-Ano de 250-
Movna acordou de súbito e rapidamente colocou uma faca contra a garganta do invasor.
-Bom dia Mov. Estão tendo uma reunião importante no quarto do Cap e me pediram para te acordar. - Foi a resposta que teve. De pé ao lado da cama estava Ilsa, uma mulher de cabelos marrons, vestida com uma camisa amarela leve e seu usual colete azul elétrico, os bolsos de seu traje recheados de papeis e mapas. Um de seus cotovelos estava enfaixado por uma gaze manchada de vermelho e havia palidez em seu rosto. Em seu pescoço estava encostada uma arma de aço frio e em seus olhos a curiosidade atenta que poucas pessoas conseguiam manter. - Eu estou começando a achar que você não deveria ter tantas armas em seu quarto.
Movna respirou profundamente para se acalmar e então guardou a faca em uma das várias bainhas listradas presas á parede ao lado da cama. - Me desculpe Ilsa, mas você deve parar de me acordar repentinamente. Eu não quero ser descuidada algum dia e te ferir. – Disse. Lentamente se acostumava com o mundo das pessoas despertas. Em sua mente tentava remontar todos os acontecimentos do dia anterior.
-Eu tentei, eu bati na sua porta por algum tempo antes de entrar para ver se você ainda estava viva. E estava viva, claro. Mas então eu chamei seu nome, gritei por algum tempo e só consegui uma resposta quando encostei em você, o que me lembra: Por que você tem tantas armas na parede?
-Elas são importantes Ilsa, para minha cultura e segurança. - Ela esfregava sua testa enquanto tentava montar lembranças. Movna se lembrava de tudo o que ocorrera no planeta Lumière, de estar viajando de volta ao Robalo a bordo do Escaravelho, a horrível sensação em sua cabeça, o capitão Jonas manchado de sangue, Ilsa e Eli tentando não mostrar preocupação e a mulher de cinzento esperando calmamente pelo fim da viagem. Não conseguindo suportar os efeitos de uma viagem através da área sem gravidade ela desmaiou, acordando brevemente quando chegou ao navio e se dirigindo desajeitada ao seu quarto como um viajante bêbado. Ela desmaiou novamente no instante em que chegou á sua cama. - Me fale mais da reunião enquanto eu me visto adequadamente.
Ambas estavam em um dos quartos pessoais do Robalo, destinados aos passageiros mais importantes. Um local dotado de um pequeno armário de madeira gasta pelo tempo, uma cama destinada á uma única pessoa e um grande saco de areia pendurado no teto. Diversas roupas, lençóis, armas, estátuas, livros e outros objetos de decoração estavam espalhados pelo chão, qualquer visitante que chegasse teria dificuldade de ver a madeira por baixo deles. A parede era marcada pelas facas decorativas - Mas ainda afiadas -, um espelho e pela pintura de um grandioso titã flamejante. Ela se levantou, ainda sentindo o peso da sonolência em seus ombros, e andou até o espelho.
-Para começar nós já saímos da estação e estamos parados em uma área vazia longe de qualquer planeta, e de qualquer pirata sujo eu espero. Cap e os outros se reuniram no quarto dele para decidir qual será nosso percurso agora, eu sugeri seguirmos a corrente da barracuda por não terminar em uma área de piratas, mas eles ainda estão pensando no assunto. - Ela cruzou os braços e olhava para cima enquanto se lembrava de qualquer coisa importante que deveria ser citada. O quarto estava claramente iluminado, estando no período diurno artificial do Robalo. - O Cap está bem e já está melhorando, eu tinha certeza de que isto iria acontecer por que a Cécil estava responsável por ele. Eu ficaria mais preocupada com o Lai, ele chegou a ameaçar bater no capitão com um objeto de metal.
