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Numenera - The Wonder Weird

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Hentges:
Numenera é um cenário de RPG. Nele, uma civilização em estágio medieval de evolução existe em um planeta Terra bilhões de anos no futuro. Pelo menos oito civilizações nasceram e desapareceram, e sobre os resquícios de sua existência vivem os seres humanos do presente, constantemente se deparando com artefatos tecnológicos ultramodernos que simplesmente não são capazes de compreender ou distinguir de magia: a Numenera.

Aqui eu irei narrar as histórias de um grupo de personagens nesse cenário de estranhas maravilhas.

Personagens:
Czyran Eczos, um Nano Mutante que Subtrai Energia
Mark, um Glaive Durão que Defende-se com Maestria
Stephen Dedalus, um Jack Inquisitivo que Funde Máquinas à Mente
Zippack Ranzz, um Jack Gracioso que Doma o Relâmpago

Hentges:
Capítulo 1 – A Esfera que veio do Céu

Era madrugada em Itzen quando todos foram despertados pelo estrondo que assustou animais e balançou as casas modestas do vilarejo. O ribombar ainda ecoava quando Mark levantou-se e, já de escudo e espada em punho, saiu porta afora. Cid atrasou-se um instante. Adivinhou que o local do impacto atrairia a atenção de todos, e não gostaria de apresentar-se de maneira inadequada. Investiu um minuto num modesto tecnotruque, deixando impecáveis as roupas que vestia. A mulher que os acompanha seguiu o impulso de Mark, admirando-se ao seu lado com aquele extraordinário objeto inerte no meio da praça.

Haviam chegado no início da noite. Mark vem do norte, onde sua espada e escudo já estiveram a serviço de nobres e exércitos, mas disso ele pouco fala. Cid fala muito mais, sem se importar se é compreendido, guardando o silêncio apenas para escutar o que as máquinas têm a lhe dizer. A jovem que os acompanha ainda não concedeu o direito de fazer saber o seu nome. Seu corpo, com aço e carne competindo por espaço e primazia, evoca os maiores mistérios, tão amplos quanto as lacunas entre suas raras palavras. Rumam para leste. É para lá que as visões guiam Cid e para aonde os outros dois deixam-se arrastar; Mark busca distanciar-se do passado, e a companheira de ambos deseja a promessa implícita de Numenera que toda jornada faz aos aventureiros dispostos aos riscos.

Parar em Itzen significaria o conforto de uma noite longe das margens da estrada. Chegaram ao vilarejo em meio aos últimos acertos para o despacho, na manhã seguinte, dos tributos ao nobre local. Foram bem recebidos pela administradora do depósito de mantimentos, Denniewis, e com alguma desconfiança pelo chefe da guarda. Kellown viu com ressalvas o desejo dos visitantes de se dirigirem à fronteira do reino de Ancuan com o Império de Pytharon, região agitada por conta de um passado recente de dominação. A esta altura, ele já havia esquecido que Cid transformara, por um momento, o ensopado de carne de dossi em um caldo adocicado cujo único sabor era o de canela. Quem não esquecera de nada, pelo contrário, lembrava cada detalhe daquele rosto misterioso e altivo, era Rugglet, que mais cedo revelara à recém-chegada seu desejo de capturar ovos de raster e transformar os animais voadores em montaria treinada.

Mas as desconfianças, o sabor de canela e o curioso convite envolvendo montarias aladas empalideciam diante do que estava bem a sua frente.

No centro da praça, enterrada quase meio metro no solo, havia uma esfera prateada perfeitamente polida. Com cerca de três metros de altura, pelo menos quatro homens seriam necessários para abraçá-la. Sem emendas visíveis, sua superfície reflexiva daria um espelho decente.

