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Numenera - The Wonder Weird

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Hentges:
Capítulo 5 – PãnPãNãNãNãããnnnn...(ou, A Cavalgada das Valquírias)

Verdade seja dita, nem Zippack Ranzz e nem Stephen Dedalus sabiam ao certo como tirar do raster sacrificado os órgãos biomecânicos necessários à reenergização do Fus-K. Por isso, daremos mais tempo aos dois enquanto revemos episódios anteriores, inclusive apresentando o jovem freelancer Dedalus adequadamente e descobrindo o que aconteceu com Mark e Cid, nossos protagonistas originais.

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Stephen Dedalus vinha de Ishlav a mando de Pais Pretéritos. Estranhos fenômenos recentes no firmamento capturaram sua atenção, levando-o a convencer seus patrocinadores recorrentes de que havia algo que aprender com aquilo. Supunha que seria necessário chegar ao Império de Pytharon, passando pelas terras do Lorde Wernard Streck e pela vila de Itzen, para melhor observar a curiosa movimentação de algumas das luzes do céu noturno. Contudo, havia em seu caminho um soldado de nome Elandra.

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Mark precisou de toda uma manhã de descanso antes de sentir-se parcialmente refeito dos acontecimentos no subterrâneo de Itzen, e além dele. Finalmente pôde observar a tropa baseada ali: uma dúzia de homens, displicentes e mais interessados em saquear o que restou da vila do que erguer algum tipo organizado de defesa.

Foi no início da tarde que um grupo voltou de patrulha com um prisioneiro. Era Lipke, o traidor. Havia sido maltratado, e desesperava-se feito um homem prestes à condenação. Mark interferiu antes que o rapaz fosse atirado na cratera aberta pela esfera. Sem Kellown por perto, a certificar-se da ausência de chirogs no subterrâneo, os soldados revelaram-se selvagens, e voltaram seu desejo de punição em direção a Mark. Defendendo-se da melhor maneira possível, ao menos evitou a execução de Lipke.

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Cid encontrou-se com Keza, misturada aos refugiados de Itzen, e disso uma ideia surgiu.

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“O que você sabe de rasters?”. Lorde Wernard Streck baseava na resposta a essa única pergunta o julgamento a respeito da utilidade de Stephen Dedalus, suspeito de associação com os Pais Pretéritos do Império de Pytharon – a acusação era infundada, além de não fazer o menor sentido. Satisfeito, o Lorde promoveu-o de prisioneiro a colaborador, colocando-o junto de Zippack diante de um raster acorrentado e agonizante, um soldado com um machado enorme e sob os olhos de uma multidão de curiosos.

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Ele montava um brehm e usava uma armadura que brilhava sob o sol matutino. Vinha lentamente, feito quem desejava ser avistado, mas altivo, como que sabedor de que a possibilidade de um ataque inexistia. Apresentou-se como Kervinig, representante do Capitão Mallard do Império de Pytharon, líder de uma tropa de cinquenta homens prontos a tomar Itzen. Os soldados queriam avançar sobre o inimigo e sua arrogância, mas o comunicado entregue fez com que Kellown os impedisse. Sob o jugo de Mallard estariam pelos menos dez habitantes da vila, Denniewis entre eles. A menos que deixassem Itzen em seis horas, seriam massacrados, primeiro os camponeses, e então os soldados.

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O raster é uma criatura curiosa quando vista de perto. Suas asas alcançam oito metros de envergadura, e seu corpo não é esguio como o de outros animais voadores, mas forte, quase excessivo. Certamente as quatro patas curtas não são capazes de dar conta dele por mais do que um tempo muito breve. O vermelho sanguíneo de um raster torna fácil de avistá-lo nos céus de Ancuan. Ali, no chão, ele apenas se confundia com o líquido espalhado pelo machado do executor.

Dedalus e Zippack encontraram o que procuravam na cabeça da criatura sacrificada. Os grandes discos prateados nascem e crescem ali, mas são mecânicos e guardam partes cuja energia acumulada serviria para colocar Fus-K mais uma vez na altura das nuvens.

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Naquela noite, quando Dedalus e Zippack descansavam em uma das inúmeras tendas improvisadas nos arredores da propriedade de Lorde Wernard Streck, Cid finalmente reapareceu. Por baixo de panos, passou com cuidado e uma aura de segredo um misterioso dispositivo. Tratava-se de um tripé metálico, feito para sustentar uma peça do mesmo material. Repleta de botões e símbolos, seu propósito seria apenas descoberto mais tarde. Segundo Cid, e foi a última coisa que disse antes de sumir junto de Keza, se tratava de algo muito útil e de que o Lorde não sentiria falta imediatamente.