-Ele disse que objeto seria? - Perguntou Movna enquanto examinava sua camisa. Ainda estava vestida com o uniforme de guarda que ela usara para se disfarçar, uma camisa branca de mangas longas marcada pelo logotipo de uma empresa de transporte.
-Para dizer a verdade, não. Mas para ter certeza eu roubei a estátua de bronze que ficava na mesa. - Disse Ilsa.
-Eu não me preocuparia, Eli costuma ser mais específico em ameaças sérias. - Para sua surpresa Movna gostava de sua aparência naquele uniforme. Embora estivesse amassado e marcado com gotas de sangue, obviamente inadequado para uma reunião. Ela estava com pressa e decidiu simplesmente vestir seu poncho e seu capacete por cima. - Espere, você simplesmente pegou a estatua ou roubou ela?
Ilsa balançou os ombros. - Ainda estou decidindo.
Movna ignorou o comentário e continuou procurando por seu uniforme Agnae, já com a dúvida e o medo de ter perdido aqueles objetos no Escaravelho ou talvez no próprio Lumiére.
Até o momento em que Ilsa lhe jogou uma bola de pano, o capacete emplumado enrolado por um poncho cor de areia. O pano e as penas estavam visivelmente amassados, algo que incomodava Movna por serem objetos feitos cuidadosamente á mão, mas ainda sim de aparência aceitável para uma reunião informal. Ela os vestiu rapidamente enquanto a timoneira do Robalo apenas olhava em volta.
-Eu não quero ser incomoda, mas... O seu quarto é horrivelmente desarrumado. - Disse a mulher de colete azul, mexendo em uma meia jogada em cima da cama.
-Nós chamamos isto de "caos organizado". - A Agnae respondeu com um tom paciente enquanto colocava o capacete em sua cabeça, cobrindo a parte de cima de sua cabeça, sem bloquear a sua visão. - Pode parecer um local desarrumado para outros, mas para mim todos os objetos estão guardados em um local adequado e prático.
-Faz sentido, mas como você ainda não encontrou suas botas? – Ilsa disse, apontando para os pés da Agnae cobertos apenas por meias brancas.
A mulher do capacete emplumado olhou ao seu redor por alguns momentos, começando a ficar irritada com os atrasos que apareciam e faziam com que deixasse os outros esperando. -Certo, eu prometo lhe explicar o porquê depois, mas agora eu realmente preciso que você me ajude a encontrá-las.
Em alguns minutos as duas saiam daquele quarto, devidamente calçadas. A timoneira se despediu e se retirou para a sala de onde ela controlava o curso do navio, onde também esperaria por ordens e o novo destino do Robalo. A Agnae andou apressadamente pelos corredores danificados de madeira, passando por trabalhadores do navio ocupados em manter a nau etérea em bom funcionamento, limpando as suas paredes, concertando o sistema de ar ou procurando por falhas em sua estrutura.
Em momentos, parava em frente á porta do quarto do capitão, tentando escutar por qualquer conversa que poderia ser interrompida por sua entrada. Havia um silêncio profundo. Em sua própria cabeça ela começou a criar imagens pessimistas do que poderia ter causado aquela quietude, como alguma luta que poderia ter acontecido ou um assassino silencioso. Como sempre, aquela nascida sobre a lua crescente apenas respirou profundamente e entrou pela porta.
Dentro, uma mulher de pé e duas pessoas sentadas em um semicírculo em frente á uma cama, nela estava Jonas completamente quieto, pálido e coberto de faixas, apenas sua respiração mostrando que ele estava vivo. Pendurado ao lado do capitão estava uma bolsa de sangue ligada ao seu braço.