A população se divide entre os assustados pela incerteza que envolvia aquela esfera que viera do céu e os curiosos diante do inusitado que dera novo ânimo ao sonolento cotidiano de Itzen. Entre os mais exaltados estava Aylonne, uma anciã que não demorou a declarar ser aquele um presente divino e merecedor de veneração. O fervor religioso contagiou alguns, mas ela acabou recolhida a sua casa antes que pudesse ter tempo para espalhar a palavra. Cid chegou a tratar rapidamente com Aylonne, mas sob falsos pretextos. Ela identificou o farsante que dizia passar-se por um dos veneradores do passado que formam a Ordem da Verdade.

Já pela manhã, quando a rotina de Itzen buscava contornar a estranheza daquela esfera prateada em meio à praça, e após nossa misteriosa protagonista desejar em um tom de voz mais elevado do que educado que a vila toda explodisse, alguns dos moradores reúnem-se para decidir o que fazer a respeito daquilo.

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Capítulo 2 – Uma Cidade sob a Colina

“A Ishlav original foi destruída há cerca de vinte anos, após um grupo de exploradores retornar à cidade levando um estranho dispositivo que diziam ter vindo das estrelas. Quando os Pais Pretéritos na cidade buscaram compreender o que era aquilo, o dispositivo emitiu um poderoso choque de energia, destruindo praticamente tudo em um raio de três quilômetros. Contudo, nenhuma pessoa, animal ou planta foi afetado diretamente. Apenas matéria inanimada sofreu os efeitos. Após o eventos, Ishlav foi reconstruída, e aquele pegos pelo choque de energia contam até hoje como suas feridas cicatrizaram, doenças foram curadas e sua saúde, de um modo geral, melhorou muito.”

Foi mais ou menos assim que Cid contou a tal história. Eu e Mark ouvimos com atenção, mas Kellown e os outros, reunidos para decidir o que fazer da esfera, não deram o mesmo valor. A velha, Ayllone, parecia saber do que Cid falava, mas a desconfiança impediu que dividissem suspeitas quanto à origem da esfera. No fim, Kellown fez prevalecer a autoridade concedida pelo Lorde Wernard Streck: a esfera seria levada à propriedade do Lorde.

Ela foi amarrada e puxada por dois dossi. A força bruta dos bovinos mal deu conta de tirá-la do buraco. Como que por vontade própria, retornou ao ponto onde pousou. Quatro dossi puxando-a não conseguiram resultado melhor.

A tentativa frustrada capitaneada por Kellown incentivou Aylonne: gritava serem desrespeitosas as tentativas de remoção da esfera. Ela estava quase contando a história de Ishlav. Tudo aquilo foi distração o bastante para que Mark e Cid se aproximassem. Tocaram a esfera, e logo ela ergueu-se no ar. Primeiro, a dois metros de altura, e depois, o dobro disso. Ficou lá, pairando, para espanto de alguns e júbilo de outros. Quando chocou-se contra o chão, todas as construções da vila balançaram. Mark saiu do caminho, mas Cid foi atingido de raspão no ombro.

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Demorou mais de uma hora até que Cid se sentisse bem outra vez. No intervalo, Rugglet me procurou. Ele baba feito um dossi quando fala comigo, o que é meio asqueroso. Um criador de brehms teve seu rebanho atacado pela segunda vez em menos de uma semana. Suspeita que os rasters vistos sobrevoando as imediações sejam os responsáveis. Ardonis teme que Lorde Streck puna a ele e toda sua família pela perda dos animais. Explico a situação para Cid e Mark. Eles planejam ir até Ishlav, descobrir mais a respeito da história da cidade. Bobagem. Vamos perder dez dias e só. Até lá, tudo se resolveu por aqui. Kellown já despachou alguém para informar Streck do que acontece e nenhum soldado pode deixar Itzen para ajudar o fazendeiro. Melhor tentar arranjar alguns ovos de raster para vender e seguir viagem, na direção que Cid apontou originalmente, além do Império de Pytharon. No caminho até a fazenda de Ardonis, Rugglet roça sua perna na minha enquanto conduz a carroça. Olho bem para ele com meu olho mecânico e isso encerra o assunto.