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Kellown não poderia abrir mão de homem nenhum, e Mark tomou para si a tarefa de localizar os invasores. Do alto da colina, era possível observar qualquer tentativa de aproximação. Mas a geografia acidentada da região também permitia que um agrupamento de soldados estivesse postado a menos de um quilômetro de Itzen.

De Lipke veio a suspeita de que a incursão em Ancuan seria mais uma aventura belicista do capitão de uma fortaleza do que a orientação da imperatriz de Pytharon em seu palácio. Isso se confirmou antes do final da tarde, quando Mark avistou os prisioneiros e os soldados do Império, postados em um vale à espera da ordem para avançar.

Estavam a duas horas de caminhada da vila, e não chegavam ao número anunciado por Kervinig, mas ainda superavam em quase três para um os homens em Itzen.

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Fus-K deu início ao seu voo silencioso no início da manhã. Nele embarcaram Elandra e um soldado de sua confiança, além do aeronauta Zippack e Dedalus, que rapidamente dominara o sistema de energia da aeronave. E Cid.

Três horas depois, pousavam junto dos escombros de Itzen. Os soldados ali postados não inspiravam confiança. A situação narrada por Kellown e as intervenções de Mark apresentaram um cenário sombrio. Naquele momento, tinham menos de duas horas para decidir entre lutar e arriscar as vidas dos aldeões a as suas, ou retirar-se da vila, abandonando os moradores à própria sorte e o orgulho em um ponto tão profundo quando os subterrâneos de Itzen.

Inicialmente relutantes, Zippack e Dedalus resolveram-se por tomar parte no que fosse decidido. Juntos, vasculharam os arredores em busca de pedras pesadas e combustível para explosivos improvisados. Mais tarde, já com a ajuda de ambos, Mark finalmente conseguiu, ao custo de um dossi, discernir o funcionamento do dispersor de energia encontrado nos subterrâneos. Cid, enquanto isso, tentava convencer os soldados da importância de ele estar junto da esfera nesse momento crítico.

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Todos os soldados no solo eram necessários, e permitir que os quatro voassem sem supervisão exigiu de Elandra uma enorme dose de confiança.

Elevando o Fus-K ao limite de sua altitude, Zippack fornecia uma visão privilegiada da movimentação do grupo saído de Itzen e também daquele baseado em um vale a quilômetros dali. Imprimindo um mergulho ousado, surpreendeu os homens de Pytharon, pegos de surpresa e, àquela altura, já esquecidos de seus prisioneiros.

O casco da aeronave atropelou meia dúzia de soldados e um pedregulho arremessado por Cid fez outra vítima. Mark incendiou um grupo de homens e Dedalus disparou o dispersor, fazendo a energia ricochetear até encontrar um alvo orgânico e pulverizá-lo.

Manobrando o Fus-K, viram que sua intervenção garantiu a margem necessária para igualar as forças em combate. A um custo muito alto, os homens liderados por Elandra saíram vitoriosos. Considerando sua parte do acordo cumprida, apontaram o Fus-K em direção a Ishlav.

Era o mais longe que poderiam chegar com a energia de que dispunham.

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Capítulo 6 - (Metade de) Um Conto de Duas Verdades

Ishlav é uma cidade dividida pela própria história, com a linha traçada vinte anos atrás, quando um evento ainda carente de explicações cortou a cidade ao meio. O pouco que se sabe diz respeito a um artefato extraordinário levado por exploradores à Ordem da Verdade. Na ânsia por compreender aquilo, os Pais Pretéritos ativaram o dispositivo e tudo o que era inanimado a meia légua de distância foi partido em dois. Construções desabaram, vidas foram perdidas, tragédia e incerteza tomou Ishlav. No penoso processo de reconstrução que se seguiu, contudo, os cidadãos perceberam que sua saúde havia melhorado. Sentiam-se mais capazes para trabalho e adoeciam com menor frequência. Ishlav foi em frente, pesarosa pelas vidas perdidas, mas orgulhosa do que recebeu em troca, mesmo sem compreender os motivos de tamanha dádiva.

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Czyran Eczos jamais duvidou de que sua condição estivesse relacionada ao fenômeno ocorrido na cidade. Foi afetado ainda no útero materno, recebendo dádivas superiores, mas nascendo com a mão esquerda de aspecto membranoso, cuja pele ressecada e quebradiça até hoje exige umidade frequente. A doença avançaria até tomar o braço quase que por completo, estagnando apenas graças ao conhecimento técnico do pai adotivo. Passados vinte anos, estava de volta a Ishlav em busca de respostas.