Uma das pessoas sentadas, o tesoureiro Eli Aros, lhe deu um sinal pedindo por silêncio e lhe ofereceu uma cadeira. Na mesa de escritório atrás dele estavam pratos de sopa exalando vapor. Ela cuidadosamente fez uma saudação, se curvando com um braço em frente ao peito, e se sentou ao lado do Hominae Flora. De pé ao lado de Eli estava uma mulher esguia com cabelos negros amarrados em um rabo-de-cavalo com um avental sujo de sangue seco assim como as luvas de borracha que usava. Era Cecília Harlas que ao contrário do que sua aparência mostrava era violinista do navio. Sentado ao lado dela estava o ex-prisioneiro Elijah Tanoya, quieto e olhando fixamente para o chão, suas mãos - assim como as garras comuns á sua espécie - cobertas por luvas espessas de couro.
E por algum motivo ele também usava um avental.
-Jonas? - Movna perguntou enquanto se sentava e pegava uma das tigelas de comida. Parecia que anos haviam se passado desde que tivera sua última refeição.
Eli começava a formar palavras em resposta quando foi interrompido por Cecília Harlas - Ele já está se recuperando, todas as balas no peito dele foram retiradas e consegui também retirar os fluídos de dentro do pulmão. Com tratamento de lampreia e descanso vai se recuperar completamente em duas semanas. Mas me responda uma coisa... - Dizia calmamente antes de respirar fundo e continuar - O que vocês fizeram com ele em Lumiére? Obviamente tinham pedaços de metal no peito dele, mas também encontrei marcas de queimadura e de uma cirurgia improvisada. Tentaram ver até que ponto vocês conseguiam feri-lo antes de morrer?
-Hah! - O tesoureiro disse com sarcasmo escorrendo dentre seus dentes. - Ele não precisava de nós para isto. Mas não, ele esteve envolvido em um tiroteio devido á... Bem, ele foi atingido, a senhorita Jackie Darns que estava com ele tentou estancar os sangramentos com um aparelho de fogo que tinha, e segundo me contou ela conseguiu levar o capitão para uma farmácia onde tentaram tratar as feridas.
-O que aconteceu nesta reunião? - A Agnae perguntou entre colheres de sopa, esperando evitar uma discussão entre os dois. Durante este tempo todo ela mantinha Tanoya em seu campo de visão, atenta á qualquer ação dele. Mas, como fazia desde que o trouxeram da prisão para o Robalo, ele se mantinha quieto e facilmente esquecível.
-Bem, após Cecília retirar as balas presas nele e a anestesia deixar de fazer efeito, ele nos chamou para cá para decidir nosso próximo destino. -Eli dizia, apontando para um mapa aberto sobre a mesa, no qual havia anotações feitas à pena, marcando duas correntes de Éter próximas (A corrente da barracuda e a 32) e por algum motivo o minúsculo desenho de uma aranha. - Enquanto esperávamos por você, ele insistiu que continuássemos esta caça ao tesouro imbecil, quando claramente devíamos nos afastar daqui e evitarmos chamar atenção até que Yoshua perdesse nosso rastro. Durante a inevitável discussão que se seguiu, enquanto parava para tomar fôlego ele acabou caindo no sono. O capitão realmente precisava descansar então o deixamos assim, mas independente de estar ferido ou em plena saúde eu não posso deixá-lo continuar com esta viagem suicida.
-Sim, depois de perder tanto sangue ele vai ficar cansado por algum tempo. - Disse Harlas enquanto retirava suas luvas e as jogava em uma lixeira. - Mas... De que caça ao tesouro você está falando?
Eli Aros congelou, tentando pensar rapidamente em uma resposta, ele havia acidentalmente dado informações que apenas alguns membros da tripulação sabiam sobre a estranha missão do capitão Jonas.
-Ela precisava saber disto algum dia. - A Agnae Mavrata disse com um tom severo após perceber o descuido do tesoureiro. - Cecília, eu posso te informar sobre tudo depois, mas agora precisamos de foco. Certo?
-Certo. – A violinista do navio respondeu.
Movna continuou. - O que já decidiram Eli?
-Por enquanto, nada de sólido. Ele estava focado em decidir qual corrente de Éter devia seguir enquanto eu tentava convencê-lo a fazer algo sensato.
