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Numenera - The Wonder Weird
Hentges:
Buenas
Estou achando o sistema muito bom pela sua simplicidade na resolução de tarefas. Uma rolagem de um d20, feita sempre pelos jogadores, e pronto, tudo resolvido. Eu não sou um narrador de pedir muitas jogadas, geralmente me contentando em saber se o personagem tem ou não a habilidade requerida, e também não existiram muitos combates até aqui; é um impressão positiva, mas vinda de alguém que pega leve com as regras.
As GM Intrusions também usei pouco, nas duas ocasiões para criar situações que impediram a fragmentação da trama pela separação dos personagens. É um mecanismo novo para mim, e eu tenho que me acostumar a sua possibilidade. Acho interessante como possibilidade, mas acho que seu uso recorrente, uma vez por sessão, digamos, já pareceria excessivo pra mim e para os jogadores.
Quanto à versão traduzida, espero que seja um sucesso. O cenário e as regras são muito bons, e merecem ser acessíveis a um público maior. Particularmente, prefiro o material na língua original, especialmente por conta das referências cruzadas, que se perdem com a nova paginação nas traduções.
Qualquer coisa, estamos aí.
Hentges:
Capítulo 9 - Os Trabalhadores do Mar dos Segredos (Parte Um)
Um mês passou-se desde o evento cujo epicentro foi a propriedade de Lemsel Eczoz. O choque inicial e o desabamento de construções fizeram inúmeras vítimas, a maior parte delas em Terras Férteis. Demorou duas semanas até que a Ordem da Verdade lançasse luz sobre a tragédia.
Um grupo de mercenários liderados por um gaiano estava a caminho de Glavis. Deduziu-se que planejava detonar o dispositivo na cidade para minar os esforços de guerra que partem de Porto Frohm a caminho de Qi e, dali, para o norte, além do Campo sob as Nuvens de Cristal. O líder dos Pais Pretéritos em Glavis, Adhamastor Nerus, apresentou as conclusões ao próprio Rei Asour-Mantir, que em uma rara manifestação direta aos seus súditos, empenhou recursos e esforços de Ancuan em favor da causa da Ordem da Verdade.
Zippack Ranzz frequentou Porto Forhm nas últimas semanas e observou a partida de embarcações levando membros da Legião Azul para Qi. Ali, entre bebedeiras e apresentações performáticas, vendeu partes aproveitáveis do Fus-K, danificado além de qualquer possibilidade de reparo pelo choque de energia emitido pela esfera trazida de Ishlav. Nas ruas, falava-se dos gaianos como uma raça de nortistas desprezíveis, mesmo que até recentemente sua existência fosse ignorada. A população estava aliviada pelo ataque mal sucedido ter feito menos vítimas do que poderia, e a presença de homens de um Senhor de Guerra chamado Serec reforçava a sensação geral de segurança.
Mark ingressou entre as fileiras de Serec, informalmente chamado de O Relutante. Com o contingente presente nas ruas de Glavis, uma companhia de mercenários foi deslocada até Itzen a pedido de Lorde Wernard Streck. Por duas semanas, Mark acompanhou a construção de uma guarnição onde antes havia Itzen e patrulhou a fronteira de Ancuan com o Império de Phytaron. Da esfera que destruiu a vila não se tinha notícia desde sua remoção com a ajuda de homens de Serec, cuja força militar começa a se expandir para além dos arredores de Glavis. Seus capitães, em mais de uma ocasião, ordenaram que tropas se movimentassem além da fronteira, fomentando animosidades que justificariam, e quem sabe ampliariam, a necessidade de milicianos na região.
Stephen Dedalus investiu seu tempo buscando aproximar-se de Loig. O jovem Pai Pretérito de Ishalv é ambicioso, e aos poucos cedeu informações a respeito do que realmente estava acontecendo na Ordem da Verdade em Ancuan. Internamente, se dava como certa a relação entre o evento em Ishlav vinte anos atrás e o ocorrido em Glavis. As propriedades afastadas de Terras Férteis dificultavam apontar o centro da emissão de energia, mas a Ordem considerava em suas conjecturas a perda de quase todo o Conselho Numer na ocasião, inclusive com a propriedade de Lemsel Eczoz tendo sido seriamente afetada. A opção pelo uso político da tragédia se justificava, pois culpados punidos pelos seus atos são mais tranquilizadores para a população do que uma tragédia inexplicada capaz de se repetir a qualquer momento. Sugerindo a Loig o desejo de aproximar-se da Ordem da Verdade em Qi, Dedalus recebeu um contato: Pai Onald.
Czyran Eczoz tinha mais preocupações do que todos. Seu pai, Lemsel, foi uma entre tantas vítimas diretas da decisão de levar à propriedade em Terras Férteis a esfera resgatada de Ishlav. Durante as semanas seguintes, havia esse funeral e o de diversos servos por realizar, uma propriedade para reerguer e uma família a liderar. Em paralelo, a necessidade de manutenção do segredo em relação ao ocorrido. Recuperando-se lentamente, Yalacker-Siross era o único sobrevivente do Conselho Numer original, e demonstrava disposição para contribuir. Contudo, famílias nobres perderam subitamente seus membros, havia muito espaço para intrigas e disputas de poder se avizinhavam. O Conselho estava aberto para sucessores que quisessem ocupar uma cadeira, mas as circunstâncias faziam dele uma entidade sem força e praticamente inexistente, cujo vácuo seria preenchido por Czyran.
Causadora daquilo tudo, a esfera de Ishlav, exaurida, fora cerrada em um baú e enterrada nos arredores da propriedade dos Eczos, em Terras Férteis.
