viagem.
– Sim. É verdade.
– Posso ajudar de algum modo?
– Bem, eu gosto de colecionar histórias. Coisas que eu ouço e que me contam. E algumas dessas histórias são dos mares do norte. Veja, a tripulação acredita que a rota entre Glavis e Qi é a mais lucrativa, mas estão errados.
– E qual seria a sua ideia?
– Existem certos lugares no norte a respeito dos quais se contam muitas histórias. Lugares que podem ser explorados e dos quais lucros podem ser obtidos. Mas é preciso investir.
– E você espera que eu faça isso?
– Peço apenas que leia os meus registros. Se eles forem interessantes aos seus olhos, talvez o senhor possa se juntar a mim numa conversa com a capitã. Quem sabe convencê-la a respeito da possibilidade.
– Vou ler com o maior prazer e atenção.
– Muito obrigado. Muito, muito obrigado.

Os textos de London tratam da Praia, na costa além do Campo sob as Nuvens de Cristal, um paraíso de areias brancas e árvores coloridas, na costa do Mar Corare, onde ninguém nunca se estabeleceu. Seria por causa dos Taru-Taru, uma raça de visitantes que habita uma embarcação submersa ancestral. Eles caçariam escravos com tecnologia misteriosa. Talvez estejam construindo um exército ou tentando reparar sua nave. A Praia é considerada um lugar de má sorte, e marinheiros a evitam não só pelos desaparecimentos, mas pelos aparecimentos também. Luzes noturnas planariam sobre as águas próximos de uma grande estátua com três faces.

Czyran leu tudo aquilo com atenção, organizou referências em seu tempo livre e concordou em falar com a capitã Akelle, assim que a ocasião se apresentasse.

****
Os quatro estavam nos porões do Tonel. Ali, sacas de grãos tomavam praticamente todo o espaço, com estreitos corredores junto ao casco e numa passagem central. Não mais do que o estritamente necessário ao escoamento da carga e aos eventuais reparos da embarcação. Já haviam estado ali antes, mas agora traziam consigo o visor encontrado dois dias antes. Dedalus o usava.

– Oi.

Era difícil saber se aquela pessoa era um homem ou uma mulher. Era jovem e se vestia com roupas puídas. Sua presença ali, no mesmo local onde Zippack encontrara o visor, causava espanto. Estava sentado sobre sacas de grãos, com as pernas envolvidas por braços magros.

– Quem é você? Como entrou aqui?
– Eu embarquei em Glavis.
– E como se escondeu todos esses dias?
– Eu não me escondi. Já conheci todo o navio. Falei com todo mundo. Só que ninguém lembra.
– Ninguém lembra?
– É. Já faz tempo que é assim.
– Esse dispositivo é seu?
– Sim, o Visualizador. Eu deixei aqui. Tem um homem que vem aqui de vez em quando. Eu queria conversar. Deixei para ele encontrar e lembrar de mim. Queria conversar.
– Ela está falando de Stolinson, o responsável pela carga.
– Ela ou ele?
– Eu não sei. Quando eu nasci, era menino, ou menina. Mas daí decidi ser menina, ou menino. Não lembro direito. Eu troquei muitas vezes. Até que chegou uma hora que eu não sabia mais quem eu era. Então, as pessoas também não sabiam. Elas começaram a me ignorar, e logo depois simplesmente esqueciam que tinha falado comigo. Eu me chamo Glifo.
– Você já falou com algum de nós?
– Sim, com todos. Mark me contou do exército, em Thameor, e da sua briga com o capitão. Zippack me disse como conseguiu seu navio voador. Czyran contou dos problemas que seu braço causa. E Dedalus falou do homem das estrelas que ele espera reencontrar.
– E nós vamos esquecer você depois dessa conversa?
– Sim. Menos o Dedalus, que está usando o Visualizador. Pelo menos por um tempo.
– Ele é seu?
– Sim. Preciso dele, se não as pessoas esquecem. Por isso quero ir para Qi.
– O que quer lá?
– Ser como vocês. Normal. Que as pessoas tenham saibam quem eu sou. Me disseram que Qi é muito grande. Alguém lá talvez consiga me ajudar.
– Nós podemos ajudar.
– Vocês vão devolver?
– Sim. No final da viagem.
– Eu preciso dele.
– Nós vamos devolver.
– Está bem.