Houve então um grito naquele quarto, de uma cansada voz de pânico e surpresa que alarmou a todos. O capitão Jonas estava sentado em sua cama, respirando com a pouca força que podia reunir enquanto uma mancha vermelha crescia em seu peito. Vendo que Eli e Movna haviam se levantado para lhe ajudar, o capitão fez um sinal para que parassem.
-Eu só tive um pesadelo, nada de perigoso. É melhor não perguntar sobre o que foi - Disse enquanto Cecília procurava por algo em sua maleta. Jonas se encostou contra a parede, voltando a falar quando recuperou totalmente o fôlego. -Eli, onde nós estávamos?
-Hmmm... - O Senhor Aros voltou a se sentar enquanto coçava o queixo pensativamente. - Eu acho que você estava insistindo em continuarmos nossa viagem suicida atrás de um tesouro possivelmente inexistente, ao invés de tentarmos fugir do militar obsessivo que tenta te matar.
-Obrigado, vamos aproveitar e continuar de onde--- O capitão respondia antes de ser interrompido por alguém que de quem ele quase havia se esquecido.
-A pegada de Aquiles existe. Eu a vi. - Elijah Tanoya disse repentinamente, cabeça apoiada sobre seus joelhos e de expressão entediada.
Eli Aros simplesmente o ignorou. - Já disse isto e vou dizer de novo, Jonas, esta possível pegada não vai se mover. Nós temos que ir para outro local, para território da União Hominae ou até mesmo dos cavaleiros. A Garganta de Hermes é um local sem lei, se continuarmos indo para lá estaremos praticamente pedindo que Yoshua venha atrás de nós.
-Como Yoshua saberia nossa localização? - A Agnae perguntou.
-Ele estava infiltrado em uma empresa de transportes, morou nesta região por anos e é o bastardo mais paranóico que eu conheço. - O homem sem sobrenome respondeu. - Ele provavelmente tem contatos por todo o sistema, e tenho certeza de que ele tem algum agente vigiando as correntes de Éter que levam para longe daqui. Seja lá a direção que tomemos, ele vai seguir nosso rastro.
-E é por isso que temos de ir para algum local para onde ele nunca iria. Nós podemos esperar até que ele desista de nos perseguir. Nós temos tempo para nos preparar. - Eli Aros respondeu.
-Você conheceu o Yoshua, você sabe que ele nunca desiste. - Havia raiva na voz de Jonas - Nós dois trabalhamos com ele, você sabe as coisas que ele faz para alcançar um inimigo, ele nunca se importou com dano colateral ou quanto tempo tivesse de esperar até que ele estivesse no momento mais frágil. Cascos de titã Eli, ele poderia ter te matado! Apenas por saber alguns segredos burocráticos. O que os guardas teriam feito com você se a Movna não te salvasse?
Durante momentos desconfortáveis ninguém naquele quarto continuou a falar. O tesoureiro olhava fixamente para frente, braços cruzados sobre seu peito, enquanto a Agnae continuava sua refeição.
Jonas queria continuar a falar, quando então a violinista retirou um pote de sua maleta, dentro dele uma lampreia-etérea. Uma espécie criada por cientistas humanos para facilitar a recuperação de viajantes do Éter, que muitas vezes tinham de viajar em navios com pouco acesso á recursos e ferramentas médicas.
-Agora nós já podemos começar o tratamento de cura, o consumo de sangue vai ajudar a sua circulação sanguínea e a saliva da Charlote vai incentivar a regeneração de tecidos. - Disse Cecília Harlas. Com uma pinça de metal, retirou a criatura que se agitava dentro do vidro: Um vertebrado serpentino do tamanho de uma mão humana, vermelho como sangue e dotado de uma cabeça em cada extremidade.