****
O Tonel era um cog com cerca de oitenta pés. Impulsionado por uma única vela quadrada e manejado por uma tripulação de dez pessoas, era comandado pela capitã Akelle, que acompanhava o embarque das últimas sacas de grãos e a chegada de Czyran Eczos, Stephen Dedalus, Mark e Zippack Ranzz. Por último veio Anders, acompanhado por Loig e levando uma grande quantidade de pertences. A previsão era de uma viagem de oito dias a partir da Baía Kelen e pelo Mar dos Segredos, apenas possível graças a uma rota que não incluía paradas nos portos de Rarrow e Kaparin, em Ancuan, e Mullen, em Iscobal. Dedalus, Mark e Zippack uniram-se à tripulação, assumindo tarefas menores já a partir de partida para Qi, enquanto Czyran, financiado por nobres locais e levando consigo uma carta de intenções e boa-vontade em relação aos esforços de guerra da Ordem da Verdade, era um passageiro.
Além da capitã, o Tonel levava seis marinheiras e uma responsável pela cozinha e mantimentos, um imediato e um oficial de carga. Mesmo com os cinco novos integrantes, estava mantida a maioria feminina que garantiria boa sorte à viagem, como manda a crença da Marinha Mercante do Reino de Ghan. Era final de tarde, momento de deixar Glavis.
****
Em seu primeiro dia no mar Mark se revelaria, entre cordas enroladas, nós desfeitos e um enjoo interminável, um péssimo marinheiro. Exatamente o contrário de Zippack, cujas tarefas de auxiliar na cozinha garantiam à tripulação as melhores refeições em muito tempo, para desagrado de Ziona, que supervisionava com zelo o espaço exíguo que antes era apenas seu. Navegar era muito mais simples do que voar, raciocinava ele. Dedalus tratava com o imediato e a capitã a respeito de métodos de orientação pelas estrelas, enquanto Czyran tentava se aproximar de Anders, um passageiro arredio e de ar doentio, responsável pela primeira parada do Tonel, em Ilhas Aras.
Dois botes deixaram o Tonel naquele final de tarde em sua direção. Levavam Anders, Czyran, Mark, Dedalus, o imediato London e a marinheira Amanethes, além de toda a bagagem do passageiro. As Ilhas Aras eram um bastião de independência, violência e morte situada no calcanhar da Península do Escorpião. Com suas praias pedregosas e montanhas permanentemente cobertas de neve, seria um destino pouco convidativo mesmo que nela não habitassem os Jaekels, uma população primitiva e conhecida por idolatrar deuses-animais e realizar modificações nos próprios corpos utilizando Numenera. Anders pretendia realizar observações desse grupo, mas as pequenas gaiolas presentes no acampamento montado em visitas anteriores diziam que sua intervenção poderia ser mais ativa do que se permitia revelar.
Foi deixado ali sob auspícios de boa sorte.
Zippack, tendo preferido a segurança do Tonel, teve uma experiência peculiar. Já percebera que seus pertences haviam sido objeto da curiosidade alheia, e durante o dia, sozinho na cozinha, sentiu como se alguém lhe observasse e fizesse companhia. Até então, desconfiava de algum truque da insatisfeita Ziona. Naquele final de tarde, viu a capitã Akelle conversando com uma pessoa. Suas feições não permitiam dizer se era homem ou mulher. Quando questionada, Akelle estranhou a abordagem, pois não conversara com ninguém e nem havia no Tonel ninguém que correspondesse à descrição de Zippack. Intrigado, vasculhou a embarcação tanto quanto pode, nada encontrando. Quando seus companheiros voltaram, não conseguiu relatar o ocorrido. Sentia que algo estranho havia se passado, mas não lembrava o que era.
****
Os dias seguintes foram tranquilos. O Tonel avançava veloz, ultrapassando Rarrow e se aproximando do estreito entre as Ilhas da Última Migração e o continente. Mark dava lições de espada para Amanethes. A marinheira pretendia deixar a Marinha Mercante de Ghan e retornar a sua família, em Keford, em conflito com um nobre de Navarene que reclamava o direito sobre a Floresta Oeste. London, enquanto isso, entretinha a tripulação com histórias a respeito da Pedra Sorridente, um artefato capaz de trazer paz a pessoas e nações. Segundo ele, a pedra era levada ao norte por uma embarcação da Esquadra Vermelha quando foi afundada por gaianos que não desejavam a conciliação com os Nove Reinos.
A menção veio junto com o aviso de que uma armada se postava no caminho do Tonel. Akelle buscou tranquilizar a tripulação. A Esquadra Vermelha era formada por exploradores dos oceanos e estudiosos, e certamente estaria realizando algum tipo de pesquisa na região. Pirataria não era algo a se temer deles. Foi então que um submergível se postou junto ao Tonel. A escotilha, feita de material semelhante à pedra coberta de corais, se abriu e dela um homem solicitou que seu ingresso na embarcação fosse facultado.
O capitão Pierce dirigia-se somente à oficial de mesma patente, e juntos retiraram-se ao aposento de Akelle. Neste momento, era possível ver a Esquadra Vermelha abordando outras embarcações rumando ao norte. Aproveitando-se da distração proporcionada por aquele evento inesperado, e pelo emanador sonoro trazido pelo imediato de Pierce - o dispositivo enchia o convés com sons retirados do fundo do mar -, Zippack discretamente dirigiu-se ao compartimento de carga do Tonel. A sensação de uma presença o perturbava, e este era o único local que ainda não vasculhara com cuidado.
Ali embaixo, sobre duas sacas de grãos alinhadas como que para servirem de cama, ele encontrou um estranho objeto.