Um passageiro que fazia o que bem entendesse, capaz de despertar conversas tão pessoais, do tipo que se tem apenas consigo mesmo, em voz alta, e sem que ninguém pudesse lembrar de sua presença. Aquilo perturbava os quatro, mas ao menos por enquanto, não sabiam o que fazer a respeito, se é que algo houvesse a fazer. Como precaução, reviram as imagens do Visualizador. Logo após deixar os porões, já nenhum lembrava da conversa com Glifo, mas o registro permitia que ao menos tivessem alguma compreensão do que se dera ali. Czyran, como prevenção adicional, passara a anotar cada fato relevante do dia, esperando que um eventual encontro inesperado acabasse registrado em um pedaço de papel ou pergaminho.

****

Era a segunda visita de Dedalus à cabine da capitã. Na primeira ocasião, ela se mostrara uma figura mais amena, distante da exigência de autoridade do convés. Akelle parecia ressentida por ter de esconder dos subordinados uma informação que espantaria seus temores pecuniários e desanuviaria o ambiente.  Mesmo na segunda conversa, Dedalus não conseguiu descobrir a que se referia a capitã. Suspeitava de que fosse o Glifo, ou ainda aquilo que a Esquadra Vermelha procurou em vão.

Naquele segundo encontro, Akelle tinha menos a dizer. Preferia satisfazer necessidades que também eram de Dedalus.

****

Batidas à porta. Czyran reconheceu o fio de voz de Glifo.

– Eu peguei.
– O que você quer?

Czyran guardava o visualizador consigo. Usava-o quando abriu a porta.

– Eu peguei.

Glifo tinha nas mãos um pano enrolado. O estendia na direção de Czyran.

– Deve ser importante. Estava escondido.
– O que é isso?
– A capitã guardava na cabine dela. Ela estava com seu amigo, Dedalus. Peguei enquanto estavam distraídos.
– Chame os outros. Peça que vão ao porão. Deve estar vazio agora. Logo encontro todos lá.

Estendido sobre a cama, o pano revelou-se uma pintura. Um campo de batalha. Nada indicava um confronto histórico. Havia algo de fantasia e delírio na imagem. Violência e crueldade pareciam se desprender daquelas tintas.

Depois de Czyran esconder a pintura entre os objetos de sua cabine, e Glifo despertar os outros três no convés, encontraram-se no porão do Tonel.

****

Lá embaixo, os ânimos pouco refletiam a tranquilidade da madrugada que o Tonel atravessava, a apenas um dia de Qi. Czyran considerava absurdo o que Glifo havia feito. Zippack sugerira claramente que deveriam se livrar da passageira da qual ninguém lembraria. Para Mark, o roubo da pintura era errado, mas não justificava a exaltação do primeiro. Dedalus, algo distraído, era o mais calmo deles. Pensava em Akelle.

– Eu preciso do Visualizador. Ele é meu. E o pano que peguei da capitã, deve ser valioso. Estava trancado.
– O que você fez foi roubar.
– Troquem comigo. Eu não vou mais fazer isso.
– Você poderia simplesmente ter pego o Visualizador.
– Eu não faço isso. Só quando preciso. Você foi bom comigo, Czyran. Eu queria dar algo em troca.

O melhor a fazer seria devolver aquilo antes que a capitã desse falta. Como explicar que a pintura havia sido pega por alguém cuja lembrança não se retinha? Decidido, Czyran atravessou com Glifo a escotilha para o convés, apenas para darem de frente com London, o responsável daquela madrugada.

– O que essa menina faz aqui?