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O Fus-K posou suavemente em um terreno vazio, junto da propriedade da Ordem da Verdade, despertando como sempre acontecia a curiosidade de transeuntes. Ishalv, entretanto, não era uma vila qualquer de aldeões facilmente impressionáveis, mas uma cidade de bom porte e quase 20 mil habitantes, e estes logo trataram de cuidar de suas vidas.

Zippack e Mark permaneceram na aeronave, enquanto Dedalus se dirigiu ao encontro de Galvin, líder da Ordem da Verdade em Ishlav e patrono ocasional de suas pesquisas. Surpreso pelo encontro – esperava que Dedalus agora estivesse cruzando a fronteira de Ancuan com o Império de Pytharon -, o Pai Pretérito recebeu os três. Coube a Mark relatar os extraordinários eventos em Itzen, minimizando os acontecimentos da masmorra na escuridão entre as estrelas e atribuindo a Cid as previsões mais catastróficas a respeito do que testemunharam, especialmente no que dizia respeito a Qi, capital de Draolis. Cid, que ficara para trás no dia anterior ao se decidir por permanecer em Itzen, não poderia contribuir com seus raciocínios tortuosos.

Antes que pudessem explicar quais eram suas intenções ali, foram interrompidos pela urgência de um recém-chegado.

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Com os recursos de um passado de nobreza escasseando, Czyran se vira obrigado a adotar hábitos mais simples, especialmente no que dizia respeito à hospedagem. Disso resultava tratar com um estalajadeiro grosseiro feito Ebunike e dividir o quarto com viajantes, como Velson. Ebunike ainda teria pela frente muitos dias de rabugice e maus modos. Velson, contudo, teve na noite passada sua última oportunidade para reserva e circunspecção.

Quando Czyran abriu a janela ao lado de sua cama, constatou que ninguém vivo poderia ter aquele aspecto assustador e tão familiar.

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Simpatizar com Czyran não era tarefa fácil.

Ele interrompeu uma reunião, anunciou um problema complexo e arrematou mostrando a todos a deformidade em sua mão. A interrupção era inconveniente passageiro, mas o problema apresentado poderia ter implicações maiores. Quanto à mão, parecia a cena de alguém acostumado ao preconceito, buscando de imediato avaliar reações a sua condição incomum.

Entre todos, Zippack foi o único a abertamente demonstrar intolerância. Tanto que decidiu circular por Ishlav enquanto os demais, Galvin entre eles, se dirigiam ao local onde Czyran estava hospedado.

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A pele de Velson ressecara ao ponto de descolar-se do corpo, tornando-se um pó tão fino quanto as cinzas que repousam numa lareira pela manhã. Era um cadáver horrível de se olhar, com músculos, tendões e ossos expostos. Tocar seu corpo evocava perigo, pois era misteriosa a moléstia que lhe tomara a vida. Os pontos onde a pele ainda não se desprendera da carne em muito se pareciam com a deformidade de Czyran. Um olhar descuidado ou uma interpretação incorreta, e o jovem sem dúvida seria acusado de ser o causador daquilo.

Decidiu-se por levar o corpo até a sede da Ordem da Verdade, onde ficaria confinado e menos sujeito à transmissão de uma possível doença. Discretamente, entre lençóis e cobertores, foi retirado da estalagem, com Ebunike sendo convencido de que o sigilo a respeito do destino do viajante seria fundamental e benéfico a todos.

Entre os pertences de Velson, apenas aquilo que se poderia esperar encontrar na mochila de um viajante, além de alguns pedaços retangulares de pedra com pontos marcados em quantidade que variavam de um e cinco.

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Na praça em frente à sede da Ordem da Verdade, um grupo se formava. Homens e mulheres com a aparência de servos, mercadores e artesões. Todo o tipo de gente se juntava para atender aos comandos de um homem de nome Kollos. Líder dos Monges de Mitos, ele e seus companheiros mais antigos ensinavam à população as táticas de defesa da Prece de Punhos: chutes, socos e combinações de ambos para utilização em caso de ameaça. Junto com a atividade física ao qual cerca de cinquenta pessoas se integraram, Zippack entre elas, Kollos dizia frases de iluminação: “Se você ama a vida, não perca tempo. É de tempo que a vida é feita; A posse de qualquer coisa começa na mente; Exibicionismo é a ideia que o tolo tem da glória.”

De volta, com Mark, Dedalus e Czyran carregando um fardo um pouco para trás, Galvin não conseguiu disfarçar seu descontentamento diante daquela demonstração.