Àquela altura, Pierce e o imediato já estavam de volta ao submergível e a capitã Akelle explicava à tripulação o motivo de subida a bordo. A Esquadra Vermelha procurava algo em embarcações saídas de Glavis. Não diziam do que se tratava, mas parecia algo portátil, pois até mesmo gavetas foram vasculhadas. Contudo, o Tonel era uma embarcação amiga, e sua passagem foi admitida depois de uma visita protocolar.
Czyran, Mark, Dedalus e Zippack desconfiavam que a Esquadra Vermelha buscava o objeto encontrado pelo último. Tratava-se de uma espécie de óculos, com visor polido e hastes um pouco longas demais. Mais estranho eram os apêndices que se projetavam da parte superior do visor e tinham nas pontas pequenos orifícios de sucção, como se feitos para serem presos em diversas partes da cabeça do usuário e emitirem pequenas descargas elétricas.
E a viagem ainda estava na metade.
Hentges:
Capítulo 10 – Os Trabalhadores do Mar dos Segredos (Parte Dois)
Dedalus ajustava o dispositivo à cabeça com alguma dificuldade. Ele era ligeiramente maior do que o adequado a um rosto humano. Já os eletrodos, um arbusto de fios eletrificados partindo do alto do visor, pareciam uma adição posterior à peça. Seu posicionamento adequado contava com a ajuda de Czyran, o segundo mais capaz na compreensão da Numenera. Mark e Zippack apenas observavam enquanto os arranjos para o teste eram feitos, todos apertados no pequeno cômodo que servia ao nobre.
O dispositivo tinha função semelhante à do registrador sonoro trazido a bordo do Tonel pelo imediato do capitão Pierce, ainda que mais complexo. Suas lentes eram capazes de registrar, por alguns minutos, tudo aquilo para que seu usuário olhasse, com imagens e sons podendo ser consultados posteriormente. Utilizado com os eletrodos corretamente posicionados, incutia memórias vívidas dos fatos gravados, permitindo que conversas fossem reproduzidas palavra a palavra e imagens recordadas em cada detalhe. Um recurso extraordinário, mas de efeito temporário.
A discussão que se seguiu tratou da maneria como o dispositivo foi encontrado, seu propósito e verdadeiro proprietário. Tomaria a madrugada inteira, não fosse o grito de surpresa e admiração que a interrompeu.
– Rhog!
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Os cerca de oitenta pés do Tonel significavam pouco mais de vinte metros. E o rhog, nadando ao seu lado, era tão grande quanto. Toda a tripulação estava à murada, observando a criatura que agitava enormes quantidades de água sem que nenhum ruído fosse ouvido. O prodígio era possível graças às vinhas que cresciam no dorso do rhog, um material raro e valioso. Foi Amanethes, marinheira a quem Mark vinha dando aulas de esgrima, a primeira a manifestar o desejo de descer. Com a ajuda de seu instrutor, ela arranjava cordas e iniciava os preparativos. A perspectiva de ganhos com as vinhas lhe davam a coragem necessária para correr tamanho risco.
Zippack e Dedalus, contudo, tinham planos próprios.
O primeiro carregava consigo há semanas um autômato de combate de porte médio. Pouco menor do que uma mulher adulta, tinha nos lugar de mãos serras circulares afiadíssimas. Em combinação com uma manopla manipuladora de metais, esta saída da sacola de Dedalus, seria possível alcançar, remover e trazer a bordo um ramo das preciosas vinhas. E assim foi feito. Amanethes, de quem partira a ideia de descer até o dorso do rhog, foi impedida pela capitã Akelle. O animal era dócil, mas poderia reagir a um novo ferimento, mesmo que superficial. Descer significaria colocar em risco o Tonel, a viagem e toda a tripulação.
– Não haveria riscos se eu recebe por mais do que o transporte de grãos.
Silêncio no convés. Pela primeira vez, em alto e bom som, a autoridade da capitã era afrontada e os receios financeiros da tripulação revelados. Akelle repetiu sua ordem, restabelecendo a autoridade, mas foi a ação de Dedalus que encerrou a questão, ao cortar as cordas que sustentariam a marinheira.
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A necessidade de shins para retornar a Keford foi o que provocou a insubordinação de Amanethes. Sentia-se traída pela passividade de Mark diante de Zippack e Dedalus, e ainda estava abalada quando a Czyran a abordou. Não fazia sentido partir de Glavis para uma viagem sem paradas até Qi durante um período de intensa movimentação comercial. O Tonel poderia levar Numenera, armas, soldados. Em lugar disso, transportava grãos e tripulantes não treinados pagando metade ou menos do custo da viagem. Ao que parecia, suas preocupações eram compartilhadas por toda tripulação.
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– Dedalus, eu gostaria de agradecer pelo que você fez.
– Foi necessário.
– Perigoso, mas necessário.
– Ela não desceria sem a corda. Era a maneira mais rápida de acabar com aquilo.
– Obrigada.
– Não foi nada.
– Eu vi você tratando com London a respeito de alguns mapas.
– Sim. Identificação de constelações e formas de orientação.
– Eu gostaria de falar a respeito.
– Ótimo. Vou reunir meus livros e mais tarde podemos ver as estrelas.
Só depois Dedalus percebeu o que disse. É só então deu-se conta de que Akelle sorriu.
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– Lorde Eczoz, o senhor teria um instante?
– Pois não.
– Sou o imediato. London. Não sei se o senhor lembra.
– É claro.
– Eu gostaria de fazer um pedido. Uma oferta.
– Pois não.
– O senhor parece uma pessoa educada. Alguém de posses.
– Sim.
– E já deve estar ciente do descontentamento da tripulação.
– Parece que temem receber um pagamento reduzido por esta viagem.