Ao levantar a voz, o imediato despertou todos que dormiam no convés. Czyran tentou, mas a situação era complexa demais, exigia reflexão demais. Cercado pelo alarido dos tripulantes do Tonel diante de uma clandestina, nada conseguiria justificar. Glifo, contudo, objeto do interesse de tantos, revelava uma insuspeita aptidão para ser o centro das atenções, fazendo o necessário para assim permanecer, nem que, para tanto, fosse necessário revelar todos os seus passos recentes e o envolvimento de Czyran, Dedadus, Mark e Zippack neles. A ingenuidade daquele breve relato colocou a tripulação em estado de alerta, e trouxe a capitã Akelle ao convés.

– Quem é esse menino?

A pergunta não fazia sentido, as respostas obtidas dela também não. Ainda assim, um temor profundo transtornou a capitã, que retornou a passos largos até sua cabine. O que procurava lá fora escondido por Czyran. Ao retornar, Akelle pouco se importava com a presença do clandestino. O sumiço do bem mais valioso transportado pelo Tonel era sua única preocupação. Czyran se adiantou, confessando a posse da pintura. Pensa que devolvê-la será o bastante para abrandar o espírito por tempo o bastante até que a situação se esclareça.

– Crianças jamais se tornarão adultos.

A frase sai da boca de Czyran sem que ele tenha controle disso. A mão que estendia a pintura para Akelle se enrijeceu. Aos poucos, imagens de violência tomaram sua mente.

– Irmãos e irmãs aprenderão a matar.

Akelle também foi submetida ao apelo daquelas palavras. As tintas da pintura se misturavam aos seus pensamentos.

– Amigos farão amigos em pedaços.

A voz da tripulação juntou-se ao coro. Não era um cântico de guerra, mas uma prece de mortos. Zippack era um deles.

– Aqueles que se amam serão separados e a morte chegará cedo demais.

Mark e Dedalus foram poupados. London buscava ajudar Akelle a recobrar a razão. Amanethes sacudia uma companheira que usava os dedos para rasgar os lábios.

– Feito escravos, jovens obrigados a marchar.

Após tomar a pintura das mãos rijas de Czyran, Mark a levou de volta ao cofre na cabine da capitã. Fechou-o com um cadeado.

– E aqueles que ficarem aprenderão a odiar.

Czyran aos poucos era submetido pelas imagens de massacres. Zippack fazia pouco melhor por si, auxiliado pelos tapas e gritos de Dedalus.

– Os que tem poder mentirão mais. Os que não tem, obedecerão mais.

Mark tinha nos punhos a solução. Golpeava para que perdessem os sentidos e abandonasse aquele transe desperto. Entra a tripulação, os que tinham facas mutilavam-se.

– A guerra é a doutrina que se espalha.

Zippack conseguiu contornar a sujeição à violência das imagens que o assaltavam. Czyran, sem ter consciência disso, levava à garganta a lâmina que carregava consigo.

– Desonesta, aniquiladora e cruel.

Mark desacordou cinco tripulantes. London não teve a mesma sorte auxiliando Akelle, morta em seus braços, com os olhos arrancados do crânio. Dedalus olhava para um desorientado Czyran, ainda a se recobrar. Zippack ouvia o último suspiro de uma marinheira.

– Na guerra, Propaganda triunfa.

Re:Numenera - The Wonder Weird
« Resposta #13 Online: Julho 13, 2015, 07:29:24 pm »
Capítulo 11: O Futuro a partir de Qi

O Tonel avançava ao sabor da consternação. A capitã Akelle, a marinheira Mia e Stolinson, responsável pela carga, estavam mortos. Sob o efeito daquela pintura insidiosa, mutilaram-se com lâminas e as mãos nuas. Jaziam no convés, sob sacos grosseiros que antes levavam grãos. O Glifo já era a lembrança de ninguém além de Mark, Zippack, Czyran e Dedalus. De algum modo, por conta das imagens que os tomou de assalto, sabiam todos ser a pintura que Akelle trouxera ao Tonel a responsável por aquilo. A tragédia apenas ocorrera a partir da intervenção dos quatro. Mas não estivessem ali, o horror talvez tivesse vitimado a todos. Essa tripulação dividida cabia a London manter estável o bastante para aportar em Qi.

Entre os pertences pessoais de Akelle pouco havia para descobrir a respeito de Propaganda, assim era chamada a pintura. As anotações da capitã limitavam-se a mencionar a necessidade de se reportar à Guilda dos Mercadores de Qi, um procedimento incomum sendo o cog parte da Marinha Mercante de Ghan.