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Não foram rasters que mataram os dois brehms de Ardonis. Foi alguma outra coisa, e bem grande, pois os brehm são fortes e rápidos o bastante para servir como montaria, ainda que eu não goste da pele fria de réptil deles. Não sendo rasters, vou embora. Ardonis não tem dinheiro, e eu cobro até pela curiosidade de saber o que aconteceu.

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Rugglet fala das belezas da vida na colina, da caça ao raster, da antiga mina de sal e de tudo o mais que ela acha ser capaz de despertar meu interesse por Itzen, pelo menos por mais uma noite. Respondo que meus peitos emitem raios e que minha vagina é eletrificada, “nunca daria certo, querido”, e isso meio que encerra o assunto. Definitivamente.

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Cid e Mark retornaram no dia seguinte, no final da manhã. Pouca coisa aconteceu. Um soldado, Lipke, ficou bêbado à noite e foi repreendido por Kellown. O capitão estava ansioso e, na manhã seguinte, esse parecia ser o estado de espírito de toda Itzen. As pessoas colocaram suas melhores roupas e estavam à espera do Lorde Wernard Streck em pessoa. Mark e Cid encontraram chirogs nas imediações da fazenda. Eles são uma espécie de lagarto inteligente, tão grande quanto uma pessoa e com uma cauda bem perigosa. Ao que parece, nunca tinham sido vistos por aqui. Suspeitam de que exista uma infestação na antiga mina de sal de Itzen, abandonada há dez anos. A comoção na vila, contudo, não deixa muito espaço para que a descoberta receba a devida atenção.

Quando sobe a poeira da estrada ao longe, a população espana suas lapelas e lustra os calçados com cuspe. Kellown é o primeiro a se agitar. Sobe no telhado mais alto da vila sobre a colina e mira o horizonte. “Entrem nas suas casas. Entrem agora nas suas casas”. Com a face transfigurada, o capitão dá ordens aos gritos. Denniewis, próxima de mim, murmura alguma coisa. “Eles estão vindo pelo lado errado da estrada”.

São cavaleiros do Império de Pytharon. Oito deles, cuja chegada é observada por guardas atônitos e uma população em pânico atrás de suas janelas. Nem Kellown nem seus homens tentam resistir. Seria um sacrifício inútil. Mark, por suas armas, é tratado como os guardas e recolhido à guarnição. Cid parece apenas interessado em saber o que vai acontecer a seguir. Lipke, o tal bêbado, revelou-se o traidor, responsável por enviar notícias do que acontecia ali para além da fronteira.

Demora uma hora até que mais dois homens cheguem. Vestem o amarelo dos Pais Pretéritos, membros da Ordem da Verdade, veneradores do passado e os maiores conhecedores de Numenera nos Nove Reinos.

Instalam em dois pontos da esfera peças faiscantes que a fazem flutuar. Mais uma vez, a tentativa de remoção a ativa. Agora, os golpes contra o solo são incessantes. As casas de Itzen tremem ao impacto e curvam-se conforme o centro da praça afunda um pouco mais a cada novo estrondo.

Há pânico na vila. Alguns correm e outros buscam abrigo. É impossível saber quantos sobreviveram. Lá no alto, Itzen não existe mais. Em seu lugar, há uma cratera profunda revelando toneladas de terra e detritos que escondem parcialmente as estruturas construídas eras atrás sob o vão oco que todos sempre julgaram ser uma colina.

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Capítulo 3 – Mundo Acima, Mundo Abaixo

A esfera dourada paira ao centro da sala. Cristais posicionados em padrões complexos iluminam todo o ambiente com intensidade, produzindo calor e alimentando a misteriosa maravilha capaz de criar a partir do nada. Em meio aos solavancos que abalam toda a estrutura, Cid sabe que compreender aquilo, controlar aquilo, é essencial para que ele e Mark não morram entre as estrelas.
 