Cuidadosamente, Harlas aproximou a criatura da mancha de sangue no capitão, onde imediatamente se prendeu com dúzias de dentes enquanto a outra cabeça imediatamente se prendia á jugular.
-Como vocês conseguem continuar comendo após ver isto? - Disse Jonas, após observar o procedimento com desgosto. Ele já passara por aquele tratamento inúmeras vezes, seja em seus anos no Robalo ou entre os Filhos de Ares, mas ele nunca conseguia se acostumar com aquele animal sugando seu sangue.
-Cresci entre Agnae, nós tínhamos coisas piores. - Movna respondeu.
-Heh, já me alimentei e também me divirto com seu sofrimento. - O tesoureiro disse com um pequeno sorriso. – E voltando ao assunto, eu acredito que eu estaria morto... Mesmo assim, ainda é arriscado demais. Nós precisamos de pelo menos um pouco de tempo para nos recuperarmos, financeira e fisicamente.
Movna terminou de beber o resto de sopa em sua tigela, pela primeira vez em semanas a comida servida naquele navio tinha um gosto decente. - Precisamos de uma semana. - Disse enquanto deslizava a tigela por cima da mesa. - Em cinco dias podemos vender as jóias que Aros roubou, concertar o navio, fortalecer a segurança, cobrir nossos rastros, então usar outro caminho para a Garganta.
Jonas encarou ambos, pensando no que faria, mas cansado demais para continuar discutindo, principalmente com amigos. Não havia dor, a anestesia estava funcionando, mas respirar era tão difícil como permanecer acordado. Ele queria se deitar e esquecer tudo, para então se levantar e continuar sua vida como se as últimas semanas não tivessem acontecido.
-Bem, eu disse que tentaria ouvir vocês mais vezes, não disse? - O capitão do Robalo disse enquanto coçava os olhos. - Digam para Ilsa estabelecer curso para a Fortaleza Hospitalar, eles provavelmente já esqueceram daquele acidente depois de tantos anos, mas apenas uma semana, entenderam?
O senhor Aros se levantou e andou silenciosamente até um cano que saia da parede: Parte de um mecanismo para transmitir sons para outros quartos do Robalo, incluindo a sala de direção onde a timoneira Ilsa provavelmente estava. Quando terminou de enviar a mensagem, onde especificou o percurso e o próximo porto para onde o navio iria "obrigado" foi a resposta que ele recebeu por aquele aparelho.
O tesoureiro se virou para os outros, ajeitando seu casaco marrom e retirando algumas folhas presas em suas mangas. - Obrigado, Jonas, eu... - Dizia, procurando alguma forma de explicar a importância daquela decisão, impedido pelo seu próprio cansaço.
-Eu disse que tentaria ouvir mais minha tripulação, não disse? E agora parece que eu tenho a minoria dos votos. - Disse o capitão. Apesar de seu esforço para manter contato visual com seus colegas, seu olhar voltava repetidamente para a lampreia em seu pescoço. - Mas este desvio só vai durar cinco dias, e vou contar cada um deles.
-São 12 horas de viagem antes de sequer chegarmos á corrente da barracuda. - Disse o tesoureiro.
-Muito bem, vocês têm cinco dias e meio! Observem como eu resolvo conflitos rapidamente! - Disse o capitão.
-Agora que resolveram esta questão. - Harlas tentou falar em um tom autoritário, quase chegando a gritar. -Todos nós devemos nos retirar e deixa-lo descansar. Vocês não querem que os ferimentos dele se abram por falar demais, querem?
A mensagem foi clara, ninguém tinha disposição ou motivos para discordar. Movna se levantou e esperou ao lado da porta enquanto os outros se preparavam, Eli Aros reunia as tigelas vazias de sopa, Cecília organizava sua pequena maleta de ferramentas e Jonas se deitava, tentando encontrar uma posição onde confortável onde ele não esmagasse a lampreia-etérea.
Momentos depois, os quatro estavam do lado de fora do quarto.