****

Novansko subiu ao Tonel no final da tarde. Avaliou a carga e os mortos. Ambos foram desembarcados, mas a tripulação permaneceria retida até a manhã seguinte. London, a quem caberia as justificativas, partiu com ele. As explicações foram acordadas entre toda a tripulação. Mia e Stolinson teriam se amotinado contra a capitã por conta do baixo pagamento pelo transporte de grãos. Acabaram os três feridos além dos recursos que o Tonel levava. Nada seria dito a respeito de Propaganda, mas dela muito se falara. Havia aqueles que acreditavam que a peça deveria ser destruída, colocada sob a responsabilidade da Marinha Mercante de Ghan ou entregue a quem contratou seu transporte. A última opção acabou escolhida. Era a única da três maneiras que daria acesso a recursos para pagar pelos serviços da tripulação e por seu silêncio.

Do alto do Tonel, Dedalus fez com que um bilhete fosse entregue por um moleque à Guilda dos Mercadores de Qi. Foi ele também o ultimo a falar com Glifo, ainda que dessa conversa não fosse lembrar. Devolveu-lhe o Visor de Memórias e recomendou que se dirigisse ao encontro dos Pais Pretéritos.

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Até o meio da manhã seguinte a notícia da morte de parte da tripulação do Tonel já se espalhara pelo porto. Talvez por isso, nenhum bilhete com resposta da Guilda chegara. Decididos a completar o acordo de Akelle, ainda que com objetivos próprios, os quatro saíram às ruas. Em vários locais anunciava-se a plenos pulmões a 1a Regata Aérea de Qi. Sobrevoadores de diversos tamanhos, muitos deles semelhantes ao Fus-K, levavam e traziam a população da Cidade no Alto, a porção mais rica de Qi, onde os abastados viviam, muitos sem jamais tocar o chão. No solo, trípodes biomecânicos, os zhevs, garantiam a segurança das áreas mais movimentadas, inundadas por pessoas de todo o continente e de locais muito mais distantes também.

A sede da Liga dos Mercadores de Qi era um enorme balcão de negócios, onde a burocracia da maior parte das transações comerciais dos Nove Reinos era registrada com litros de tinta e quantidades maciças de papiro. Infelizmente, apenas uma linha fora dedicada ao Tonel. Sua carga era uma doação da Liga à Catedral da Forma. Não havia, segundo o responsável pelo livro de apontamentos, necessidade maior do que essa. A Marinha Mercante de Ghan detinha autonomia sobre os detalhes de suas negociações, a respeito das quais a Guilda não interferia.

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A Catedral da Forma era uma construção que se parecia com todas, combinando vitrais suntuosos a paredes de barro, rocha grosseira resultando em zigurates cuidadosamente alinhados, como se todas as possibilidades pudessem ser indefinidamente acrescentadas a uma pedra fundamental. Na entrada, uma criatura solicitava o nome daqueles que adentravam à nave. Seus braços curtos estavam presos a uma escrivaninha, sobre a qual repousava um interminável livro de registros. As pernas eram debilitadas e os músculos escassos acomodavam-se sob a pele acinzentada. Sobre a cabeça piava ocasionalmente um pequeno pássaro de metal, engaiolado e comportando-se como algo vivo.

Lá dentro, quase todos eram mutantes, a maioria com marcas muito evidentes disso. Czyran, que já dispensara a luva usada para esconder sua condição, foi abordado por Hristo. Vestia-se com os trajes simples, os preferidos por aqueles que adoravam Nomothet. O Deus da Carne era vividamente representado numa escultura cuja intenção era a mesma da Catedral. Uma pessoa destinada à transformação a partir de um princípio original e impermanente.

Torsos, membros, olhos e órgãos internos misteriosamente preservados estavam expostos na nave, todos apresentando algum grau de mutação. Uma das criaturas que os recebeu à porta fora seccionada numa série de momentos, como que para a revelação dos vários estágios de sua feitura. Eram chamados de Escrevinhadores.