****
 
Após despedirem-se de Keza – ela escolheu revelar seu nome apenas no último momento, quando partiu em direção à propriedade do Lorde Wernard Streck em companhia de alguns dos sobreviventes de Itzen –, desceram pela ruptura do solo que engoliu a vila. Não foi no alto de uma colina que a vila se ergueu, mas sobre o domo de uma estrutura ancestral.
 
Lá embaixo, escombros impediam que um grupo de chirogs invadisse a cúpula central do que parecia ser uma imensa estrutura subterrânea. Agiam como que atraídos pela esfera, envolvida por uma luz dourada e faiscante de símbolos incompreensíveis, escorrendo e alimentando algum equipamento ainda operacional e inalcançável sob a montanha de terra.
 
A exploração em meio à escuridão revelou uma sala banhada por luzes douradas. Ao centro, uma plataforma elevava-se até atingir a altura de três homens, apontando para uma parede onde um vórtice brilhava feito um sol. À esquerda e à direita, havia dois conjuntos de braços metálicos com longas pinças inertes. Entre a plataforma e o vórtice, uma piscina com um líquido dourado borbulhava. Três cristais junto às paredes iluminavam o ambiente. Mutilado, próximo de um painel danificado, jazia o cadáver de um chirog.
 
Enquanto permaneceram ali, ambos sentiram dores de cabeça. Nas duas ocasiões, coisas inexplicáveis aconteceram logo em seguida. Mark se viu coberto por um líquido viscoso, tão difícil de remover quanto óleo. Com Cid foi ainda mais estranho. Ele desapareceu por um segundo e, quando retornou, tinha ganhado sete centímetros de altura. Discos flutuantes surgiram em pleno ar, formados a partir do nada, e atacaram ambos, girando velozmente as suas extremidades afiadas. Foram despachados por Mark na direção do vórtice com golpes de machado, à custa de alguns ferimentos e um escudo destruído.
 
Impedidos de explorar o subterrâneo pelo bloqueio dos escombros e pela presença de chirogs, e com a escalada até a superfície impossibilitada pela exaustão e pela fragilidade das cordas, a Mark e Cid só resta o vórtice.
 
Após uma série de experimentações, perceberam a movimentação dos braços metálicos quando posicionados à margem mais alta da plataforma. Parados no local correto, primeiro Cid e depois Mark se deixaram içar por eles, sendo mergulhados na piscina dourada e levados na direção do vórtice.
 
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Além do vórtice, o calor é intenso. Não fosse o líquido inteligente no qual foram submergidos, formando uma armadura reflexiva, Mark e Cid não resistiriam à temperatura extrema. Estão em uma sala construída segundo os mesmo princípios da estrutura subterrânea. Contudo, os sinais de degradação são mais presentes aqui. Solavancos ocasionais contribuem para a sensação de um eminente desmantelamento do local, seja qual for seu propósito.
 
Nas primeiras salas, encontram cadáveres calcinados de chirogs e o esqueleto de uma criatura assimétrica, com múltiplos membros e crânio triangular. Não se parece com nada conhecido nos Nove Reinos ou mesmo nas Terras Além. Para Cid, tudo lembra os Labirintos de Ferro, um complexo criado ao sul de Uxphon após uma cidade metálica despencar das estrelas.
 
Abrindo caminho ao longo de passagens e corredores sem encontrar saída, chegam a uma sala onde os cristais que parecem alimentar todo o local arranjam-se com maior complexidade, projetando-se pelas paredes. Uma enorme lâmina de vidro sintético repleta de rachaduras ocupa o centro da sala, mostrando cenas de outro lugar. Os pontos de controle revelam imagens da esfera que caiu em Itzen. Estava unida a um apêndice da estrutura até um desacoplamento desastroso. As imagens acompanham seu mergulho na escuridão, indo além de uma esfera cinzenta e árida e aproximando-se de um globo azul brilhante. Mark e Cid veem então todo o continente que abriga os Nove Reinos e as Terras Além. Quatro pontos iluminam-se: Itzen, os Labirintos de Ferro, a região de Augur-Kala e Qi, capital de Draolis.
 