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A sede da Ordem da Verdade em Ishlav tem em seu primeiro andar uma combinação de biblioteca e oficina. Ali as pessoas costumam circular em busca de orientação dos Pais Pretéritos a respeito dos mais diversos assuntos, inclusive muitos dos quais em nada têm relação com a sua área de saber, a Numenera. É raro que o local esteja vazio, e por força das ordens de Galvin, esta era uma dessas raras ocasiões.

Entre dispositivos desmontados, remontados e desmontados novamente, diagramas complexos e plantas exóticas dissecadas, o corpo de Velson foi acomodado. O transporte tratou de desmantelar o que de pele ainda tinha no corpo, espalhando um pó claro no ar e causando novamente uma impressão forte em todos os presentes.

Galvin demonstrava disposição para examinar o cadáver, ainda que não soubesse ao certo como começar. Não fosse o estado assombroso de Velson, certamente poderia se dizer que era um homem saudável e bem constituído. Descobrir o que se passara com ele não seria tarefa simples.

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Do ponto de vista sempre prático de Zippack, Ishlav era simplesmente um ponto de passagem para Qi ou outro destino qualquer. O certo a se fazer, portanto, seria buscar meios de reabastecer o Fus-K enquanto Galvin não pudesse auxiliá-los com isso, ocupado que estava em examinar o falecido Velson.

Infelizmente, não seria tarefa tão simples assim. O comércio de Numenera era proibido à população pelos Pais Pretéritos, uma determinação cuja explicação não chegou a ser adequadamente formulada. Como a posse dos dispositivos maravilhosos do passado não era proibida, juntos carregavam meia dúzia deles, era o caso de descobrir onde o comércio ilegal acontecia.

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Ao longo de vinte anos, Ishlav recebeu um enorme influxo de pessoas, todas ansiando pelos mesmos benefícios que a população original da cidade experimentava. Não se tem notícia de um só caso em que esse propósito foi atingido. Restou aos recém-chegados partir ou permanecer. Deste segundo grupo, a maior parte não tinha recursos para outro local que não fosse a Margem Sul, a Ishlav arruinada, a porção da cidade devastada e sobre cujas lembranças ruins nada foi reerguido.

Lentamente, esses cidadãos considerados de segunda categoria organizaram sua própria forma de viver, em muito amparada pela mendicância, criminalidade e violência. É nesse local que Czyran, Dedalus, Mark e Zippack esperam encontrar o que procuram.

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Na Margem Sul há jogos de azar, prostituição e comercialização de drogas. As pedras retangulares encontradas entre os pertences de Velson serviam como moeda para apostas, e saíram dali. Sem dinheiro o bastante para adquirir um pequeno reator elétrico que poderia alimentar o Fus-K, viram na indicação de Czyran uma boa saída para multiplicar seus recursos: colocar Mark em um fosso para lutar com animais selvagens. Após Dedalus adquirir a maravilhosa Água de Ishlav, garantia de benefícios para a saúde sem o risco de sua casa desabar repentinamente sobre sua cabeça, chegaram ao local onde o soldado teria a chance de provar seu valor.

Dentro do fosso estava o animal mais perigoso que Mark já tivera a chance de ver tão de perto. Com o peso de seis homem e pelagem grossa, são conhecidos como devastadores. Sem olhos, a besta se orienta pelo som e olfato para despedaçar coisas com presas tão compridas quanto a perna de uma mesa.

Ignorando as apostas de três para um contra ele e demonstrando imensa habilidade com o machado e escudo, Mark deu cabo do devastador em quatro movimentos, causando frustração entre os apostadores e obrigando seus três companheiros a impedir que mais animais fossem jogados no fosso para desafiar o soldado.

Saíram de lá com shins o bastante para negociar o reator elétrico para o Fus-K, "apenas porque preciso do dinheiro para minha mãe doente", e depois de constatar que um bom número de animais utilizados no fosso tinha na boca eczemas que em nada se pareciam com feridas de combate.

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Ao retornarem à sede dos Pais Pretéritos, Galvin examinava um cadáver. Apenas não era Velson. A moléstia misteriosa fizera uma segunda vítima.

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Capítulo 7 – (Segunda Metade de) Um Conto de Duas Verdades

A pequena sala comunal da Ordem da Verdade demonstrava naquela manhã, com sua refeição simples, cadeiras vagas e poeira acumulada onde os olhos não viam primeiro, a situação atual dos Pais Pretéritos em Ishlav. Apenas os mais jovens estavam ali, circunspectos, e ninguém ousava perguntar a respeito dos corpos sobre as mesas do laboratório. Já eram dois, e Galvin passara a madrugada examinando-os. Antes que fossem até ele, Zippack, Dedalus e Mark rumaram ao mercado central da cidade. O último desejava uma nova espada, enquanto os outros dois tinham ideias a respeito de como tornar o Fus-K uma aeronave mais eficiente.