Hristo, cuja metade do rosto era cinzenta e desprovida de pelos, com um dos olhos anormalmente alongado, nada sabia a respeito de Akelle. Ele foi responsável por receber a doação trazida pelo Tonel, uma generosidade da Guilda dos Mercadores de Qi que contou com o auxílio de um feitor chamado Dimas. Hristo lamentou a morte da capitã, da qual ouviu falar superficialmente, mas nada mais tinha a acrescentar.

Antes de despedir-se, reforçou o convite a Czyran para uma nova visita. Então, dirigiu-se até um nobre cuja voz exaltada perturbava o ambiente.

****

De volta à Liga dos Mercadores, agora sabendo quem foi o provável receptor do bilhete enviado na noite anterior, um encontro foi marcado. Dimas não pôde falar-lhes naquele momento, mas seria aguardado à noite na taverna onde estão hospedados, na região do porto.

Sentaram-se separados. Mark e Zippack, Dedalus e Czyran. Supunham que as roupas deste último, denunciando sua condição de nobreza no salão daquela espelunca à beira da Baía da Lua, atrairia Dimas. Apenas Zippack o vira, de relance, na segunda visita à Liga. Passados alguns minutos após o horário marcado para o encontro, uma confusão entre um jovem e o dono do lugar teve início. – Ela está morta, você não sabia? Quer falar com uma morta, garoto? – Dimas não viera, mas mandara um recado, entregue por um rapaz temendo uma surra ou coisa pior. Esperava que a entrega se realizasse mais tarde, quando a promessa à capitã seria cumprida. O representante de Akelle deveria comparecer sozinho.

****

Zippack levava Propaganda em um tubo para acomodar mapas. O ponto de encontro ficava em meio a um labirinto de ruelas estreitas, distante o suficiente da região central para evitar o patrulhamento dos zhevs. Quem o esperava se deixou ver em meio às sombras. Por baixo da capa, a empunhadura reluzente do que poderia ser uma espada ou faca de lâmina larga. Trocaram breves palavras, demonstrando a pouca disposição de ambos para surpresas e ardis. Após ter conferida a qualidade do pano utilizado na tela, Propaganda foi levada dali.

A pequena caixa que Zippack recebeu em troca cabia na palma da mão. Seus símbolos, segundo Dedalus, eram termos como destino, encontro e guia. Se parecia com uma bússola, mas apontava não ao norte, mas a noroeste. Czyran lembrou aos demais as histórias anotadas por London a respeito da Pedra Sorridente, a Esquadra Vermelha, tesouros e seres de outros mundos habitando as profundezas do Mar Corare.

Era arriscado demais para que pudessem resistir.

****

Havia muito o que fazer ao longo dos dias seguintes, quando Qi se preparava para a sua 1a Regata Aérea.

O primeiro e mais importante passo foi relatar a London o resultado da negociação envolvendo Propaganda. O imediato ainda encontrava-se abalado pela perda de Akelle, e não seria diferente para o restante da tripulação. A Marinha Mercante de Ghan havia pago um valor modesto a todos pela viagem de Glavis até Qi e descomissionara o Tonel. A possibilidade de navegar aos mares do norte animava o velho marinheiro, e quem sabe fizesse o mesmo pelos demais. A inciativa era arriscada, e precisariam de pelos menos 10 mil shins para uma embarcação e mantimentos.

Stephen Dedalus concentrou-se no contato com a Ordem da Verdade. Esperava ser recebido por Pai Onald, de quem Pai Loig falara, ainda em Glavis. Responsável pelo contato com pessoas que prestavam serviços aos Pais Pretéritos, mas não eram membros, Pai Onald fazia o possível para receber Dedalus com a atenção que seu tempo escasso permitia. Aparentemente, uma grande surpresa aguardava a população de Qi ao final da 1a Regata Aérea, e por Pai Onald passavam os arranjos necessários à misteriosa revelação. O seu interesse na tragédia ocorrida em Glavis fez com que Dedalus recomendasse a Czyran que evitasse a Ordem. Poderiam ser relacionados aos acontecimentos, algo de que certamente não precisavam.