– Sim. É verdade.
– Posso ajudar de algum modo?
– Bem, eu gosto de colecionar histórias. Coisas que eu ouço e que me contam. E algumas dessas histórias são dos mares do norte. Veja, a tripulação acredita que a rota entre Glavis e Qi é a mais lucrativa, mas estão errados.
– E qual seria a sua ideia?
– Existem certos lugares no norte a respeito dos quais se contam muitas histórias. Lugares que podem ser explorados e dos quais lucros podem ser obtidos. Mas é preciso investir.
– E você espera que eu faça isso?
– Peço apenas que leia os meus registros. Se eles forem interessantes aos seus olhos, talvez o senhor possa se juntar a mim numa conversa com a capitã. Quem sabe convencê-la a respeito da possibilidade.
– Vou ler com o maior prazer e atenção.
– Muito obrigado. Muito, muito obrigado.
Os textos de London tratam da Praia, na costa além do Campo sob as Nuvens de Cristal, um paraíso de areias brancas e árvores coloridas, na costa do Mar Corare, onde ninguém nunca se estabeleceu. Seria por causa dos Taru-Taru, uma raça de visitantes que habita uma embarcação submersa ancestral. Eles caçariam escravos com tecnologia misteriosa. Talvez estejam construindo um exército ou tentando reparar sua nave. A Praia é considerada um lugar de má sorte, e marinheiros a evitam não só pelos desaparecimentos, mas pelos aparecimentos também. Luzes noturnas planariam sobre as águas próximos de uma grande estátua com três faces.
Czyran leu tudo aquilo com atenção, organizou referências em seu tempo livre e concordou em falar com a capitã Akelle, assim que a ocasião se apresentasse.
****
Os quatro estavam nos porões do Tonel. Ali, sacas de grãos tomavam praticamente todo o espaço, com estreitos corredores junto ao casco e numa passagem central. Não mais do que o estritamente necessário ao escoamento da carga e aos eventuais reparos da embarcação. Já haviam estado ali antes, mas agora traziam consigo o visor encontrado dois dias antes. Dedalus o usava.
– Oi.
Era difícil saber se aquela pessoa era um homem ou uma mulher. Era jovem e se vestia com roupas puídas. Sua presença ali, no mesmo local onde Zippack encontrara o visor, causava espanto. Estava sentado sobre sacas de grãos, com as pernas envolvidas por braços magros.
– Quem é você? Como entrou aqui?
– Eu embarquei em Glavis.
– E como se escondeu todos esses dias?
– Eu não me escondi. Já conheci todo o navio. Falei com todo mundo. Só que ninguém lembra.
– Ninguém lembra?
– É. Já faz tempo que é assim.
– Esse dispositivo é seu?
– Sim, o Visualizador. Eu deixei aqui. Tem um homem que vem aqui de vez em quando. Eu queria conversar. Deixei para ele encontrar e lembrar de mim. Queria conversar.
– Ela está falando de Stolinson, o responsável pela carga.
– Ela ou ele?
– Eu não sei. Quando eu nasci, era menino, ou menina. Mas daí decidi ser menina, ou menino. Não lembro direito. Eu troquei muitas vezes. Até que chegou uma hora que eu não sabia mais quem eu era. Então, as pessoas também não sabiam. Elas começaram a me ignorar, e logo depois simplesmente esqueciam que tinha falado comigo. Eu me chamo Glifo.
– Você já falou com algum de nós?
– Sim, com todos. Mark me contou do exército, em Thameor, e da sua briga com o capitão. Zippack me disse como conseguiu seu navio voador. Czyran contou dos problemas que seu braço causa. E Dedalus falou do homem das estrelas que ele espera reencontrar.
– E nós vamos esquecer você depois dessa conversa?
– Sim. Menos o Dedalus, que está usando o Visualizador. Pelo menos por um tempo.
– Ele é seu?
– Sim. Preciso dele, se não as pessoas esquecem. Por isso quero ir para Qi.
– O que quer lá?
– Ser como vocês. Normal. Que as pessoas tenham saibam quem eu sou. Me disseram que Qi é muito grande. Alguém lá talvez consiga me ajudar.
– Nós podemos ajudar.
– Vocês vão devolver?
– Sim. No final da viagem.
– Eu preciso dele.
– Nós vamos devolver.
– Está bem.
Um passageiro que fazia o que bem entendesse, capaz de despertar conversas tão pessoais, do tipo que se tem apenas consigo mesmo, em voz alta, e sem que ninguém pudesse lembrar de sua presença. Aquilo perturbava os quatro, mas ao menos por enquanto, não sabiam o que fazer a respeito, se é que algo houvesse a fazer. Como precaução, reviram as imagens do Visualizador. Logo após deixar os porões, já nenhum lembrava da conversa com Glifo, mas o registro permitia que ao menos tivessem alguma compreensão do que se dera ali. Czyran, como prevenção adicional, passara a anotar cada fato relevante do dia, esperando que um eventual encontro inesperado acabasse registrado em um pedaço de papel ou pergaminho.
****
Era a segunda visita de Dedalus à cabine da capitã. Na primeira ocasião, ela se mostrara uma figura mais amena, distante da exigência de autoridade do convés. Akelle parecia ressentida por ter de esconder dos subordinados uma informação que espantaria seus temores pecuniários e desanuviaria o ambiente. Mesmo na segunda conversa, Dedalus não conseguiu descobrir a que se referia a capitã. Suspeitava de que fosse o Glifo, ou ainda aquilo que a Esquadra Vermelha procurou em vão.
Naquele segundo encontro, Akelle tinha menos a dizer. Preferia satisfazer necessidades que também eram de Dedalus.