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Czyran Eczos tinham mensagens a enviar a sua família e patrocinadores em Glavis. Ela levaria ao menos cinco dias até que chegasse à capital de Ancuan, muito mais tempo do que durariam os poucos shins que ainda levava consigo. A Ordem da Verdade era o único e melhor meio para empregar seu conhecimento a respeito da Numenera e, ao mesmo tempo, ganhar acesso aos dados sobre o evento que ocorreu na cidade vinte anos atrás.

Recebido por Galvin, Czyran foi confrontado com a realidade já há algum tempo estabelecida ali: não havia recursos. Contudo, ele facultaria acesso ao laboratório principal e à biblioteca. Gostaria apenas que o jovem nobre usasse de sua influência para tranquilizar o companheiro de Asther Vanita. Ela, também uma nobre, era a segunda vítima da estranha doença, e a divulgação das circunstâncias da morte causaria pânico entre a população.

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Ao retornarem, Mark, Dedalus e Zippack foram apresentados ao que Galvin descobrira ao longo da madrugada. Pouco havia a ser dito a respeito dos dois corpos, mas a água que trouxeram da Margem Sul apresentava propriedades curiosas. Nela, gramíneas e folhas comuns, do tipo que crescia em qualquer lugar de Ishlav, irradiavam uma leve fosforescência nas bordas. Perceptível apenas quando examinadas por meio de complexos painéis, que agigantavam sua aparência sob vidros e películas transparentes, era o primeiro indício a respeito de como se espalhava a doença.

Discretamente, Galvin e Dedalus conversaram a sós sobre o que ocorria na cidade e como o auxílio do pesquisador e de seus dois companheiros seria útil. Mais importante do que um pagamento, uma impossibilidade para a Ordem, a intervenção faria com que os três caíssem nas graças do grupo organizado mais importante dos Nove Reinos. E faria com que fosse esquecido o investimento feito na viagem inconclusa de Dedalus a Rarmon, no Império de Pytharon, para estudo do Grande Planetário de Ferro.

Do lado de fora, enquanto isso, Zippack recusava uma oferta de 5 mil shins e dois aneens domesticados pelo Fus-K. A nobre solicitante, Choen Mohsen, acreditava que aquele era o veículo capaz de levá-la adequadamente à capital de Draolis. “Chegar por cima é o único modo certo de chegar a Qi”.

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Já fazia algum tempo que Czyran conversava com Évoro, garboso companheiro de Asther Vanita, na mansão que dividiam. Ele já se mostrara um companheiro dedicado, um amante enlutado e um jovem egoísta. A contragosto, concordava com a possibilidade de adiar o digno funeral merecido por ela. Servo com funções e privilégios especiais, Évoro era responsável por alimentar a maior obsessão de Asther Vanita: a manutenção de sua juventude. Isso o ultrajava mais do que os boatos de que seriam amantes.

Quando Mark, Dedalus e Zippack chegaram ali, Czyran já encontrara, em meio a pós, unguentos, pomadas e xaropes, uma garrafa muito semelhante àquela que trouxeram da Margem Sul. A Água de Ishlav fora despejada numa cuba de vidro e tinha os mesmos resquícios de plantas da outra amosta. Já há alguns meses Évoro a adquiria de um homem chamado Strepicus. Asther passava o líquido nas mãos, rosto e colo, além de bebê-lo regularmente.

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Naquela tarde, Dedalus, Zippack e Czyran fizeram testes com o pequeno reator elétrico adquirido na Margem Sul. Sua intenção era fazer com que a fonte de energia alimentasse o Fus-K. Mesmo tendo o laboratório da Ordem da Verdade à disposição, não foi possível realizar a conversão. Galvin se recusou a ajudá-los, mas não impediu a tarefa. Os Pais Pretéritos eram os responsáveis pela restrição à Numenera em Ishlav, e tomar parte naquilo feriria a crença na necessidade de tal proteção. Segundo Galvin, se mesmo a Ordem da Verdade, em posse de todo conhecimento acumulado a respeito da Numenera, não pôde controlar o desastre do passado, a livre circulação de dispositivos de origem misteriosa e propósitos inescrutáveis apenas colocaria a cidade em risco.

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Mark, por sua vez, se dirigia ao local que servia ao encontro e treinamento dos Monges de Mitos. Fora abordado mais cedo por Mikhal, que na noite anterior o vira enfrentando o devastador no fosso. Ele parecia ter aquilo que interessava a uma ordem que buscava a iluminação dos capazes de provar seu valor em combate.