A compreensão de que estão em algum lugar entre as estrelas abala Mark e Cid, mas um novo solavanco, mais forte que todos os anteriores, os alerta para o perigo que correm ali.
 
****
 
Cid mergulha as mãos na esfera dourada. Seu conhecimento a respeito da Numenera o auxilia, mas a tarefa é extremamente exigente. É como se tentasse compreender inúmeras conversas ao mesmo tempo. Ainda assim, é capaz de extrair significado da informação que a esfera faz chegar diretamente até sua mente. E isso faz com que seja capaz de estabilizar a estação onde se encontram. Ela ainda precisa ser reparada, e as energias que a esfera armazena e direciona poderiam fazer isso, mas o risco é alto demais. Cid está extenuado e teme as consequências de sua segunda tentativa para a sua sanidade. Mark, instruído pelo companheiro, tenta dar o passo seguinte.
 
A corrida de ambos em direção ao vórtice acontece em meio à falha catastrófica da estação. O breve benefício obtido por Cid não resiste ao fracasso na tentativa de uso da esfera. Pedaços da estrutura se desfazem internamente e separam-se além das janelas. Sem a energia que o mantinha, o vórtice desaparece assim que Mark e Cid o atravessam. Agora têm apenas a escalada à superfície e os chirogs no subterrâneo com que se preocupar…

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Capítulo 4 - Breve Interlúdio na Superfície

Mark e Cid viram o vórtice atrás deles se fechar e, com isso, cortar toda a energia da estrutura subterrânea. Ali, apenas os estalidos de caudas e garras de chirogs os guiava. As criaturas podiam ver na completa escuridão, mas ignoraram os recém-chegados. Venceram a barricada improvisada e alcançaram a esfera, cujo brilho evanescente atraiu meia dúzia deles, arranhando a superfície polida e impenetrável. Com as trevas atingindo também ela, os chirogs pareceram perder o interesse e simplesmente retornaram para o local de onde vieram.

Exaustos e feridos, com as cordas que os levaram até o subterrâneo comprometidas, Mark e Cid tombaram à espera de algo que mudasse sua sorte.

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A voz familiar de Rugglet despertou Cid. O sol entrava pela fissura no alto do domo e fazia brilhar as lascas das armaduras que ele e Mark utilizaram, desfeitas durante o sono. Um complexo conjunto de cordas trouxe o carroceiro de Itzen até ali, e ele os elevaria até a superfície sem problemas.

No que restou de Itzen, um acampamento militar começava a se formar. Cerca de trinta soldados, alguns cavalgando brehms escamosos, outros conduzindo pesados dossis de chifres circulares, organizavam mantimentos para o destacamento que se estabeleceria provisoriamente ali. Seriam liderados por um Kellown à espera de nova investida de tropas do Império de Pytharon. A maioria dos moradores que restava, contudo, estaria sob a liderança severa de Elandra, capitã da milícia, a caminho da propriedade de Lorde Wernard Streck.

Ante a possibilidade de um confronto, Mark decidiu permanecer. Cid, que parecia ser mais capaz de explicar o que ambos encontraram no subterrâneo, recebeu um convite sem possibilidade de recusa: acompanharia Elandra e se reportaria ao Lorde. Antes de partir, ouviu de Mark a mais improvável das recomendações, que fosse claro e não os assustasse.

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Já há alguns dias Zippack Ranzz maneja sua aeronave na direção do grupo de rasters. No princípio, supôs que sua falta de velocidade seria compensada pela paciência. Contudo, viraram os bons ventos que colocaram as criaturas litorâneas em seu trajeto por Ancuan. A energia que mantinha Fus-K velejando no ar chegava ao fim antes que Zippack pudesse colocar suas mãos em um par de rasters e usar porções de seus órgãos biomecânicos para reabastecê-la.

Perto de ficar sem alternativas, Zippack apontou Fus-K na direção de uma grande construção ancestral. Se parecia com um animal de concreto a observar o horizonte com seu único olho espelhado, de asas assimétricas abertas e prestes a alçar voo. Em torno dela, um assentamento improvisado se formava.