****
Batidas à porta. Czyran reconheceu o fio de voz de Glifo.
– Eu peguei.
– O que você quer?
Czyran guardava o visualizador consigo. Usava-o quando abriu a porta.
– Eu peguei.
Glifo tinha nas mãos um pano enrolado. O estendia na direção de Czyran.
– Deve ser importante. Estava escondido.
– O que é isso?
– A capitã guardava na cabine dela. Ela estava com seu amigo, Dedalus. Peguei enquanto estavam distraídos.
– Chame os outros. Peça que vão ao porão. Deve estar vazio agora. Logo encontro todos lá.
Estendido sobre a cama, o pano revelou-se uma pintura. Um campo de batalha. Nada indicava um confronto histórico. Havia algo de fantasia e delírio na imagem. Violência e crueldade pareciam se desprender daquelas tintas.
Depois de Czyran esconder a pintura entre os objetos de sua cabine, e Glifo despertar os outros três no convés, encontraram-se no porão do Tonel.
****
Lá embaixo, os ânimos pouco refletiam a tranquilidade da madrugada que o Tonel atravessava, a apenas um dia de Qi. Czyran considerava absurdo o que Glifo havia feito. Zippack sugerira claramente que deveriam se livrar da passageira da qual ninguém lembraria. Para Mark, o roubo da pintura era errado, mas não justificava a exaltação do primeiro. Dedalus, algo distraído, era o mais calmo deles. Pensava em Akelle.
– Eu preciso do Visualizador. Ele é meu. E o pano que peguei da capitã, deve ser valioso. Estava trancado.
– O que você fez foi roubar.
– Troquem comigo. Eu não vou mais fazer isso.
– Você poderia simplesmente ter pego o Visualizador.
– Eu não faço isso. Só quando preciso. Você foi bom comigo, Czyran. Eu queria dar algo em troca.
O melhor a fazer seria devolver aquilo antes que a capitã desse falta. Como explicar que a pintura havia sido pega por alguém cuja lembrança não se retinha? Decidido, Czyran atravessou com Glifo a escotilha para o convés, apenas para darem de frente com London, o responsável daquela madrugada.
– O que essa menina faz aqui?
Ao levantar a voz, o imediato despertou todos que dormiam no convés. Czyran tentou, mas a situação era complexa demais, exigia reflexão demais. Cercado pelo alarido dos tripulantes do Tonel diante de uma clandestina, nada conseguiria justificar. Glifo, contudo, objeto do interesse de tantos, revelava uma insuspeita aptidão para ser o centro das atenções, fazendo o necessário para assim permanecer, nem que, para tanto, fosse necessário revelar todos os seus passos recentes e o envolvimento de Czyran, Dedadus, Mark e Zippack neles. A ingenuidade daquele breve relato colocou a tripulação em estado de alerta, e trouxe a capitã Akelle ao convés.
– Quem é esse menino?
A pergunta não fazia sentido, as respostas obtidas dela também não. Ainda assim, um temor profundo transtornou a capitã, que retornou a passos largos até sua cabine. O que procurava lá fora escondido por Czyran. Ao retornar, Akelle pouco se importava com a presença do clandestino. O sumiço do bem mais valioso transportado pelo Tonel era sua única preocupação. Czyran se adiantou, confessando a posse da pintura. Pensa que devolvê-la será o bastante para abrandar o espírito por tempo o bastante até que a situação se esclareça.
– Crianças jamais se tornarão adultos.
A frase sai da boca de Czyran sem que ele tenha controle disso. A mão que estendia a pintura para Akelle se enrijeceu. Aos poucos, imagens de violência tomaram sua mente.
– Irmãos e irmãs aprenderão a matar.
Akelle também foi submetida ao apelo daquelas palavras. As tintas da pintura se misturavam aos seus pensamentos.
– Amigos farão amigos em pedaços.
A voz da tripulação juntou-se ao coro. Não era um cântico de guerra, mas uma prece de mortos. Zippack era um deles.
– Aqueles que se amam serão separados e a morte chegará cedo demais.
Mark e Dedalus foram poupados. London buscava ajudar Akelle a recobrar a razão. Amanethes sacudia uma companheira que usava os dedos para rasgar os lábios.
– Feito escravos, jovens obrigados a marchar.
Após tomar a pintura das mãos rijas de Czyran, Mark a levou de volta ao cofre na cabine da capitã. Fechou-o com um cadeado.
– E aqueles que ficarem aprenderão a odiar.
Czyran aos poucos era submetido pelas imagens de massacres. Zippack fazia pouco melhor por si, auxiliado pelos tapas e gritos de Dedalus.
– Os que tem poder mentirão mais. Os que não tem, obedecerão mais.
Mark tinha nos punhos a solução. Golpeava para que perdessem os sentidos e abandonasse aquele transe desperto. Entra a tripulação, os que tinham facas mutilavam-se.
– A guerra é a doutrina que se espalha.
Zippack conseguiu contornar a sujeição à violência das imagens que o assaltavam. Czyran, sem ter consciência disso, levava à garganta a lâmina que carregava consigo.
– Desonesta, aniquiladora e cruel.
Mark desacordou cinco tripulantes. London não teve a mesma sorte auxiliando Akelle, morta em seus braços, com os olhos arrancados do crânio. Dedalus olhava para um desorientado Czyran, ainda a se recobrar. Zippack ouvia o último suspiro de uma marinheira.
– Na guerra, Propaganda triunfa.