-Eu deixei um rádio ligado ao lado da cama para ele poder lhes chamar no caso de problemas, mas ainda sim eu recomendo que alguém venha aqui periodicamente para ver as suas condições. – A violinista dizia, fechando silenciosamente a porta. - Eu vou tentar arranjar soro glicosado, mas depois nós iremos discutir sobre este tesouro e o meu aumento por serviços extras. - Ao terminar, se virou e caminhou rapidamente pelo corredor, madeira rangendo sob seus pés.
-Aumento? Mas nós não... - Eli parou de falar e suspirou desanimadamente. - Heh, eu trato disso depois. Eu vou guardar estas coisas e então vou dormir até ficar exausto. Tenha um bom dia Movna, e obrigado pela ajuda. - Com uma pilha de tigelas em mãos se dirigiu cuidadosamente pelo navio.
A Agnae olhou para Tanoya, o ex-prisioneiro ainda tinha a mesma expressão neutra usual, tendo de guiá-lo de volta para seus aposentos - O antigo quarto de um ex-tripulante chamado Mernenger - e então teria de retomar seu trabalho, guardar o navio e garantir a segurança de seus tripulantes.
-Ele tinha razão, Yoshua nunca vai desistir. - a voz veio de trás da Agnae, junto com o familiar som dos mecanismos de um revolver.
Resistindo ao impulso de retirar sua faca e tentar desarmar aquela pessoa, a Agnae se virou para trás: lá estava Jackie Darns, membro da Guarda de Hélios, apoiada em uma das paredes de madeira e com sua arma de fogo, Fortiori, em mãos.
-Jackie. - Disse Movna, pensando em que pergunta fazer em seguida.
-Bom dia senhora. - Mesmo sem suas distintas vestimentas cinzentas, Darns levou sua mão á altura de sua testa e a ergueu um pouco, como se estivesse levantando o chapéu em cumprimento. - E bom dia Tanoya, obrigado pela boa refeição.
-Obrigado. - Elijah respondeu para a surpresa de Movna. Ele era um criminoso preso por diversos homicídios em seu planeta natal, e se esperava que um membro de uma organização de caçadores de recompensa tivesse uma reação mais violenta á presença dele no Robalo. O porquê deste mesmo criminoso estar preparando refeições também era algo preocupante. Talvez fosse parte de um disfarce que prepararam para Elijah, ou talvez a fuga de um prisioneiro de Elysium não fosse algo que a Guardiã soubesse. Cada vez mais perguntas surgiam sobre a situação.
Movna decidiu começar pela mais simples. - O que está fazendo aqui?
-Eu estava tentando ouvir o que vocês decidiam nesta reunião. - Enquanto falava, Jackie esfregava um pedaço de pano cinza em Fortiori, limpando todas as manchas de poeira e sangue na arma. - Quanto mais eu saber dos acontecimentos deste navio, melhor.
-Não, por que você está no Robalo?
-Ninguém te informou? Inúmeras desculpas por isto. - Disse a guardiã. - Como era óbvio que vocês seriam o próximo alvo de Yoshua, decidimos que eu ficaria aqui até resolvermos esta situação.
A mulher de poncho cor de areia sentiu a raiva surgindo e se intensificando, não pela simples presença da Guardiã de Hélios no Robalo, mas por alguém ter tomado aquela decisão sem sua participação. Ela tentou manter uma expressão estóica, algo em que o capacete cobrindo metade de seu rosto ajudava. - Como, exatamente, chegaram a esta decisão?
-Há anos eu tenho procurado pelo Yoshua e tentado captura-lo, eu sei como ele pensa e com que tipo de organizações ele lida. Eu sei como ele age e estou preparada para matá-lo quando for necessário. - Darns respondeu, constantemente atenta a limpeza de Fortiori. - Eu o odeio tanto quanto o capitão, então é útil sermos aliados durante algum tempo.