Impedido pela prudência de realizar seu propósito em Qi, Czyran Eczoz imaginava dividir sua atenção entre a nobreza local, a quem a boa vontade dos nobres de Glavis em relação à guerra dos Pais Pretéritos poderia interessar, e a Catedral da Forma, onde talvez aprendesse mais a respeito de mutações. Para sua surpresa, nobres e mutantes tinham ali um inesperado espaço de congregação discreta, uma informação que aos poucos Hristo lhe cedeu. Essa foi a razão da doação de grãos, pagamento por uma entrega muito especial realizada a uma nobre chamada Vita Severn.

Mark tinha a expectativa de vender sua habilidade de combate da maneira mais lucrativa possível. Descobriu, contudo, que ela seria necessária para a preservação da própria cabeça, posta a prêmio. Membros do exército de Thaemor já há algum tempo buscavam trabalho como mercenários em Qi. Trouxeram consigo a notícia de que um certo desertor que apunhalou seu capitão valia 300 shins, pouco importando se vivo ou morto. Gerard fez a revelação ante a espada de Mark, pouco depois de uma emboscada frustrada que deixou dois mortos e por pouco não envolveu um zhev. O nobre local que pagaria o prêmio chamava-se Vilerm Akefie.

A visão dos sobrevoadores enchia Zippack Ranzz de esperança. Quem sabe ali conseguiria um substituto à altura do Fus-K e faria pelos ares a viagem ao norte. A aproximação da 1a Regata Aérea lhe parecia uma boa oportunidade para tanto. Nos bastidores, repleto de nobres, capitães aéreos e todo o tipo de especialistas em Numenera, avistou um rosto conhecido. Choen Mohsen, líder do Conselho de Nobres de Ishlav e autora de uma oferta pelo Fus-K, estava em Qi. Lamentou saber que o sobrevoador de Zippack fora destruído. Com algumas modificações, ele seria um concorrente digno na regata. Contudo, seu antigo condutor representaria uma adição interessante à equipe que Mohsen estava formando.

Já há alguns dias, conforme os mais importantes convidados para a regata chegavam à cidade, o Salão Policromático se convertera no local favorito daqueles que dispunham dos recursos para desfrutar de arte e de boas conversas trezentos metros acima do solo. Czyran chegara ali pela força do próprio sobrenome, trazendo Mark a tiracolo. Zippack era convidado de Choen Mohsen, enquanto Dedalus contara com a gentileza de Pai Onald. Do alto do Salão Policromático seria dada, dali a poucos dias, a largada para 1a Regata Aérea, a qual, após vencidos vários obstáculos que exigiriam grande habilidade das equipes de cada sobrevoador, se encerraria sobre o Durkhal, a sede da Ordem da Verdade, uma verdadeira cidadela dentro de Qi. No momento, o Salão era objeto de uma gloriosa exposição organizada por Vita Severn. Arte e Numenera tinha entre suas peças a representação viva do Deus da Carne, cortesia da Catedral da Forma. A obra principal, um quadro finalizado recentemente por Jacopo de Glavis, criação definitiva do mestre antes de seu suicídio, apenas seria revelada no dia da regata. Mark, Zippack, Czyran e Dedalus sabiam exatamente o que era e o que poderia fazer.

Flanando pelo salão, cada qual com seu quinhão de graça social, foi possível descobrir que Vilerm Akefie e Vita Severn eram parceiros, sendo que o primeiro possuía algum grau e ascendência sobre a segunda. Além disso, a presença de uma obra “glorificando” a Catedral da Forma contrariava a Ordem da Verdade, que via o culto como uma aberração e deturpação da Numenera. Severn era considerada corajosa e imprudente em igual medida por seus convidados. A Ordem, por sua vez, parecia cada vez mais distante de seus nobres financiadores, que sentiam-se como meros baús de shins prontos a serem espoliados em favor de uma guerra que ninguém desejava e, pior, aos poucos aumentava o poderia militar de Navarene, irmão e rival ao norte de Draolis.

Naquela mesma noite, um acordo complexo foi costurado. E ele começou a ser feito a partir de uma boa dose de conflito.