Naquele momento, cerca de quarenta pessoas se esforçavam para acompanhar os movimentos de Kollos e seus mais graduados seguidores. Era disciplinados, mas diferiam do tradicional treinamento militar na maneira com que golpes de mãos nuas eram intercalados por um discurso de purificação pacífica. Ensinavam a defesa, e não o ataque. Observando de longe, Mark podia ver que os Monges de Mitos haviam ocupado, com suas famílias e associados, todo um bairro de Ishlav.

Não era estranho ao soldado mover-se sem a proteção da armadura ou o peso do escudo; lutar de mãos nuas era algo que aprendera em tavernas de Thaemor. Mesmo assim, em nenhum momento foi capaz de surpreender Kollos, cuja reputação pela capacidade de luta de fato se confirmava com poucos movimentos.

Antes de despedirem-se, um brinde ao guerreiro que talvez encontrasse a elevação espiritual. Era a Água de Ishlav que Kollos e Mikhal bebiam e com a qual Mark apenas umedeceu os lábios.

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Os quatro deixaram o capitulo da Ordem da Verdade durante a noite. Naquele momento, um grande número de soldados da Guarda de Ishlav já se postava ali. Protegeriam uma reunião da nobreza local, convocada por Galvin. Era hora de dividir com o conselho da cidade as notícias a respeito das mortes e os riscos que a cidade poderia correr.

O plano do grupo consistia em fazer Czyran passar-se por um nobre munido de shins e ingenuidade, disposto a adquirir de Strepicus a famosa Água de Ishlav em grande quantidade. Os demais seriam seus protetores e conselheiros, o acompanhando ao endereço do comerciante, fornecido por Évoro.

Lá chegando, em uma viela discreta num dos pontos mais extremos da Margem Sul, se depararam com uma residência vazia. Sobre uma mesa simples estavam plantas e folhas, além de cordas e baldes usados para recolhimento de água de poços. Havia diversas garrafas grosseiras, semelhantes àquela encontrada no quarto de Asther Vanita. A cama fora arrastada da parede, deixando à vista um buraco no chão de terra batida. Possivelmente um esconderijo para shins ou pequenos objetos. Nos fundos, Mark e Dedalus encontraram árvores sem folhas um poço no qual água corrente se fazia ouvir. Sem dúvida era dessa combinação que Strepicus produzia sua água milagrosa.

Em frente à casa, à espera dos companheiros, Zippack e Czyran apenas tiveram a oportunidade de observar a inesperada passagem de dois Monges de Mitos.

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A terceira morte ocorreu subitamente. Um homem, transportando caixas, simplesmente desabou em meio à rua. Curiosos se aproximaram, um alarido se formou, mas ninguém pareceu disposto a ajudá-lo. Pelo menos não até que Mark abrisse caminho, buscando aproximar-se. A pele do jovem já apresentava empalidecimento. Ao tocá-lo, buscando por sinais vitais, o soldado já podia sentir os estalidos do ressecamento anormal.

O cadáver foi coberto, vozes se fizeram ouvir mais do que outras e o grupo de curiosos dispersou-se, dando aos quatro a chance de descobrir mais a respeito do morto. Morador da Margem Sul, era um criador de animais que serviam de alimento às bestas da pequena arena de combates local. Parecia ter negócios com Strepicus, ainda que não fosse clara sua natureza.

Levando consigo o corpo do criador, ocultado por cobertores, e um de seus animais, que apresentava feridas na boca à semelhança dos animais da arena, retornaram ao capítulo da Ordem da Verdade. Com a reunião da nobreza ainda em andamento, foram impedidos de entrar. Deixaram seus despojos nos fundos do prédio e um bilhete alarmante dirigido a Galvin. “Uma pessoa morreu na Margem Sul”.

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O complexo subterrâneo de Ishlav é formado por um conjunto de cavernas sobre os quais a cidade foi erguida duas vezes. Ali correm os riachos que abastecem diversos fontes e poços pela cidade. O avanço inicialmente se deu através da escuridão iluminada por tochas, com a fosforescência detectada nas plantas recolhidas junto da Água de Ishlav se acentuando conforme dirigiam-se tortuosamente ao norte.

Após uma hora de exploração a partir de um riacho na Margem Sul, junto da arena, as paredes úmidas das cavernas já davam lugar a uma vegetação exuberante, formada basicamente por fungos de pulsação luminescente. As tochas sequer eram necessárias quando chegaram ao centro daquilo.

O grande salão natural era iluminado por uma piscina fosforescente. Com dez metros de diâmetro e cortada por passarelas, estava prestes a transbordar. Do teto da caverna, pingava a partir de uma estalactite uma substância da mesma cor da luz que os guiou até ali.