-Quanto tempo?
-Quanto for necessário, e mais cinco dias e meio pelo o que eu ouvi. - Jackie disse. - Ou menos, se ele os encontrar antes de estarem preparados.
-Certo, estou começando a entender. Se for permanecer por aqui, pretende seguir as regras do navio? - Movna disse olhando diretamente para a arma de balas de pólvora.
-Você fala de Fortiori? Não se preocupe. - Respondeu enquanto fazia um pequeno movimento com a mão, abrindo o tambor da arma e mostrando a falta de qualquer bala dentro. - Eu já tive acidentes o bastante com armas para saber como evitá-los.
Em um movimento rápido e repentino, a Agnae arrancou a arma das mãos da Guardiã. Jackie entrou momentaneamente em pânico, seus olhos se movendo freneticamente por todo o corredor enquanto seus pés se preparavam para uma fuga, mas então ela parou, esperando pelo o que Movna faria.
-As regras são simples: todas as armas de fogo são guardadas no depósito. - Disse aquela nascida sob a lua crescente enquanto guardava o revolver em seu cinto. - Pode tê-la de volta com permissão ou em emergência.
Jackie Darns fechou os olhos e respirou profundamente. - Inúmeras desculpas. Eu não queria infringir as leis do Robalo ou ameaçar sua paz. Eu peço perdão e me retiro.
-Onde está indo? - A mulher do capacete empenado perguntou em voz alta enquanto a outra se afastava pelos corredores frios. Jackie olhou brevemente para trás e respondeu em voz alta, quase gritando:
-Eu vou aprender os caminhos do navio. Quero estar pronta para quando Yoshua atacar.
A Agnae ficou permaneceu quieta, refletindo silenciosamente. Elijah Tanoya já se perguntava se iria sozinho para seu quarto antes de Movna fazer um sinal para segui-la.
-Por que a Darns te perturba tanto? - O senhor Tanoya disse no meio do caminho, interrompendo o silêncio.
Mesmo surpreendida com aquele comentário repentino de Elijah, ela demorou responder. - Por que o interesse?
-Eu matei pessoas em minha vida, algumas inocentes, você age como se eu não fosse uma ameaça. - Parou para ser repreendido em seus próprios pensamentos por estar chamando atenção para si e seu passado. - Ela diz trabalhar para a lei, mas você a confronta imediatamente e insiste em desarmá-la.
-Eli me informou de você, todas as suas mortes foram feitas com explosivos, que não vai conseguir aqui. Por que você não se preocupa com ela? – Respondeu, esperando conseguir alguma informação de Tanoya e descobrir o que planejava.
-Estou fingindo ser o cozinheiro daqui, e como minha comida é melhor do que o lixo que serviam a farsa foi fácil. Você faz parte da casta dos Mavrata, a própria Darns mesmo disse ter perdido para você em combate, por que o medo?
-Jackie simplesmente te contou isto? - Sem perceber, Movna andava mais devagar.
-Conversamos durante a cirurgia do capitão, sopa sempre deixa as pessoas mais abertas. Ela parecia orgulhosa sobre a história. - Constantemente, Elijah Tanoya possuía uma expressão completamente neutra, e nunca parecia se esforçar para conseguir mantê-la.
-É difícil acreditar nesta história. Certo, quer saber o meu problema com Jackie? Vi o que ela consegue fazer e ouvi a história do que aconteceu: Um prédio em chamas, guardas mortos e quase capturou Yoshua. A vi ignorar leis e realizar ameaças apenas por seu objetivo. Consigo imaginar o que aconteceria com o navio se entrarmos no caminho dela. - Eles chegaram ao antigo quarto de Mernenger, Movna abriu a porta com uma chave do molho em seu cinto e esperou até Tanoya entrar no local antes de continuar a falar. - Lembre disso, Jackie vai estar aqui se tentar escapar.