Vilerm Akefie era o interlocutor e líder informal de um grupo de nobres que buscava alternativas ao conflito aberto com os gaianos, dos quais pouco se sabia de concreto além da antipatia genocida que despertavam no Pai Âmbar, Durranet VI, líder da Ordem da Verdade. Foi por iniciativa de Akefie que A Pedra Sorridente foi embarcada há um ano em um navio comandado pela Esquadra Vermelha. Seu destino era Theosis, de onde deveria seguir viagem. Ela levava uma mensagem de paz e boa vontade em um momento muito distinto do atual. Por razões desconhecidas, nunca chegou ao destino e sua tripulação jamais foi encontrada. Acreditava-se que o naufrágio tivesse ocorrido nos arredores das Ilhas Ashuri. Destino Sorridente foi criado para encontrar o artefato, mas sua precisão jamais foi confirmada. Além disso, Akefie desconfiava que a Esquadra Vermelha teria interesses particulares e nebulosos na viagem, tendo o naufrágio sido causado por eles. Uma expedição de resgate não poderia ter sua participação. Contudo, isso não dava direito de Vita Severn negociar Destino Sorridente sem o seu conhecimento.

Vita Severn, por sua vez, defendia que Propaganda era a peça mais importante de sua exposição, e apenas uma substituição à altura faria com que desistisse de exibi-la. Não havendo como confirmar com segurança o relato de Mark, Zippack, Czyran e Dedalus a respeito do perigo que ela representava, os quatro acenaram com uma solução inesperada. Uma combinação de arte e Numenera que ninguém iria esquecer. Ou melhor, lembrar.

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Com a recompensa por sua cabeça retirada por Vilerm Akefie, Mark caminhou por toda a Qi, na vã esperança de ser abordado pelo Glifo e disso se recordar. Dedalus buscou fazer o mesmo, mas junto da Ordem da Verdade. Infelizmente, com a aproximação da regata, os Pais Pretéritos tornaram-se mais restritivos em relação à circulação no Durkhal. Zippack estava mais interessado no trabalho no sobrevoador de Mohsen, e tinha certeza de que o Glifo o evitaria, se pudesse. Czyran foi quem teve mais sorte, sendo encontrado mais do que encontrando-o/a.

– Eu ajudo você, Czyran.

Glifo precisou de poucas palavras para explicar que permanecera por perto a maior parte do tempo.

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De posse do Visor de Memórias, era um problema que apenas cabia a Vita Severn decidir como o Glifo se tornaria o centro das atenções de toda a nobreza de Qi e dos Nove Reinos, papel para o qual ele/a demonstrava ansiedade. Propaganda foi queimada sem jamais ser contemplada novamente. Com o suicídio de Jacopo, esperava-se que isso desse fim à possibilidade de morte em massa que a tela representava. Os esforços dos últimos dias bastaram para que fosse conquistada a confiança de Vilerm Akefie, mas ainda não havia recursos para financiar o substituto do Tonel. A maior parte da nobreza de Qi preferia a extorsão pontual dos Pais Pretéritos ao desafio direto à Ordem. Quem dispunha dos shins necessários era Choen Mohsen. Mas ela apenas cederia os valores em troca da prestigiosa vitória na 1a Regata Aérea de Qi.

Felizmente, Zippack e Dedalus, além de mais alguns tripulantes, foram capazes do feito. Os dois garantiam no ar os recursos para a partida que Czyran e Mark preparavam na orla. Foi dali, dos céus e da costa do Mar dos Segredos, que os quatro contemplaram aquilo que os Pais Pretéritos preparavam para assombrar os Nove Reinos. Uma gigantesca embarcação partiu do Durkhal para lançar sobre Qi sua sombra, movida pela faiscante energia dourada que os quatro já conheciam e associavam às esferas que tanta tragédia causaram. Era O Doutrinador, a arma definitiva da Ordem da Verdade, cuja conclusão significaria a destruição dos gaianos e de tudo mais que ficasse em seu caminho.
« Última modificação: Julho 20, 2015, 06:21:42 pm por Hentges »