Hentges:
Capítulo 11: O Futuro a partir de Qi
O Tonel avançava ao sabor da consternação. A capitã Akelle, a marinheira Mia e Stolinson, responsável pela carga, estavam mortos. Sob o efeito daquela pintura insidiosa, mutilaram-se com lâminas e as mãos nuas. Jaziam no convés, sob sacos grosseiros que antes levavam grãos. O Glifo já era a lembrança de ninguém além de Mark, Zippack, Czyran e Dedalus. De algum modo, por conta das imagens que os tomou de assalto, sabiam todos ser a pintura que Akelle trouxera ao Tonel a responsável por aquilo. A tragédia apenas ocorrera a partir da intervenção dos quatro. Mas não estivessem ali, o horror talvez tivesse vitimado a todos. Essa tripulação dividida cabia a London manter estável o bastante para aportar em Qi.
Entre os pertences pessoais de Akelle pouco havia para descobrir a respeito de Propaganda, assim era chamada a pintura. As anotações da capitã limitavam-se a mencionar a necessidade de se reportar à Guilda dos Mercadores de Qi, um procedimento incomum sendo o cog parte da Marinha Mercante de Ghan.
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Novansko subiu ao Tonel no final da tarde. Avaliou a carga e os mortos. Ambos foram desembarcados, mas a tripulação permaneceria retida até a manhã seguinte. London, a quem caberia as justificativas, partiu com ele. As explicações foram acordadas entre toda a tripulação. Mia e Stolinson teriam se amotinado contra a capitã por conta do baixo pagamento pelo transporte de grãos. Acabaram os três feridos além dos recursos que o Tonel levava. Nada seria dito a respeito de Propaganda, mas dela muito se falara. Havia aqueles que acreditavam que a peça deveria ser destruída, colocada sob a responsabilidade da Marinha Mercante de Ghan ou entregue a quem contratou seu transporte. A última opção acabou escolhida. Era a única da três maneiras que daria acesso a recursos para pagar pelos serviços da tripulação e por seu silêncio.
Do alto do Tonel, Dedalus fez com que um bilhete fosse entregue por um moleque à Guilda dos Mercadores de Qi. Foi ele também o ultimo a falar com Glifo, ainda que dessa conversa não fosse lembrar. Devolveu-lhe o Visor de Memórias e recomendou que se dirigisse ao encontro dos Pais Pretéritos.
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Até o meio da manhã seguinte a notícia da morte de parte da tripulação do Tonel já se espalhara pelo porto. Talvez por isso, nenhum bilhete com resposta da Guilda chegara. Decididos a completar o acordo de Akelle, ainda que com objetivos próprios, os quatro saíram às ruas. Em vários locais anunciava-se a plenos pulmões a 1a Regata Aérea de Qi. Sobrevoadores de diversos tamanhos, muitos deles semelhantes ao Fus-K, levavam e traziam a população da Cidade no Alto, a porção mais rica de Qi, onde os abastados viviam, muitos sem jamais tocar o chão. No solo, trípodes biomecânicos, os zhevs, garantiam a segurança das áreas mais movimentadas, inundadas por pessoas de todo o continente e de locais muito mais distantes também.
A sede da Liga dos Mercadores de Qi era um enorme balcão de negócios, onde a burocracia da maior parte das transações comerciais dos Nove Reinos era registrada com litros de tinta e quantidades maciças de papiro. Infelizmente, apenas uma linha fora dedicada ao Tonel. Sua carga era uma doação da Liga à Catedral da Forma. Não havia, segundo o responsável pelo livro de apontamentos, necessidade maior do que essa. A Marinha Mercante de Ghan detinha autonomia sobre os detalhes de suas negociações, a respeito das quais a Guilda não interferia.
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A Catedral da Forma era uma construção que se parecia com todas, combinando vitrais suntuosos a paredes de barro, rocha grosseira resultando em zigurates cuidadosamente alinhados, como se todas as possibilidades pudessem ser indefinidamente acrescentadas a uma pedra fundamental. Na entrada, uma criatura solicitava o nome daqueles que adentravam à nave. Seus braços curtos estavam presos a uma escrivaninha, sobre a qual repousava um interminável livro de registros. As pernas eram debilitadas e os músculos escassos acomodavam-se sob a pele acinzentada. Sobre a cabeça piava ocasionalmente um pequeno pássaro de metal, engaiolado e comportando-se como algo vivo.
Lá dentro, quase todos eram mutantes, a maioria com marcas muito evidentes disso. Czyran, que já dispensara a luva usada para esconder sua condição, foi abordado por Hristo. Vestia-se com os trajes simples, os preferidos por aqueles que adoravam Nomothet. O Deus da Carne era vividamente representado numa escultura cuja intenção era a mesma da Catedral. Uma pessoa destinada à transformação a partir de um princípio original e impermanente.
Torsos, membros, olhos e órgãos internos misteriosamente preservados estavam expostos na nave, todos apresentando algum grau de mutação. Uma das criaturas que os recebeu à porta fora seccionada numa série de momentos, como que para a revelação dos vários estágios de sua feitura. Eram chamados de Escrevinhadores.
Hristo, cuja metade do rosto era cinzenta e desprovida de pelos, com um dos olhos anormalmente alongado, nada sabia a respeito de Akelle. Ele foi responsável por receber a doação trazida pelo Tonel, uma generosidade da Guilda dos Mercadores de Qi que contou com o auxílio de um feitor chamado Dimas. Hristo lamentou a morte da capitã, da qual ouviu falar superficialmente, mas nada mais tinha a acrescentar.
Antes de despedir-se, reforçou o convite a Czyran para uma nova visita. Então, dirigiu-se até um nobre cuja voz exaltada perturbava o ambiente.
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De volta à Liga dos Mercadores, agora sabendo quem foi o provável receptor do bilhete enviado na noite anterior, um encontro foi marcado. Dimas não pôde falar-lhes naquele momento, mas seria aguardado à noite na taverna onde estão hospedados, na região do porto.