Debruçado sobre uma das passarelas, Kollos recolhia o líquido da piscina sem preocupação aparente quanto aos efeitos daquilo sobre si.

– Vocês chegaram até aqui, mas não sabem onde estão. Logo acima de nós, os nobres de Ishlav decidem apenas preocupando-se consigo o destino de toda a cidade. Estes são os subterrâneos da Ordem da Verdade.

Kollos parece plenamente seguro de suas conclusões, demonstrando pouca inclinação a explicá-las, especialmente por tomar seus quatro interlocutores por associados aos Pais Pretéritos. Ele tem plena ciência de que, se divulgadas, provocarão um revolta de consequências imediatas.

– A população tem o direito de decidir por conta própria, mesmo que isso signifique que tudo fique pior antes de melhor.

Nenhum dos quatro faz menção a colocar-se no caminho de Kollos. Não é difícil imaginar o que faria ele em posse da confirmação de suas suspeitas.

A possível negligência que pode resultar numa tragédia impulsiona Czyran, Dedalus, Mark e Zippack de volta à Ordem da Verdade.

Nas ruas da Margem Sul, mais mortes eram lamentadas.

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Na Ordem da Verdade, tudo aconteceu rapidamente.

Apesar das primeira negativas, Galvin não podia esconder que sim, ainda tinha em seu poder o artefato causador da tragédia de vinte anos atrás. Permanecia tão inerte e misterioso quanto no momento imediatamente posterior ao efeito que causou. Ou não?

Enquanto Czyran recolhia seus pertences na estalagem de Ebunike, e Zippack fazia os preparativos para uma rápida decolagem do Fus-K, Mark se deparava nos porões da Ordem da Verdade com uma esfera metálica produzindo uma familiar e desconcertante vibração. De algum modo, estava ativada, ou reativada, e interagindo com todos ou alguns dos dispositivos descartados ali. Havia motivos,para que as alegações de Kollos fossem verdadeiras. E, mais importante, havia mais do que o suficiente ali para fazer parecer com que estivessem completamente certas.

Importava apenas tirar a esfera dali, a esta altura já desativada por Dedalus, e foi por isso que Galvin ingressou na arriscada tarefa de associar urgência e o reator elétrico necessário à partida.

Quando o Fus-K levantou voo, levava Zippack, Dedalus, Mark e Czyran. Levava também a misteriosa esfera. Do alto, era possível ver a multidão guiada por Monges de Mitos prestes a chocar-se contra a Ordem da Verdade. No prédio esvaziado, Galvin era o único Pai Pretérito que restava.

Qualquer que fosse o futuro de Ishlav, uma brusca mudança parecia prestes a novamente cortar a cidade ao meio.

Hentges:
Capítulo 8 – De: Ishlav. Para: Glavis.

Amanhecia quando o Fus-K chegou à costa de Ancuan levando Zippack Ranzz, Czyran Eczoz , Mark e Stephen Dedalus. Viajava energizado pelo reator elétrico adquirido em Ishlav, e se comportava perfeitamente. De fato, o dispositivo produzia mais energia até do que era necessário para manutenção do veículo no ar e avançando, e planos de melhorias utilizando este excesso talvez fossem cogitados pela tripulação. Contudo, era a esfera retirada da Ordem da Verdade em Ishlav que de fato importava naquele momento. O grupo concordara que levá-la até Glavis seria um risco. Desativada e deixada em uma encosta rochosa, numa região escarpada banhada pela extensa Baía Kelen, permaneceria em segurança e segredo.

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Os 20 mil habitantes de Glavis vivem no que se parece com três cidades distintas. Porto Frohm, a menor e mais movimentada delas, compreende a região portuária. Há a Colina de Nurel, lar da nobreza e dos abastados, e Terras Férteis, onde se organiza toda a produção. A capital de Ancuan é comandada pelo Rei Asour-Mantir, que governa de um isolamento autoimposto em sua fortaleza transparente, 35 km a noroeste de Glavis, cercado por bajuladores e pela Legião Azul, soldados famosos pela habilidade como arqueiros. O povo de Glavis venera Relia e Bianes, deuses irmãos. Altares discretos são depósito de oferendas muitas vezes consumidas bem diante dos olhos dos fiéis. Seus templos e estátuas foram erigidos com uma espécie de pedra-sabão, muito resistente e abundante em todo o litoral.