O pouso suave de Fus-K chamou atenção de alguns dos aldeões. Era uma gente com ar cansado e faminto, cuja relutância em fazer contato não era resultado de acanhamento, mas puro estupor causado pelos eventos recentes.

Ignorante a respeito de tudo, Zippack recostou-se despreocupado em um galpão onde refeições e uma bebida forte a base de grãos eram vendidos. Foi então que uma velha subiu em um caixote e as coisas ficaram interessantes.

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A marcha de Itzen até a propriedade do Lorde Wernard Streck tomou muitas horas de um dia que começou com a escalada de quase duzentos metros até a superfície. Talvez por fome e fraqueza, após chegar ao local e ser informado de que logo seria recebido em audiência, Cid tenha acabado próximo ao local onde Aylonne pregava.

Antes mesmo de fazer sua refeição, acabou reconhecido. A velha, sobre uma caixa, esbravejava contra o horror que se abateu sobre Itzen, resultado da ausência de uma suposta veneração da qual a esfera seria merecedora. Cid, com uma tigela na mão, entrou na história como o responsável pela audácia de interferir e, assim, desencadear a destruição de Itzen.

Cercado por uma turba insatisfeita, gente que perdeu suas casas, que viu parentes e amigos serem engolidos por uma cratera, que marchou para sentir fome e morar em tendas. Gente ansiosa por uma desforra, qualquer quer fosse ela.

Cid até que se saiu bem da situação, primeiro em meio à multidão e, depois, sobre algumas caixas empilhadas. Seu erro foi absolutamente compreensível. Explicou, fazendo sua voz chegar mais alto e mais longe do que a de Aylonne, que ele tinha conhecimento de um novo desastre que somente ele poderia impedir. Um desastre muito maior, pois aconteceria em Qi.

Qualquer pessoa conhecedora da dinâmica das multidões sabe como as palavras se deslocam e se perdem nela com facilidade. E, assim, Qi, capital de Draolis, se tornou aqui.

A balbúrdia decorrente das palavras de Cid foi rapidamente desfeita por um grupo de guardas, mas estava plantada a semente da desconfiança quanto ao destino de todos.

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Zippack a Cid puderam finalmente apresentar-se adequadamente numa conversa da qual Rugglet fez parte, ainda que este último não se recorde do encontro. Estavam diante de um galpão onde, Rugglet esclareceu, um raster fora aprisionado. Antes disso, o som de correntes e o piado agudo da criatura já haviam atraído a atenção de Zippack. Tendo em vista a necessidade de deslocamento rápido, Cid propôs uma parceria que durasse, pelo menos, até a chegada em Qi. Disso dependia os órgãos biomecânicos de raster, alternativa que encontrou forte oposição em Rugglet, motivo pelo qual Cid, fazendo uso de seus tecnotruques, garantiu a paz do carroceiro ao suprimir suas memórias a respeito daquela conversa.

Certamente Cid e Zippack fariam planos mais detalhados, não fosse a intervenção de Elandra.

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Cid falou primeiro, mas o jovem Wernard Streck parecia não ouvir. A cada descrição, fosse direta, tortuosa, verdadeira ou quase isso, interrompia com a mesma pergunta – havia nos subterrâneos de Itzen algo que pudesse ser usado como arma contra o Império de Pytharon? Insatisfeito com Cid, recebeu Zippack para rapidamente requisitar a aeronave Fus-K. Ordenou em seguida que fosse sacrificado o raster aprisionado para garantir-lhe alguma autonomia e despachou o aeronauta.

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Já era noite quando Cid e Zippack encontraram-se diante da propriedade ancestral de Streck, um contraste tremendo com seu jovem e tolo proprietário. Ao que parece, ele ainda teria um prisioneiro com que se distrair antes de tomar qualquer atitude. Era momento de um planejamento que andasse ao largo dos desejos do nobre.

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