Sentaram-se separados. Mark e Zippack, Dedalus e Czyran. Supunham que as roupas deste último, denunciando sua condição de nobreza no salão daquela espelunca à beira da Baía da Lua, atrairia Dimas. Apenas Zippack o vira, de relance, na segunda visita à Liga. Passados alguns minutos após o horário marcado para o encontro, uma confusão entre um jovem e o dono do lugar teve início. – Ela está morta, você não sabia? Quer falar com uma morta, garoto? – Dimas não viera, mas mandara um recado, entregue por um rapaz temendo uma surra ou coisa pior. Esperava que a entrega se realizasse mais tarde, quando a promessa à capitã seria cumprida. O representante de Akelle deveria comparecer sozinho.
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Zippack levava Propaganda em um tubo para acomodar mapas. O ponto de encontro ficava em meio a um labirinto de ruelas estreitas, distante o suficiente da região central para evitar o patrulhamento dos zhevs. Quem o esperava se deixou ver em meio às sombras. Por baixo da capa, a empunhadura reluzente do que poderia ser uma espada ou faca de lâmina larga. Trocaram breves palavras, demonstrando a pouca disposição de ambos para surpresas e ardis. Após ter conferida a qualidade do pano utilizado na tela, Propaganda foi levada dali.
A pequena caixa que Zippack recebeu em troca cabia na palma da mão. Seus símbolos, segundo Dedalus, eram termos como destino, encontro e guia. Se parecia com uma bússola, mas apontava não ao norte, mas a noroeste. Czyran lembrou aos demais as histórias anotadas por London a respeito da Pedra Sorridente, a Esquadra Vermelha, tesouros e seres de outros mundos habitando as profundezas do Mar Corare.
Era arriscado demais para que pudessem resistir.
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Havia muito o que fazer ao longo dos dias seguintes, quando Qi se preparava para a sua 1a Regata Aérea.
O primeiro e mais importante passo foi relatar a London o resultado da negociação envolvendo Propaganda. O imediato ainda encontrava-se abalado pela perda de Akelle, e não seria diferente para o restante da tripulação. A Marinha Mercante de Ghan havia pago um valor modesto a todos pela viagem de Glavis até Qi e descomissionara o Tonel. A possibilidade de navegar aos mares do norte animava o velho marinheiro, e quem sabe fizesse o mesmo pelos demais. A inciativa era arriscada, e precisariam de pelos menos 10 mil shins para uma embarcação e mantimentos.
Stephen Dedalus concentrou-se no contato com a Ordem da Verdade. Esperava ser recebido por Pai Onald, de quem Pai Loig falara, ainda em Glavis. Responsável pelo contato com pessoas que prestavam serviços aos Pais Pretéritos, mas não eram membros, Pai Onald fazia o possível para receber Dedalus com a atenção que seu tempo escasso permitia. Aparentemente, uma grande surpresa aguardava a população de Qi ao final da 1a Regata Aérea, e por Pai Onald passavam os arranjos necessários à misteriosa revelação. O seu interesse na tragédia ocorrida em Glavis fez com que Dedalus recomendasse a Czyran que evitasse a Ordem. Poderiam ser relacionados aos acontecimentos, algo de que certamente não precisavam.
Impedido pela prudência de realizar seu propósito em Qi, Czyran Eczoz imaginava dividir sua atenção entre a nobreza local, a quem a boa vontade dos nobres de Glavis em relação à guerra dos Pais Pretéritos poderia interessar, e a Catedral da Forma, onde talvez aprendesse mais a respeito de mutações. Para sua surpresa, nobres e mutantes tinham ali um inesperado espaço de congregação discreta, uma informação que aos poucos Hristo lhe cedeu. Essa foi a razão da doação de grãos, pagamento por uma entrega muito especial realizada a uma nobre chamada Vita Severn.
Mark tinha a expectativa de vender sua habilidade de combate da maneira mais lucrativa possível. Descobriu, contudo, que ela seria necessária para a preservação da própria cabeça, posta a prêmio. Membros do exército de Thaemor já há algum tempo buscavam trabalho como mercenários em Qi. Trouxeram consigo a notícia de que um certo desertor que apunhalou seu capitão valia 300 shins, pouco importando se vivo ou morto. Gerard fez a revelação ante a espada de Mark, pouco depois de uma emboscada frustrada que deixou dois mortos e por pouco não envolveu um zhev. O nobre local que pagaria o prêmio chamava-se Vilerm Akefie.
A visão dos sobrevoadores enchia Zippack Ranzz de esperança. Quem sabe ali conseguiria um substituto à altura do Fus-K e faria pelos ares a viagem ao norte. A aproximação da 1a Regata Aérea lhe parecia uma boa oportunidade para tanto. Nos bastidores, repleto de nobres, capitães aéreos e todo o tipo de especialistas em Numenera, avistou um rosto conhecido. Choen Mohsen, líder do Conselho de Nobres de Ishlav e autora de uma oferta pelo Fus-K, estava em Qi. Lamentou saber que o sobrevoador de Zippack fora destruído. Com algumas modificações, ele seria um concorrente digno na regata. Contudo, seu antigo condutor representaria uma adição interessante à equipe que Mohsen estava formando.