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O Conselho Numer, assim Czyran explica aos demais, cumpre em Ancuan um papel semelhante e paralelo ao da Ordem da Verdade. Seu pai já fizera parte do grupo, mas a idade, somada ao desinteresse pelas aplicações bélicas e energéticas da Numenera em voga, o afastaram. Mantido por membros da nobreza local como um clube de cavalheiros interessados na promoção do conhecimento, é no pátio da sede do Conselho Numer que o Fus-K pousou, no início da noite.

Àquela altura, notícias de Ishlav já haviam chegado. A Ordem da Verdade, enfraquecida há meses, fora atacada por uma turba durante o surto de uma doença desconhecida. Um culto local, chamado de Monges de Mitos, seria o responsável. A situação fora controlada pela guarda local, com Galvin e os demais Pais Pretéritos agora sob a proteção direta de Choen Mohsen, líder do Conselho de Nobres. A mensagem, redigida por Galvin, em conjunto com Choen Mohsen, não mencionava o dispositivo que desencadeou a doença e nem seu destino.

Czyran manifestava dúvidas quanto à veracidade das notícias, mas tinha problemas maiores a contornar. Yalacker-Siross, membro do Conselho Numer e responsável pela viagem a Ishlav, não aceitava que um pesquisador deixasse uma cidade em meio a um surto de doença que, suspeitava-se, poderia ter relação com o evento desencadeado pelos Pais Pretéritos vinte anos atrás, em um novo episódio de negligência.

Mantendo a esfera em segredo, Czyran teria até a manhã seguinte para preparar um relatório e convencer os demais membros de sua capacidade para continuidade da realização das pesquisas em Ishlav.

Enquanto isso, Dedalus encontrou no capitulo da Ordem da Verdade um rosto conhecido. Loig era um jovem Pai Pretérito vindo de Ishlav, ansioso por notícias em primeira mão. Ele confirmaria a versão dos fatos conhecida pelo Conselho Numer, bem como a ausência de qualquer menção a um dispositivo retirado da Ordem da Verdade.

Mais tarde, Dedalus juntou-se a Mark e Zippack em Porto Frohm. Embarcações do Reino de Ghan estavam de partida para Qi, e sua tripulação de maioria feminina tinha muito a celebrar.

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O Conselho Numer considerava resolvida a questão em Ishlav, pelo menos do que dizia respeito à doença que abateu uns poucos moradores. O aspecto político, com a Ordem da Verdade enfraquecida, era mais importante naquele momento. Contudo, Czyran não estava interessado em jogos de poder. Em deferência ao seu pai, os membros concederiam a ele a oportunidade de apontar o destino de suas pesquisas, desde que ele mostrasse algo capaz de fazer brilhar olhos e abrir cofres.

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Durante dois dias o Fus-K esteve pousado às margens da Baía Kelen. Sob a supervisão de Dedalus, Mark, Czyran e Zippack fizeram todos os testes que consideraram possíveis com a esfera de Ishlav. Sob certos aspectos, ela se parecia com a fonte de energia encontrada por Mark e Cid na masmorra entre as estrelas. Tratava-se de um poderoso mecanismo de alteração das propriedades fundamentais da vida. Isso significava que ela seria capaz de quase tudo em relação à matéria orgânica, sendo uma espécie de armazenador de energia vital contendo segredos a respeito da vida em civilizações remotas e de feitos como a reversão da morte.

Infelizmente, os testes a exauriram, e ela jamais seria utilizada para as coisas grandiosas e terríveis de que seria capaz.

A não ser…

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O membros do Conselho Numer chegaram ao meio-dia à propriedade de Mensel Eczoz, em Terras Férteis. Czyran os recebeu logo depois de Zippack, utilizando seu domínio natural sobre a eletricidade, energizar a esfera. Ele já fizera isso em ocasiões anteriores, mas nunca com dispositivos tão complexos. Suspeitava de que ela funcionaria por algumas horas, pelos menos um dia, tempo suficiente para que fosse apresentada ao Conselho Numer e convencesse das vantagens de financiar o grupo para encontrar artefatos semelhante. Se aquilo que Mark e Cid viram estivesse correto, existiriam outras nos Labirintos de Ferro, na região de Augur-Kala e em Qi, capital de Draolis, além daquela que despencou sobre Itzen.

Como forma de provar o poder do dispositivo, Dedalus planejava curar a mutação de Czyran.

Mas algo deu errado.

A última coisa que todos perceberam foi o choque de energia devastador emitido pela esfera.

Bispo:
Olá Hentges,

Você poderia falar -- aqui ou num outro tópico -- sobre sua experiência com o Cypher System? Tipo, o que você acha bacana e o que não é tão bacana assim? Como você tem lidado com o "GM Intrusion"? Alguma house-rule digna de nota? Você chegou a dar uma olhada na versão brasileira do Numenera?

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