-Fácil, eles não vão parar de me lembrar disto. - O ex-prisioneiro disse enquanto a porta era trancada.
A Agnae não perdeu tempo e seguiu pelos corredores, passando por tripulantes cujo nome não sabia, mas cuja segurança era seu trabalho manter. O Robalo parecia estava se tornando mais perigoso com o tempo, cada vez mais ameaças apareciam e seus amigos pareciam cada vez mais exaustos.
Os próximos cinco dias seriam longos.
*****
-Cachalote-
Yoshua Olho-Vermelho se reconstruía, mental e fisicamente.
Do centro de uma sala de metal, cercado por móveis de madeira, alavancas de metal e através das janelas de metal transparente podiam-se ver as centenas de estrelas do espaço e o planeta Lumiére flutuando no Éter. O homem do olho de rubi e outros 14 tripulantes estavam no encouraçado nomeado como Cachalote. Uma gigantesca belonave construída com grossas placas de ferro que não era usada há mais de uma década, guardada como relíquia em um porto até o dia em que Yoshua precisou dela. Mesmo com a idade e a falta de reparos, poucas modificações foram necessárias para que a Cachalote pudesse viajar novamente pelo Éter.
Olho-Vermelho por outro lado não estava em boas condições: Seu braço esquerdo coberto com gesso, assim como sua perna e parte de seu peito, enquanto que seu rosto estava marcado por pequenas queimaduras. Mesmo olhando para suas estrelas, sua mente estava nos acontecimentos das últimas horas, principalmente em suas próprias falhas.
Yoshua odiava a sí mesmo por ter deixado seu inimigo escapar, mesmo tendo a vantagem da surpresa e numérica; Por ter deixado seu antigo discípulo escapar mesmo tendo-o na mira de uma arma; Por ter baixado a guarda em troca de um discurso egocêntrico e por ter se tornado a imagem de um vilão de ópera.
Ele tentaria concertar todas as suas falhas, era a única forma de não apenas matar Jonas, mas também todos os traidores em sua lista.
Sua mão intacta estava mergulhada em um aquário de caranguejos, que beliscavam delicadamente a pele dos dedos. Eram os animais favoritos do ex-comandante, inteligentes, fieis e capazes de se sacrificar quando necessário. Apenas sua presença já ajudava yoshua a se concentrar.
-Senhor, já terminamos o inventario e estamos prontos para partir. - Jericó era um empregado que perdera o emprego após falhar em manter um refém preso, O que não impediu Yoshua de aceitá-lo em sua navio com falta de tripulantes. - E já podemos seguir o rastro do... Anh...
-O Robalo, sim. - Yoshua disse com autoridade, sem que a dor de seus ferimentos afetasse sua voz. - Para onde ele está indo?
-B-bem, segundo seus contatos ele está se dirigindo para a corrente de Éter que leva para a Fortaleza Hospitalaria. Eu acho... Ele vai chegar em pouco mais de dez horas.
-Aguarde. - Olho-Vermelho mancou até um quadro branco em uma das paredes, havia um mapa do Círculo-Delta anotado em sua superfície e dois nomes de falecidos: Castor e Pollux. A provável localização do Robalo foi anotada. - Entre os envelopes que eu te enviei há um fechado com um selo de cera negra.
-Achei! O que você quer que eu faça com eles?
-Procure entre estes papeis por um corsário que trabalhe próximo da corrente 32, e então entre em contato com ele. Em breve você irá receber uma mensagem e alguns documentos que deve enviar para ele.
-Sim, comandante. – a voz que vinha do cano de mensagens respondeu.
O homem do olho de rubi voltou ao centro da sala e continuou a observar as estrelas. Até que pudesse corrigir as suas aparentes falhas, Yoshua sabia que não poderia derrotar capitão Jonas em um futuro confronto, mas também sabia a solução simples para este problema:
Contratar alguém que pudesse.