Já há alguns dias, conforme os mais importantes convidados para a regata chegavam à cidade, o Salão Policromático se convertera no local favorito daqueles que dispunham dos recursos para desfrutar de arte e de boas conversas trezentos metros acima do solo. Czyran chegara ali pela força do próprio sobrenome, trazendo Mark a tiracolo. Zippack era convidado de Choen Mohsen, enquanto Dedalus contara com a gentileza de Pai Onald. Do alto do Salão Policromático seria dada, dali a poucos dias, a largada para 1a Regata Aérea, a qual, após vencidos vários obstáculos que exigiriam grande habilidade das equipes de cada sobrevoador, se encerraria sobre o Durkhal, a sede da Ordem da Verdade, uma verdadeira cidadela dentro de Qi. No momento, o Salão era objeto de uma gloriosa exposição organizada por Vita Severn. Arte e Numenera tinha entre suas peças a representação viva do Deus da Carne, cortesia da Catedral da Forma. A obra principal, um quadro finalizado recentemente por Jacopo de Glavis, criação definitiva do mestre antes de seu suicídio, apenas seria revelada no dia da regata. Mark, Zippack, Czyran e Dedalus sabiam exatamente o que era e o que poderia fazer.
Flanando pelo salão, cada qual com seu quinhão de graça social, foi possível descobrir que Vilerm Akefie e Vita Severn eram parceiros, sendo que o primeiro possuía algum grau e ascendência sobre a segunda. Além disso, a presença de uma obra “glorificando” a Catedral da Forma contrariava a Ordem da Verdade, que via o culto como uma aberração e deturpação da Numenera. Severn era considerada corajosa e imprudente em igual medida por seus convidados. A Ordem, por sua vez, parecia cada vez mais distante de seus nobres financiadores, que sentiam-se como meros baús de shins prontos a serem espoliados em favor de uma guerra que ninguém desejava e, pior, aos poucos aumentava o poderia militar de Navarene, irmão e rival ao norte de Draolis.
Naquela mesma noite, um acordo complexo foi costurado. E ele começou a ser feito a partir de uma boa dose de conflito.
Vilerm Akefie era o interlocutor e líder informal de um grupo de nobres que buscava alternativas ao conflito aberto com os gaianos, dos quais pouco se sabia de concreto além da antipatia genocida que despertavam no Pai Âmbar, Durranet VI, líder da Ordem da Verdade. Foi por iniciativa de Akefie que A Pedra Sorridente foi embarcada há um ano em um navio comandado pela Esquadra Vermelha. Seu destino era Theosis, de onde deveria seguir viagem. Ela levava uma mensagem de paz e boa vontade em um momento muito distinto do atual. Por razões desconhecidas, nunca chegou ao destino e sua tripulação jamais foi encontrada. Acreditava-se que o naufrágio tivesse ocorrido nos arredores das Ilhas Ashuri. Destino Sorridente foi criado para encontrar o artefato, mas sua precisão jamais foi confirmada. Além disso, Akefie desconfiava que a Esquadra Vermelha teria interesses particulares e nebulosos na viagem, tendo o naufrágio sido causado por eles. Uma expedição de resgate não poderia ter sua participação. Contudo, isso não dava direito de Vita Severn negociar Destino Sorridente sem o seu conhecimento.
Vita Severn, por sua vez, defendia que Propaganda era a peça mais importante de sua exposição, e apenas uma substituição à altura faria com que desistisse de exibi-la. Não havendo como confirmar com segurança o relato de Mark, Zippack, Czyran e Dedalus a respeito do perigo que ela representava, os quatro acenaram com uma solução inesperada. Uma combinação de arte e Numenera que ninguém iria esquecer. Ou melhor, lembrar.
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Com a recompensa por sua cabeça retirada por Vilerm Akefie, Mark caminhou por toda a Qi, na vã esperança de ser abordado pelo Glifo e disso se recordar. Dedalus buscou fazer o mesmo, mas junto da Ordem da Verdade. Infelizmente, com a aproximação da regata, os Pais Pretéritos tornaram-se mais restritivos em relação à circulação no Durkhal. Zippack estava mais interessado no trabalho no sobrevoador de Mohsen, e tinha certeza de que o Glifo o evitaria, se pudesse. Czyran foi quem teve mais sorte, sendo encontrado mais do que encontrando-o/a.
– Eu ajudo você, Czyran.
Glifo precisou de poucas palavras para explicar que permanecera por perto a maior parte do tempo.
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De posse do Visor de Memórias, era um problema que apenas cabia a Vita Severn decidir como o Glifo se tornaria o centro das atenções de toda a nobreza de Qi e dos Nove Reinos, papel para o qual ele/a demonstrava ansiedade. Propaganda foi queimada sem jamais ser contemplada novamente. Com o suicídio de Jacopo, esperava-se que isso desse fim à possibilidade de morte em massa que a tela representava. Os esforços dos últimos dias bastaram para que fosse conquistada a confiança de Vilerm Akefie, mas ainda não havia recursos para financiar o substituto do Tonel. A maior parte da nobreza de Qi preferia a extorsão pontual dos Pais Pretéritos ao desafio direto à Ordem. Quem dispunha dos shins necessários era Choen Mohsen. Mas ela apenas cederia os valores em troca da prestigiosa vitória na 1a Regata Aérea de Qi.
Felizmente, Zippack e Dedalus, além de mais alguns tripulantes, foram capazes do feito. Os dois garantiam no ar os recursos para a partida que Czyran e Mark preparavam na orla. Foi dali, dos céus e da costa do Mar dos Segredos, que os quatro contemplaram aquilo que os Pais Pretéritos preparavam para assombrar os Nove Reinos. Uma gigantesca embarcação partiu do Durkhal para lançar sobre Qi sua sombra, movida pela faiscante energia dourada que os quatro já conheciam e associavam às esferas que tanta tragédia causaram. Era O Doutrinador, a arma definitiva da Ordem da Verdade, cuja conclusão significaria a destruição dos gaianos e de tudo mais que ficasse em seu caminho.
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